quarta-feira, 16 de abril de 2014

A casa de Hades 1 ao 10

DURANTE O TERCEIRO ATAQUE, Hazel quase engoliu um pedregulho. Tentava enxergar através da neblina, perguntando-se como podia ser tão difícil voar por uma estúpida cordilheira, quando o alarme do navio soou.
— Tudo a bombordo! — gritou Nico do mastro de proa do navio voador.
Lá atrás, no leme, Leo girou o timão. O Argo II guinou para a esquerda, os remos aéreos cortando as nuvens como facas enfileiradas.
Hazel cometeu o erro de olhar por cima da amurada. Uma forma esférica e escura movia-se rapidamente em sua direção. Ela pensou: Por que a lua está se aproximando?Então gritou e se jogou no convés. A imensa pedra passou tão perto que soprou o cabelo caído em seu rosto.
CRAC!
O mastro de proa tombou – vela, vergas e Nico, tudo caindo no convés. O pedregulho, mais ou menos do tamanho de uma picape, desapareceu na neblina como se tivesse mais o que fazer longe dali.
— Nico!
Hazel chegou até ele com dificuldade enquanto Leo estabilizava o navio.
— Estou bem — murmurou Nico, chutando as velas enroscadas em suas pernas.
Ela o ajudou a se levantar e os dois cambalearam até a proa. Hazel olhou com mais cuidado dessa vez. As nuvens se abriram o bastante para revelar o topo de uma montanha logo abaixo: um cume escarpado de rocha negra despontava das encostas verde-musgo. De pé, no topo, estava um deus da montanha – um dos numina montanum, como Jason os chamava. Ou ourae, em grego. Qualquer que fosse o nome, eles eram malvados.
Como os outros que haviam enfrentado, esse usava uma túnica branca simples que cobria a pele áspera e escura como basalto. Era extremamente musculoso, tinha pouco mais de seis metros de altura, barba branca e comprida, cabelo desgrenhado e um olhar selvagem, como o de um eremita louco. Ele gritou algo incompreensível para Hazel, mas que com certeza não eram boas-vindas. Com as próprias mãos, ele arrancou outro pedaço de rocha de sua montanha e começou a moldar uma bola.
A cena desapareceu na neblina, mas quando o deus da montanha rugiu de novo, outros numina responderam ao longe, as vozes ecoando pelos vales.
— Malditos deuses das pedras! — gritou Leo ao timão. — Vou ter que substituir o mastro pela terceira vez! Acham que eles dão em árvores?
Nico franziu a testa.
— Os mastros são feitos de árvores.
— Essa não é a questão!
Leo pegou um de seus controles, adaptado de um Nintendo Wii, e girou-o em círculo. A alguns metros dali, um alçapão se abriu no convés. Surgiu um canhão de bronze celestial. Hazel só teve tempo de tapar os ouvidos antes de aquilo disparar para o céu, espalhando uma dúzia de esferas de metal que deixou um rastro de fogo verde. Em pleno ar, esporões brotaram das esferas como as pás de um helicóptero, e elas se afastaram em meio à névoa.
Pouco depois, uma sequência de explosões ecoou pela cordilheira, seguida pelo rugido indignado dos deuses da montanha.
— Há! — gritou Leo.
Infelizmente, a julgar pelos dois últimos encontros, Hazel presumiu que a mais nova arma de Leo apenas irritara os numina.
Outra pedra silvou através do ar a estibordo.
— Tire-nos daqui! — gritou Nico.
Leo murmurou alguns comentários pouco lisonjeiros sobre os numina, mas girou o timão.
Os motores rugiram. O cordame mágico se tensionou por conta própria, e o navio rumou para bombordo. O Argo II ganhou velocidade, recuando para o noroeste, como vinha fazendo nos últimos dois dias.
Hazel não relaxou até estarem longe das montanhas. O nevoeiro se dissipou. Abaixo deles, o sol da manhã iluminava a pradaria italiana: colinas verdes e campos dourados não muito diferentes daqueles do norte da Califórnia. Hazel quase podia imaginar que estava navegando de volta para casa, rumo ao Acampamento Júpiter.
Aquela ideia fez seu peito doer. O Acampamento Júpiter fora o seu lar por apenas nove meses, desde que Nico a trouxera de volta do Mundo Inferior. Mas ela sentia mais saudade dali do que de sua cidade natal, Nova Orleans, e, definitivamente, mais do que do Alasca, onde morrera em 1942.
Hazel sentia falta de seu beliche no bunker da Quinta Coorte. Tinha saudade dos jantares no refeitório, com os espíritos do vento conduzindo pratos pelo ar e legionários gracejando a respeito de jogos de guerra. Ela queria passear sem rumo pelas ruas de Nova Roma de mãos dadas com Frank Zhang. Queria saber como era ser uma garota normal pelo menos uma vez, com um namorado realmente doce e atencioso.
Mais que tudo, queria se sentir segura. Estava cansada de passar o tempo todo assustada e preocupada.
Hazel ficou de pé no tombadilho. Nico extraía de seus braços os estilhaços do mastro e, no painel de comando do navio, Leo socava botões.
— Bem, isso foi uma droga — comentou Leo. — Devo acordar os outros?
Hazel estava tentada a dizer que sim, mas os outros membros da tripulação haviam ficado com o turno da noite e mereciam descansar. Estavam exaustos por defenderem o navio. Ao que parecia, de poucas em poucas horas um monstro romano resolvia que o Argo II era na verdade uma guloseima deliciosa.
Algumas semanas antes, Hazel não teria acreditado que alguém pudesse dormir durante um ataque numina, mas, agora, imaginava que seus amigos ainda estavam roncando abaixo do convés. Sempre que ela tinha uma chance de descansar, dormia como se estivesse em coma.
— Eles precisam descansar — disse ela. — A gente vai ter que descobrir outro caminho sozinhos.
— Hum.
Leo olhou feio para o monitor. Com sua camisa de trabalho esfarrapada e a calça jeans manchada de graxa, parecia que tinha acabado de perder uma luta contra uma locomotiva.
Desde que seus amigos Percy e Annabeth haviam caído no Tártaro, Leo vinha trabalhando quase sem parar. Andava mais irritado e até mesmo mais determinado do que o habitual.
Hazel estava preocupada com ele. Mas parte dela sentia-se aliviada com a mudança. Sempre que Leo sorria e fazia piadas, ficava parecido demais com Sammy, seu bisavô... o primeiro namorado de Hazel, em 1942.
Droga, por que a vida tinha que ser tão complicada?
— Outro caminho — murmurou Leo. — Você vê algum?
Um mapa da Itália brilhava em seu monitor. A cordilheira dos Apeninos se estendia por todo o país em forma de bota. Um ponto verde representando o Argo IIpiscava no lado esquerdo da tela, a algumas centenas de quilômetros ao norte de Roma.
Deveria ter sido simples. Precisavam chegar a um lugar chamado Épiro, na Grécia, e encontrar um antigo templo chamado Casa de Hades (ou Plutão, como os romanos o conheciam, ou então, como Hazel gostava de pensar nele, o Pior Pai Ausente do Mundo).
Para chegar a Épiro, tudo o que tinham de fazer era ir direto para leste – sobrevoando os Apeninos e atravessando o Mar Adriático. Mas não foi o que aconteceu. Sempre que tentavam cruzar a coluna vertebral da Itália, os deuses da montanha atacavam.
Nos últimos dois dias, margearam as montanhas rumo ao norte, na esperança de encontrar uma passagem segura. Sem resultado. Os numina montanum eram filhos de Gaia, a deusa de quem Hazel menos gostava. Isso os tornava inimigos muitodeterminados. O Argo II não podia voar alto o bastante para evitar os ataques e, mesmo com todas as suas defesas, o navio não conseguiria atravessar a cadeia de montanhas sem ser despedaçado.
— A culpa é nossa — disse Hazel. — Minha e de Nico. Os numina podem nos sentir.
Ela olhou para o meio-irmão. Ele começara a recuperar as forças desde que o resgataram dos gigantes, mas ainda estava muito magro. A camisa preta e a calça jeans caíam folgadas no corpo esquelético. O cabelo longo e escuro emoldurava olhos encovados. A pele morena estava com um tom verde-claro doentio, cor de seiva de árvore.
Sua idade humana era só de catorze anos, apenas um ano mais velho do que Hazel, mas a história não terminava aí. Assim como ela, Nico di Angelo era um semideus de outra era. Ele irradiava uma espécie de energia antiga – uma melancolia por saber que não pertencia ao mundo moderno.
Hazel não o conhecia havia muito tempo, mas entendia e chegava a compartilhar sua tristeza. Os filhos de Hades (ou Plutão, tanto faz) raramente tinham uma vida feliz. E, a julgar pelo que Nico dissera na noite anterior, seu maior desafio ainda estava por vir quando chegassem à Casa de Hades – um desafio que ele implorou que Hazel mantivesse em segredo.
Nico agarrou a empunhadura de sua espada de ferro estígio.
— Espíritos telúricos não gostam de filhos do Mundo Inferior. É verdade. Eles nos acusam de dar golpes baixos. Literalmente. Mas acho que os numina sentiriam este navio de qualquer modo. Estamos transportando a Atena Partenos. Essa coisa é como um farol mágico.
Hazel estremeceu, pensando na enorme estátua que ocupava a maior parte do porão de carga. Eles sacrificaram muito para resgatá-la da caverna subterrânea em Roma, mas não tinham ideia do que fazer com ela. Até o momento, parecia que só servia para alertar monstros de sua presença.
Leo deslizou o dedo pelo mapa da Itália.
— Então, passar pela cordilheira está fora de questão. O problema é que ela se estende por um bom pedaço nos dois sentidos.
— Poderíamos ir pelo mar — sugeriu Hazel. — Contornar a ponta sul da Itália.
— É bem longe — disse Nico. — Além disso, não temos... — Sua voz falhou. — Você sabe... nosso especialista do mar, Percy.
O nome pairou no ar como uma tempestade iminente.
Percy Jackson, filho de Poseidon... provavelmente o semideus que Hazel mais admirava. Ele salvara a sua vida tantas vezes na expedição ao Alasca, mas quando Percy precisou de sua ajuda em Roma ela havia falhado. Vira, impotente, Percy e Annabeth despencarem naquele abismo.
Hazel respirou fundo. Percy e Annabeth ainda estavam vivos. Ela conseguia sentir. Ainda teria a chance de ajudá-los caso conseguisse chegar à Casa de Hades, caso sobrevivesse ao desafio a respeito do qual Nico a tinha alertado...
— E se formos para o norte? — perguntou Hazel. — Tem que haver uma passagem nas montanhas ou algo assim.
Leo mexia na esfera de bronze de Arquimedes que ele instalara no painel de controle – seu mais novo e mais perigoso brinquedo. Toda vez que Hazel olhava para aquilo, ficava com a boca seca. Temia que Leo girasse a combinação errada e, acidentalmente, ejetasse todos do convés, explodisse o navio ou transformasse o Argo II em uma torradeira gigante.
Felizmente, tiveram sorte. A esfera estendeu uma lente de câmera e projetou sobre o painel uma imagem em 3D dos Apeninos.
— Sei lá — disse Leo examinando o holograma. — Não vejo nenhuma boa passagem ao norte. Mas é uma ideia melhor do que voltar para o sul. Já chega de Roma.
Ninguém discutiu. Roma não fora uma boa experiência.
— Seja lá o que formos fazer — disse Nico — precisamos nos apressar. Cada dia que Annabeth e Percy passarem no Tártaro...
Ele não precisou terminar. Tinham que manter a esperança de que Percy e Annabeth sobreviveriam tempo suficiente para encontrar o lugar do Tártaro onde ficavam as Portas da Morte. Então, supondo que o Argo II pudesse chegar à Casa de Hades, eles talvez conseguissem abrir as portas pelo lado mortal, salvar os amigos e fechar a entrada, impedindo que as forças de Gaia reencarnassem infinitamente no mundo mortal.
Sim, com certeza era um plano infalível...
Nico olhou feio para a pradaria italiana lá embaixo.
— Talvez devêssemos acordar os outros. Esta decisão afeta a todos nós.
— Não — disse Hazel. — A gente pode encontrar uma solução.
Não sabia bem por que estava tão decidida, mas, desde que deixaram Roma, a tripulação começara a perder a coesão. Estavam aprendendo a trabalhar em equipe e, então, bum... os dois membros mais importantes caíram no Tártaro. Percy era a sua coluna vertebral. Ele lhes dera confiança quando velejaram pelo Atlântico e entraram no Mediterrâneo. Quanto a Annabeth, ela fora a líder de fato da expedição. Recuperara a Atena Partenos sozinha. Era a mais inteligente dos sete, aquela que tinha as respostas.
Se Hazel acordasse o restante da tripulação sempre que tivessem um problema, eles apenas começariam a discutir novamente, sentindo-se cada vez mais desamparados.
Hazel tinha que deixar Percy e Annabeth orgulhosos. Precisava tomar a iniciativa. Não podia crer que seu único papel naquela expedição seria aquele do qual Nico lhe incumbira: o de remover o obstáculo que os esperava na Casa de Hades. Ela afastou tal pensamento.
— Precisamos ser criativos — disse ela. — Pensar em outra forma de atravessar aquelas montanhas, ou uma maneira de nos esconder dos numina.
Nico suspirou.
— Se estivesse sozinho, eu poderia viajar nas sombras. Mas isso não funcionaria com um navio inteiro. E, para ser sincero, não sei se tenho forças para transportar nem a mim mesmo.
— Talvez eu pudesse criar algum tipo de camuflagem — disse Leo — como uma cortina de fumaça para a gente se disfarçar nas nuvens.
Ele não soava muito entusiasmado.
Hazel olhou para os campos pensando no que havia abaixo deles, o reino de seu pai, o senhor do Mundo Inferior. Ela só encontrara Plutão uma vez, e na ocasião nem sabia quem ele era. Certamente nunca esperara ajuda dele – não em sua primeira vida, não durante o período em que vagou como um espírito no Mundo Inferior e não desde que Nico a trouxera de volta ao mundo dos vivos.
O servo de seu pai, Tânatos, o deus da morte, dera a entender que Plutão poderia estar fazendo um favor a Hazel ao ignorá-la. Afinal, ela não deveria estar viva. Se Plutão prestasse atenção nela, talvez tivesse que devolvê-la à terra dos mortos. O que significava que recorrer a Plutão era uma ideia muito ruim. E, no entanto...
Por favor, pai, viu-se orando. Eu preciso encontrar uma maneira de entrar em seu templo na Grécia, a Casa de Hades. Se estiver aí embaixo, mostre-me o que fazer.
No limiar do horizonte, um lampejo de movimento chamou a sua atenção, algo pequeno e bege cruzando os campos a uma velocidade incrível, deixando para trás um rastro de vapor, como um avião.
Era inacreditável. Hazel não se atrevia a ter esperança, mas tinha que ser...
— Arion.
— O quê? — exclamou Nico.
Leo emitiu um grito de felicidade diante da nuvem de poeira que se aproximava.
— É o cavalo dela, cara! Você perdeu essa parte. Não o vemos desde o Kansas!
Hazel sorriu – a primeira vez que sorria em dias. Era tão bom ver seu velho amigo.
Cerca de um quilômetro ao norte, o pequeno ponto bege circundou uma colina e parou no topo. Era difícil enxergar, mas quando o cavalo empinou e relinchou, o som chegou até o Argo II. Hazel não teve mais dúvidas: era Arion.
— Precisamos ir até lá — disse ela. — Ele está aqui para ajudar.
— Tudo bem. — Leo coçou a cabeça. — Mas, hã, nós combinamos não pousar mais o navio no chão, lembra? Você sabe, com Gaia querendo destruir a gente e tudo mais...
— Só me deixe perto dele. Vou descer pela escada de corda. — O coração de Hazel estava disparado. — Acho que Arion quer me dizer alguma coisa.

Capítulo II - Hazel

HAZEL NUNCA SE SENTIRA tão feliz. Bem, exceto na noite da festa da vitória no Acampamento Júpiter, quando beijou Frank pela primeira vez... mas este era seu segundo momento mais feliz.
Assim que chegou ao chão, ela correu em direção a Arion e abraçou seu pescoço.
— Senti saudade! — Ela apertou o rosto contra o dorso quente do animal, que cheirava a sal marinho e a maçãs. — Por onde você andou?
Arion relinchou. Hazel desejou poder falar com cavalos como Percy fazia, mas entendeu a ideia geral. Arion soava impaciente, como se estivesse dizendo: Não há tempo para sentimentalismos, garota! Vamos!
— Quer que eu vá com você? — arriscou Hazel.
Arion balançou a cabeça, trotando sem sair do lugar. Seus olhos castanho-escuros brilhavam, apressando-a.
Hazel ainda não conseguia acreditar que ele estava realmente ali. Arion era capaz de correr em qualquer superfície, até mesmo o mar, mas ela teve medo de que ele não os seguisse nas terras antigas. O Mediterrâneo era muito perigoso para semideuses e seus aliados. Ele não teria vindo a menos que Hazel estivesse realmente precisando. E parecia tão agitado... Qualquer coisa que fizesse um cavalo destemido ficar arisco deveria aterrorizá-la.
Em vez disso, ela se sentia feliz. Estava tão cansada de enjoar no ar e no mar... A bordo do Argo II, Hazel se sentia tão útil quanto uma caixa de lastro. Estava feliz por pisar em terra firme de novo, mesmo sendo território de Gaia. Ela estava pronta para cavalgar.
— Hazel — gritou Nico do navio. — O que está acontecendo?
— Está tudo bem!
Ela se agachou e extraiu uma pepita de ouro da terra. Tinha cada vez mais controle sobre o seu poder. Pedras preciosas não mais brotavam acidentalmente ao seu redor, e era fácil extrair ouro do chão.
Deu a pepita para Arion... seu lanche favorito. Então, sorriu para Leo e Nico, que a observavam do topo da escada, uns trinta metros acima.
— Arion quer me levar a algum lugar.
Os rapazes trocaram olhares nervosos.
— Hã... — Leo apontou para o norte. — Por favor, não me diga que ele está levando você para ?
Hazel estava tão concentrada em Arion que não notara a perturbação. A quilômetros de distância, no topo da colina seguinte, uma tempestade se armava sobre umas velhas ruínas de pedra, talvez restos de um templo romano ou uma fortaleza. Um funil de nuvens serpenteava em direção à colina como um filete de tinta preta.
Hazel sentiu gosto de sangue na boca. Olhou para Arion.
— Você quer ir para lá?
Arion relinchou, como se dissesse: Claro, dã!
Bem... Hazel pedira ajuda. Seria esta a resposta de seu pai?
Ela esperava que sim, mas sentia algo além da influência de Plutão naquela tempestade... algo sombrio, poderoso e não necessariamente amigável.
Ainda assim, era a sua chance de ajudar os amigos – de liderar em vez de seguir. Apertou as correias de sua espada de ouro da cavalaria imperial e montou Arion.
— Vou ficar bem — gritou para Nico e Leo. — Esperem por mim aqui.
— Esperar por quanto tempo? — perguntou Nico. — E se você não voltar?
— Não se preocupe. Voltarei — prometeu ela, esperando que fosse verdade.
Ela esporeou Arion, e ambos dispararam pelo campo, seguindo direto para o ciclone que se tornava cada vez maior.

Capítulo III - Hazel

A TEMPESTADE ENGOLIU A COLINA em um cone negro rodopiante.
Arion disparou naquela direção.
Hazel viu-se no cume da colina, mas sentia como se estivesse em outra dimensão. O mundo perdera as suas cores. As paredes do tornado, de um negro tenebroso, cercavam a colina. O céu estava cinzento. As ruínas pareciam tão brancas que quase brilhavam. Até mesmo Arion mudara de marrom caramelo para um tom cinza-escuro.
No olho do tornado, o ar estava estagnado. Hazel sentiu um calafrio na pele, como se tivesse sido esfregada com álcool. À sua frente, um portal em arco nas paredes cobertas de musgo dava acesso a uma espécie de recinto.
Hazel não podia ver muito em meio à escuridão, mas sentia uma presença ali, como se ela fosse um pedaço de ferro perto de um grande ímã. O magnetismo era irresistível, forçando-a a avançar.
Ainda assim, hesitou. Ela puxou as rédeas de Arion, e ele golpeou o chão com impaciência, fazendo o solo crepitar sob seus cascos. Onde quer que ele pisasse, a grama, a terra e as pedras ficavam brancas como gelo. Hazel se lembrou da geleira Hubbard, no Alasca – como a superfície se partira sob seus pés. Lembrou-se do chão daquela horrível caverna em Roma se desfazendo em poeira, lançando Percy e Annabeth no Tártaro.
Esperava que aquela colina em preto e branco não se dissolvesse debaixo dela, mas decidiu que era melhor continuar andando.
— Então vamos, garoto. — Sua voz soava abafada, como se estivesse falando com o rosto enfiado em um travesseiro.
Arion passou pelo arco de pedra. Paredes em ruínas rodeavam um pátio quadrado mais ou menos do tamanho de uma quadra de tênis. Havia três outros portais, um no meio de cada parede, nos sentidos norte, leste e oeste. No centro do pátio, cruzavam-se dois passeios calçados com seixos, formando uma cruz. A névoa pairava no ar – tiras brancas e nebulosas que se retorciam e ondulavam como se tivessem vida.
Não uma névoa qualquer, percebeu Hazel. A Névoa.
Durante toda a sua vida ela ouvira falar sobre a Névoa – o véu sobrenatural que ocultava o mundo mitológico da visão dos mortais. Podia enganar os seres humanos, até mesmo os semideuses, fazendo-os ver monstros como animais inofensivos, ou deuses como pessoas normais.
Hazel nunca pensara naquilo como fumaça de verdade, mas ao observá-la se fechar e envolver as patas de Arion, flutuando pelos arcos quebrados do pátio em ruínas, os pelos de seus braços se arrepiaram. De alguma forma, ela sabia: aquela coisa branca era pura magia.
Ao longe, um cão uivou. Arion não costumava ter medo de nada, mas recuou, bufando, nervoso.
— Está tudo bem — disse Hazel acariciando seu pescoço. — Estamos juntos nessa. Vou desmontar, certo?
Ela desmontou. Na mesma hora, o cavalo se virou e partiu.
— Arion, espe... — mas ele já voltara correndo por onde viera.
Isso porque estavam juntos nessa...
Outro uivo rasgou o ar, dessa vez mais próximo.
Hazel deu um passo em direção ao centro do pátio. A Névoa se agarrava a ela como neblina de congelador.
— Olá — chamou.
— Olá — respondeu uma voz.
A figura pálida de uma mulher apareceu no portal norte. Não, espere... no portal leste. Não, oeste. Três imagens esfumaçadas da mesma mulher se moviam sincronizadas em direção ao centro das ruínas. Sua forma era turva, feita de Névoa, e dois pequenos tufos de fumaça a seguiam de perto, movimentando-se rapidamente a seus pés como se fossem seres vivos. Algum tipo de animal de estimação?
Ela chegou ao centro do pátio e suas três formas se fundiram em uma. Materializou-se em uma jovem que usava um vestido escuro sem mangas. Seu cabelo dourado estava preso em um rabo de cavalo alto, no estilo grego clássico. Seu vestido era tão sedoso que parecia ondular, como se o tecido fosse tinta escorrendo de seus ombros. Não parecia ter mais de vinte anos, mas Hazel sabia que isso não queria dizer nada.
— Hazel Levesque — disse a mulher.
Ela era linda, embora muito pálida. Certa vez, em Nova Orleans, Hazel fora obrigada a ir ao velório de uma colega de classe. Lembrou-se do corpo sem vida da jovem no caixão aberto. Seu rosto fora muito bem maquiado, para parecer que estava dormindo, o que Hazel achou aterrador.
A mulher fez Hazel se lembrar daquela menina, só que seus olhos estavam abertos e eram completamente negros. Quando inclinou a cabeça, pareceu voltar a se dividir em três pessoas diferentes... imagens enevoadas e fora de foco se juntando, como o retrato borrado de uma pessoa se movendo rápido demais na hora da foto.
— Quem é você? — Os dedos de Hazel seguraram o punho de sua espada. — Quer dizer... qual deusa?
Pelo menos daquilo Hazel tinha certeza. A mulher irradiava poder. Tudo ao redor delas – a Névoa rodopiante, a tempestade monocromática, o brilho fantasmagórico das ruínas – era por causa de sua presença.
— Ah. — A mulher assentiu com a cabeça. — Deixe-me lhe dar alguma luz.
Ela ergueu as mãos. Subitamente, segurava duas antiquadas tochas de junco acesas. A Névoa recuou para as extremidades do pátio. Junto às sandálias da mulher, os dois animais etéreos tomaram formas sólidas. Um era um labrador preto. O outro era um roedor comprido, cinzento e peludo com uma máscara branca ao redor do rosto. Uma doninha, talvez?
A mulher deu um sorriso sereno.
— Sou Hécate. Deusa da magia. Temos muito o que conversar se quiser sobreviver a esta noite.

Capítulo IV - Hazel

HAZEL QUERIA CORRER, MAS SEUS pés pareciam presos ao chão branco vitrificado.
Em ambos os lados do cruzamento, dois suportes de metal escuro irromperam da terra como caules de plantas. Hécate prendeu as tochas neles, então caminhou lentamente em torno de Hazel, olhando-a como se fossem parceiras em uma estranha dança.
O cão preto e a doninha a seguiram.
— Você parece com a sua mãe — decidiu Hécate.
Hazel sentiu um nó na garganta.
— Você a conheceu?
— Claro. Marie era uma vidente. Vivia de encantos, maldições e talismãs. Eu sou a deusa da magia.
Aqueles olhos absolutamente negros pareciam atrair Hazel, como se estivessem tentando sugar a sua alma. Durante sua primeira vida em Nova Orleans, as crianças da escola St. Agnes a atormentavam por causa da mãe. Diziam que Marie Levesque era uma bruxa. As freiras murmuravam que a mãe de Hazel tinha coisa com o Diabo.
Se as freiras tinham medo de minha mãe, perguntou-se Hazel, o que achariam desta deusa?
— Muitos me temem — disse Hécate, como se lesse os seus pensamentos. — Mas a magia não é boa e nem má. Trata-se de uma ferramenta, como uma faca. Uma faca é má? Só se o seu dono for mau.
— Minha... minha mãe — gaguejou Hazel. — Ela não acreditava em magia. Não de verdade. Apenas fingia, para ganhar dinheiro.
A doninha chiou e mostrou os dentes. Em seguida, emitiu um ruído de seu traseiro. Em outras circunstâncias, uma doninha soltando gases poderia ser algo engraçado, mas Hazel não riu. Os olhos vermelhos do roedor voltaram-se sinistramente para ela, como pequenas brasas.
— Calma, Gale — disse Hécate. Ela deu de ombros, desculpando-se com Hazel. — Gale não gosta de incrédulos e vigaristas. Ela já foi uma bruxa, sabe?
— Sua doninha era uma bruxa?
— Na verdade é uma tourão — esclareceu Hécate — mas, sim. Gale já foi uma desagradável bruxa humana. Ela cuidava muito mal da higiene pessoal, além de ter muitos, hã, problemas digestivos — Hécate balançou a mão diante do nariz. — Isso dava má fama para meus outros seguidores.
— Tudo bem.
Hazel tentou não olhar para a doninha. Ela realmente não queria saber dos problemas intestinais do roedor.
— De qualquer modo — continuou Hécate —, eu a transformei em um tourão. Ela fica muito melhor assim.
Hazel engoliu em seco. Ela olhou para o cão negro, que esfregava carinhosamente o focinho na mão da deusa.
— E o seu labrador...
— Ah, é Hécuba, ex-rainha de Troia — disse Hécate, como se isso fosse algo óbvio.
A cadela rosnou.
— Você está certa, Hécuba — disse a deusa. — Não temos tempo para longas apresentações. O fato, Hazel Levesque, é que sua mãe podia alegar não acreditar, mas ela detinha a verdadeira magia. E acabou percebendo isso. Quando buscou um feitiço para invocar o deus Plutão, eu a ajudei a encontrá-lo.
— Você...?
— Sim. — Hécate continuou andando ao redor de Hazel. — Eu vi potencial em sua mãe. E vejo ainda mais potencial em você.
Hazel ficou tonta. Ela se lembrou da confissão de sua mãe pouco antes de morrer: como invocara Plutão, como o deus se apaixonara por ela, e como, por causa de sua cobiça, sua filha Hazel nascera amaldiçoada. Hazel era capaz de extrair riquezas da terra, mas qualquer um que as usasse sofreria e morreria.
Agora, aquela deusa estava dizendo que ela provocara tudo aquilo.
— Minha mãe sofreu por causa da magia. A minha vida inteira...
— Sua vida não teria acontecido sem mim — disse Hécate simplesmente. — Eu não tenho tempo para a sua raiva. Nem você, aliás. Sem a minha ajuda, você morrerá.
A cadela rosnou. A tourão trincou os dentes e soltou gases.
Era como se os pulmões de Hazel estivessem se enchendo de areia quente.
— Que tipo de ajuda? — perguntou.
Hécate ergueu os braços pálidos. Os três portais pelos quais entrara – norte, leste e oeste – começaram a girar com a Névoa. Um turbilhão de imagens em preto e branco brilhou e cintilou, como nos velhos filmes mudos que ainda passavam às vezes nos cinemas quando Hazel era pequena.
No portal oeste, semideuses romanos e gregos com armaduras completas lutavam entre si na encosta de uma colina, sob um grande pinheiro. A grama estava repleta de feridos e moribundos. Hazel viu a si mesma montando Arion, avançando pela luta corpo a corpo e gritando, tentando pôr um fim à violência.
No portal leste, Hazel viu o Argo II caindo sobre os Apeninos. Seu cordame estava em chamas. Um pedregulho atingira o tombadilho. Outro perfurara o casco. O navio se rompeu como uma abóbora podre, e o motor explodiu.
As imagens do portal norte eram ainda piores. Hazel viu Leo inconsciente – ou morto – caindo através das nuvens. Ela viu Frank cambaleando sozinho por um túnel escuro, segurando o braço, com a camisa encharcada de sangue. E viu-se em uma vasta caverna repleta de fios de luz, como uma teia luminosa. Ela lutava para avançar enquanto, ao longe, Percy e Annabeth estavam deitados e imóveis ao pé de duas portas de metal preto e prata.
— Escolhas — disse Hécate. — Você está em uma encruzilhada, Hazel Levesque. E eu sou a deusa das encruzilhadas.
O chão sob os pés de Hazel tremeu. Ela olhou para baixo e viu o reflexo de moedas de prata... milhares de antigos denários romanos irrompendo na superfície ao seu redor, como se toda a colina estivesse fervilhando. Ela estava tão agitada por conta das visões nos portais que devia ter invocado toda a prata dos campos ao redor.
— Neste lugar, o passado fica próximo à superfície — disse Hécate. — Nos tempos antigos, duas grandes estradas romanas se encontravam neste ponto. Notícias eram trocadas. Negócios eram realizados. Amigos se encontravam, e inimigos lutavam. Exércitos inteiros tinham de escolher uma direção. Encruzilhadas sempre são lugares de decisão.
— Como... como Jano.
Hazel se lembrou do santuário de Jano na Colina dos Templos, no Acampamento Júpiter. Os semideuses iam até lá para tomar decisões. Lançavam uma moeda, cara ou coroa, e esperavam que o deus de duas faces os guiasse pelo bom caminho.
Hazel sempre odiara aquele lugar. Nunca entendera por que seus amigos estavam tão dispostos a colocar suas escolhas na mão de um deus. Depois de tudo o que passara, Hazel confiava na sabedoria dos deuses tanto quanto confiava em uma máquina caça-níqueis de Nova Orleans.
A deusa da magia sibilou, enojada.
— Jano e seus portais. Para ele, todas as opções são preto ou branco, sim ou não, dentro ou fora. Na verdade, não é tão simples assim. Sempre que você chega a uma encruzilhada, há ao menos três maneiras de prosseguir... quatro, se você contar com a possibilidade de retornar. Você está em uma encruzilhada assim agora, Hazel.
Hazel olhou de novo para cada portal: uma guerra de semideuses, a destruição do Argo II, sua ruína e a de seus amigos.
— Todas as escolhas são ruins.
— Todas as escolhas implicam riscos — corrigiu a deusa. — Mas qual é o seu objetivo?
— Meu objetivo? — Hazel apontou impotente para os portais. — Nenhum deles.
Hécuba rosnou. Gale, a tourão, descreveu um círculo ao redor dos pés da deusa, peidando e mostrando os dentes.
— Você poderia voltar — sugeriu Hécate. — Retornar a Roma... mas as forças de Gaia estão esperando por isso. Nenhum de vocês sobreviverá.
— Então... o que você sugere?
Hécate se aproximou da tocha mais próxima. Ela pegou um punhado de fogo e esculpiu as chamas até ter em suas mãos um pequeno mapa em relevo da Itália.
— Você pode ir para oeste — Hécate afastou o dedo do mapa flamejante — volte para a América com o seu prêmio, a Atena Partenos. Seus companheiros em casa, gregos e romanos, estão à beira da guerra. Volte agora e talvez salve muitas vidas.
— Talvez — repetiu Hazel — mas Gaia deve acordar na Grécia. É lá que os gigantes estão se reunindo.
— Verdade. Gaia escolheu o dia primeiro de agosto, a Festa de Spes, deusa da esperança, para a sua ascensão ao poder. Ao acordar no Dia da Esperança, ela pretende destruir para sempre toda a esperança. Mesmo que você consiga chegar à Grécia a tempo, conseguirá detê-la?
— Eu não sei.
Hécate correu o dedo ao longo dos Apeninos flamejantes.
— Você pode ir para leste, atravessando as montanhas, mas Gaia vai fazer de tudo para impedi-la de cruzar a Itália. Ela lançou os deuses da montanha contra vocês.
— Percebemos — disse Hazel.
— Qualquer tentativa de atravessar os Apeninos resultará na destruição de seu navio. Ironicamente, esta pode ser a opção mais segura para a sua tripulação. Prevejo que todos vocês sobreviveriam à explosão. É possível, embora improvável, que você ainda possa chegar a Épiro e fechar as Portas da Morte. Você poderia encontrar Gaia e impedir a sua ascensão. Mas, a essa altura, ambos os acampamentos dos semideuses estariam destruídos. Você não teria um lar para onde voltar — Hécate sorriu — provavelmente, a destruição de seu navio os deixaria presos nas montanhas. Isso significaria o fim de sua missão, mas pouparia você e seus amigos de muita dor e sofrimento nos dias que virão. A guerra contra os gigantes teria de ser ganha ou perdida sem vocês.
Ganha ou perdida sem nós.
Uma pequena e culpada parte de Hazel achou aquilo tentador. Ela ansiava pela chance de ser uma garota normal. Não queria mais nenhuma dor ou sofrimento para si ou para seus amigos. Eles já haviam sofrido tanto...
Hazel olhou para o portal do meio, atrás de Hécate. Viu Percy e Annabeth caídos diante daquelas portas pretas e prata. Uma enorme forma escura, vagamente humanoide, pairava agora sobre eles com o pé erguido, como se estivesse a ponto de esmagar Percy.
— E eles? — perguntou Hazel, com a voz falhando. — Percy e Annabeth?
Hécate deu de ombros.
— Oeste, leste, ou sul... eles morrem.
— Não é uma opção — disse Hazel.
— Então você tem apenas um caminho, embora seja o mais perigoso.
Hécate arrastou o dedo pelos Apeninos em miniatura, deixando uma linha branca brilhante sobre as chamas vermelhas.
— Há uma passagem secreta aqui no norte, um lugar sob o meu controle, por onde Aníbal cruzou certa vez quando marchou contra Roma.
A deusa traçou uma longa volta... até o topo da Itália, depois para leste sobre o mar e, em seguida, para o sul, ao longo da costa ocidental da Grécia.
— Depois de atravessarem a passagem, vocês viajarão para o norte até Bolonha, e, depois, para Veneza. A partir daí, navegarão no Mar Adriático até o seu objetivo: Épiro, na Grécia.
Hazel não era muito boa em geografia. Não tinha ideia de como era o Mar Adriático. Nunca ouvira falar de Bolonha, e tudo o que sabia sobre Veneza eram histórias vagas sobre canais e gôndolas. Mas uma coisa era óbvia:
— Isso é tão fora de mão...
— Justamente por isso Gaia não vai esperar que vocês sigam por este caminho — disse Hécate — posso ocultar um pouco o seu progresso, mas o sucesso de sua viagem dependerá de você, Hazel Levesque. Você deverá aprender a usar a Névoa.
— Eu? — O coração de Hazel estava disparado. — Usar a Névoa como?
Hécate apagou seu mapa da Itália. Em seguida, acenou em direção a Hécuba. A Névoa se concentrou ao redor da labradora até ela estar completamente envolvida por um casulo branco.
A neblina desapareceu com um sonoro puft! e, no lugar da cadela, surgiu uma gatinha preta e tristonha com olhos dourados.
— Miau — reclamou.
— Eu sou a deusa da Névoa — explicou Hécate. — Sou responsável por manter o véu que separa o mundo dos deuses do mundo dos mortais. Meus filhos aprendem a usar a Névoa a seu favor, para criar ilusões ou influenciar as mentes dos mortais. Outros semideuses também podem fazer isso. Assim como você, Hazel, se quiser ajudar os seus amigos.
— Mas... — Hazel olhou para a gata. Ela sabia que, na verdade, era Hécuba, a labradora preta, mas não conseguia acreditar. A gata parecia tão real. — Eu não vou conseguir fazer isso.
— Sua mãe tinha o dom — disse Hécate. — O seu é ainda maior. Como filha de Plutão que voltou dos mortos, você entende o véu entre os mundos melhor do que a maioria. Você pode controlar a Névoa. Caso contrário... bem, seu irmão Nico já a advertiu. Os espíritos sussurraram para ele, contaram-lhe sobre o seu futuro. Quando chegar à casa de Hades, você encontrará uma inimiga formidável. Ela não pode ser vencida pela força ou pela espada. Só você poderá derrotá-la, e para isso precisará de magia.
Hazel sentiu as pernas ficarem fracas. Ela se lembrou da expressão séria de Nico enquanto ele apertava seu braço com força. Você não pode contar para os outros. Ainda não. A coragem deles já está no limite.
— Quem? — perguntou Hazel com a voz trêmula. — Quem é essa inimiga?
— Não pronunciarei o nome dela — disse Hécate. — Isso seria o mesmo que alertá-la sobre a sua presença antes de você estar pronta para enfrentá-la. Vá para o norte, Hazel. Pratique invocar a Névoa durante a viagem. Quando chegar a Bolonha, procure os dois anões. Eles os levarão a um tesouro que poderá ajudá-los a sobreviver na Casa de Hades.
— Não entendi.
— Miau — reclamou a gatinha.
— Está bem, está bem, Hécuba — a deusa moveu a mão outra vez.
A gata desapareceu e a labradora preta ocupou o seu lugar.
— Você vai entender, Hazel — prometeu a deusa. — De vez em quando, enviarei Gale para verificar o seu progresso.
A tourão sibilou, com os olhos vermelhos e redondos repletos de malícia.
— Maravilha — murmurou Hazel.
— Antes de chegar a Épiro, você deverá estar preparada. Se conseguir, então talvez nos encontremos novamente... para a batalha final.
Uma batalha final, pensou Hazel. Ah, que alegria.
Hazel perguntou-se se seria capaz de impedir as previsões que vira na Névoa: Leo caindo pelo céu; Frank cambaleando no escuro, sozinho e gravemente ferido; Percy e Annabeth à mercê de um gigante sombrio. Ela odiava os enigmas dos deuses e seus conselhos obscuros. E estava começando a detestar encruzilhadas.
— Por que está me ajudando? — perguntou Hazel. — No Acampamento Júpiter disseram que você tomou o partido dos titãs na última guerra.
Os olhos escuros de Hécate brilharam.
— Porque eu sou uma titã, filha de Perses e Astéria. Muito antes de os Olimpianos chegarem ao poder, eu dominava a Névoa. Apesar disso, na Primeira Guerra dos Titãs, há milênios, lutei ao lado de Zeus contra Cronos. Eu não estava cega para a crueldade de Cronos. E esperava que Zeus se mostrasse um rei melhor.
Ela deu uma curta risada amarga.
— Quando Deméter perdeu a filha Perséfone, sequestrada por seu pai, eu a guiei com as minhas tochas pela noite mais escura, ajudando-a na busca. E quando os gigantes se ergueram pela primeira vez, de novo fiquei do lado dos deuses. Lutei contra meu arqui-inimigo, Clítio, criado por Gaia para absorver e derrotar toda a minha magia.
— Clítio — Hazel nunca ouvira esse nome, mas pronunciá-lo fez os seus membros parecerem mais pesados. Ela olhou para as imagens no portal norte: a enorme forma escura pairando sobre Percy e Annabeth. — Ele é a ameaça na Casa de Hades?
— Ah, ele está lá à sua espera — disse Hécate. — Mas primeiro você deve derrotar a bruxa. Se não conseguir...
Ela estalou os dedos, escurecendo todos os portais. A Névoa se dissipou, e as imagens desapareceram.
— Todos precisamos fazer escolhas — disse a deusa. — Quando Cronos se rebelou pela segunda vez, cometi um erro. Eu o apoiei. Estava cansada de ser ignorada pelos chamados deuses maiores. Mesmo com todos os meus anos de serviço fiel, ainda desconfiavam de mim, não permitiam que eu ocupasse um lugar no seu salão...
A tourão Gale chiou com raiva.
— Isso não importa mais — a deusa suspirou — fiz as pazes com o Olimpo. Mesmo agora que estão por baixo, com suas personalidades gregas e romanas lutando entre si, eu os ajudarei. Grega ou romana, sempre fui apenas Hécate. Vou ajudá-los na luta contra os gigantes, se você se mostrar digna dessa ajuda. Portanto, a escolha é sua, Hazel Levesque. Você vai confiar em mim... ou vai me desprezar, como os deuses do Olimpo fizeram tantas vezes?
O sangue rugia nos ouvidos de Hazel. Poderia confiar naquela deusa sombria, que dera para a sua mãe a magia que arruinara a sua vida? Não. E não gostara muito do cão de Hécate e da doninha peidona.
Mas também sabia que não podia deixar Percy e Annabeth morrerem.
— Seguirei para o norte — respondeu — usaremos a sua passagem secreta pelas montanhas.
Hécate assentiu, com uma ponta de satisfação no rosto.
— Você escolheu bem, mas o caminho não será fácil. Muitos monstros enfrentarão vocês. Até mesmo alguns de meus próprios servos passaram para o lado de Gaia, na esperança de destruir o seu mundo mortal.
A deusa pegou as duas tochas de seus suportes.
— Prepare-se, filha de Plutão. Se você conseguir derrotar a bruxa, nós nos encontraremos novamente.
— Vou conseguir — prometeu Hazel — e, Hécate? Saiba que não estou escolhendo um de seus caminhos. Farei o meu próprio.
A deusa arqueou as sobrancelhas. A tourão se contorceu, e a cadela rosnou.
— A gente vai descobrir uma maneira de deter Gaia — disse Hazel. — E vamos resgatar os nossos amigos do Tártaro. Manteremos a tripulação e o navio unidos e impediremos que o Acampamento Júpiter e o Acampamento Meio-Sangue entrem em guerra. Faremos tudo.
A tempestade uivava, e as paredes negras do tornado giravam cada vez mais rápido.
— Interessante — disse Hécate, como se Hazel fosse o resultado inesperado de uma experiência científica. — Essa seria uma magia especial.
Uma onda negra obscureceu o mundo. Quando Hazel voltou a enxergar, a tempestade, a deusa e seus minions haviam desaparecido. Hazel ficou na encosta da colina sob o sol da manhã, sozinha em meio às ruínas, com exceção de Arion, que trotava ao seu lado, relinchando, impaciente.
— Concordo — disse Hazel para o cavalo. — Vamos sair daqui.

* * *

— O que aconteceu? — perguntou Leo quando Hazel embarcou no Argo II.
As mãos da menina ainda tremiam por conta da conversa com a deusa. Ela olhou pela amurada e viu o rastro de poeira levantado por Arion enquanto ele cruzava as colinas da Itália. Queria que o amigo tivesse ficado, mas não podia culpá-lo por querer se afastar daquele lugar o mais rápido possível.
O campo brilhava à medida que o sol de verão iluminava o orvalho matinal. Na colina, as velhas ruínas brancas permaneciam silenciosas – nenhum sinal de estradas antigas, deusas ou doninhas peidonas.
— Hazel — chamou Nico.
Seus joelhos falharam. Nico e Leo a agarraram pelos braços e ajudaram-na a subir os degraus do tombadilho. Ela ficou envergonhada por estar desfalecendo como uma donzela de conto de fadas, mas a sua energia se esgotara. A lembrança daquelas cenas na encruzilhada a enchiam de pavor.
— Estive com Hécate — conseguiu dizer.
Ela não contou tudo. Lembrou-se da advertência de Nico: a coragem deles já está no limite. Mas falou sobre a passagem secreta pelas montanhas ao norte, e sobre a rota que, segundo Hécate, poderia levá-los até Épiro.
Quando terminou o relato, Nico segurou sua mão. Os olhos dele estavam repletos de preocupação.
— Hazel, você encontrou Hécate em uma encruzilhada. Isso é... isso é algo a que muitos semideuses não sobreviveriam. E aqueles que sobrevivem nunca são os mesmos. Tem certeza de que você...
— Eu estou bem — insistiu ela.
Mas sabia que não estava. Hazel se lembrou de como havia se sentido ousada e furiosa ao dizer à deusa que encontraria o seu próprio caminho e faria tudo. Agora, sua resposta orgulhosa parecia ridícula. Sua coragem a abandonara.
— E se Hécate estiver nos enganando? — perguntou Leo. — Essa rota pode ser uma armadilha.
Hazel balançou a cabeça em negativa.
— Se fosse uma armadilha, acho que Hécate teria feito a rota norte parecer tentadora. Acredite, ela não fez isso.
Leo tirou uma calculadora do cinto e apertou alguns números.
— Isso fica uns... quatrocentos e oitenta quilômetros fora de nosso caminho para chegar a Veneza. Então, teríamos de voltar e descer o Adriático. E você disse algo sobre anões pamonhas?
— Anões em Bolonha — corrigiu Hazel. — Acho que Bolonha é uma cidade. Mas por que temos que encontrar anões por lá... não faço ideia. Tem a ver com algum tesouro para nos ajudar em nossa busca.
— Hum — murmurou Leo. — Quer dizer, adoro tesouros, mas...
— É a nossa melhor opção — opinou Nico, ajudando Hazel a se levantar. — Precisamos recuperar o tempo perdido, viajar o mais rápido que pudermos. A vida de Percy e Annabeth pode depender disso.
— Rápido? — Leo sorriu. — Deixa comigo.
Ele correu até o painel de controle e começou a acionar interruptores.
Nico segurou o braço de Hazel e conduziu-a até onde não pudessem ser ouvidos.
— O que mais Hécate falou? Nada sobre...
— Não posso — interrompeu Hazel.
As imagens que vira haviam sido devastadoras: Percy e Annabeth indefesos diante daquelas portas de metal negro, o gigante sombrio pairando sobre os dois, ela mesma presa em um labirinto de luz brilhante, incapaz de ajudar.
Você deve derrotar a bruxa, dissera Hécate. Só você pode derrotá-la. Se não conseguir...
O fim, pensou Hazel. Todos os portais fechados. Toda a esperança extinta.
Nico a advertira. Ele se comunicara com os mortos, ouvira-os murmurando pistas sobre o seu futuro. Dois filhos do Mundo Inferior entrariam na Casa de Hades. Teriam de enfrentar um inimigo impossível. Apenas um deles conseguiria chegar às Portas da Morte.
Hazel não conseguia encarar o irmão.
— Eu lhe digo mais tarde — prometeu, tentando manter a voz firme. — Agora devemos descansar enquanto podemos. Hoje à noite, cruzaremos os Apeninos.

Capítulo V - Annabeth

NOVE DIAS.
Enquanto caía, Annabeth pensou em Hesíodo, o antigo poeta grego que especulara que o tempo que leva para alguém cair da terra até o Tártaro seria de nove dias.
Esperava que Hesíodo estivesse errado. Tinha perdido a noção de por quanto tempo Percy e ela estavam caindo... horas? Um dia? Parecia uma eternidade. Eles estavam de mãos dadas desde que foram lançados no abismo. Depois, Percy a havia puxado mais para perto, abraçando-a com força enquanto despencavam pela escuridão absoluta.
O vento assoviava nos ouvidos de Annabeth. O ar ia ficando mais quente e úmido, como se estivessem mergulhando na garganta de um dragão enorme. O tornozelo quebrado latejava, mas não sabia dizer se ainda estava envolto em teias de aranha.
Aracne, aquele monstro maldito. Apesar de ter sido capturada por sua própria teia, atropelada por um carro e lançada no Tártaro, a aranha tinha conseguido sua vingança. De algum modo, seu fio de seda tinha se emaranhado na perna de Annabeth e a puxado para o abismo, arrastando Percy junto.
Annabeth não podia imaginar que Aracne ainda estivesse viva em algum lugar na escuridão abaixo deles. Não queria encontrar aquele monstro outra vez quando chegassem ao fundo.
Pensando pelo lado positivo, supondo que houvesse um fundo, Annabeth e Percy provavelmente seriam esmagados com o impacto, por isso aranhas gigantes eram a menor de suas preocupações.
Abraçou Percy e tentou não chorar. Ela nunca havia esperado que sua vida fosse fácil. A maioria dos semideuses morria jovem nas mãos de monstros terríveis. Era assim desde a Antiguidade. Os gregos inventaram a tragédia. Eles sabiam que os maiores heróis não tinham finais felizes.
Mesmo assim, não era justo. Ela tinha passado por tanta coisa para recuperar aquela estátua de Atena. Quando enfim conseguiu e as coisas estavam parecendo melhorar e ela reencontrara Percy, eles tinham despencado para a morte.
Nem os deuses poderiam imaginar um destino tão cruel.
Mas Gaia não era como os outros deuses. A Mãe Terra era mais velha, mais perversa, mais sanguinária. Annabeth podia imaginá-la rindo enquanto eles despencavam nas profundezas.
Annabeth encostou os lábios no ouvido de Percy.
— Eu te amo.
Não sabia se ele podia ouvi-la, mas, se morressem, queria que aquelas fossem suas últimas palavras.
Tentou desesperadamente pensar em um plano para salvá-los. Era uma filha de Atena. Tinha provado seu valor nos túneis sob Roma, superado uma série de desafios apenas com sua inteligência. Mas não conseguia pensar em um modo de reverter ou mesmo reduzir a velocidade de sua queda.
Nenhum deles tinha o poder de voar, não como Jason, que era capaz de controlar o vento, ou Frank, que podia se transformar em um animal alado. Se chegassem ao fundo em velocidade terminal... bem, ela entendia o suficiente de física para saber que seria terminal.
Estava se perguntando seriamente se eles poderiam montar um paraquedas com suas camisas (sim, o desespero chegara a esse ponto) quando algo mudou ao seu redor. A escuridão assumiu um tom cinza avermelhado. Ela se deu conta de que enxergava os cabelos de Percy. O assovio em seus ouvidos se transformou em algo mais parecido com um rugido. O ar ficou insuportavelmente quente, permeado por um fedor que lembrava ovos podres.
De repente, o poço por onde estavam caindo se abriu em uma caverna ampla. Annabeth conseguiu ver o fundo cerca de um quilômetro abaixo deles. Por um instante, ficou atônita demais para pensar direito. Toda a ilha de Manhattan caberia no interior daquela caverna. E ela nem conseguia vê-la por inteiro. Nuvens vermelhas pairavam no ar como se fossem vapor de sangue. A paisagem, pelo menos o que podia ver dela, era composta por uma planície negra rochosa, pontuada por montanhas íngremes e abismos causticantes. À esquerda de Annabeth, o chão se abria numa série de penhascos semelhantes a degraus colossais que levavam para ainda mais fundo do abismo.
O fedor de enxofre dificultava a concentração, mas ela encarou o chão diretamente abaixo deles e viu uma faixa de um líquido negro reluzente, um rio.
— Percy! — gritou no ouvido dele. — Água!
Gesticulou freneticamente. Era difícil interpretar a expressão de Percy naquela penumbra avermelhada. Ele parecia exausto, em estado de choque e apavorado, mas assentiu com a cabeça como se tivesse entendido.
Percy era capaz de controlar a água, supondo que o que estivesse abaixo deles fosse água. Ele podia dar um jeito de suavizar a queda. Claro que Annabeth tinha ouvido histórias horríveis sobre os rios do Mundo Inferior. Eles podiam roubar suas lembranças, queimar seu corpo e sua alma até virarem cinzas. Mas decidiu não pensar nisso. Aquela era sua única chance.
O rio se aproximava rapidamente. No último segundo, Percy soltou um grito desafiador, e então a água jorrou em um gêiser gigantesco que os engoliu inteiros.

Capítulo VI - Annabeth

O IMPACTO NÃO A MATOU, mas o frio quase conseguiu.
A água congelante expulsou o ar de seus pulmões. Seus membros ficaram rígidos e ela soltou Percy e começou a afundar. Gemidos estranhos enchiam seus ouvidos, milhões de vozes infelizes, como se o rio fosse feito de tristeza destilada. As vozes eram piores que o frio. Elas a faziam afundar e deixavam seu corpo dormente.
Por que lutar?, perguntaram a ela. Você já está morta mesmo. Nunca vai sair deste lugar.
Ela podia submergir até o fundo e se afogar, deixar que o rio levasse seu corpo. Seria mais fácil. Podia simplesmente fechar os olhos...
Percy agarrou sua mão e a puxou de volta para a realidade. Ela não conseguia vê-lo na água escura, mas de repente não queria mais morrer. Juntos, nadaram e chegaram à superfície.
Annabeth encheu os pulmões, agradecida pelo ar, por mais sulfuroso que fosse. A água girava em volta deles, e ela se deu conta de que Percy estava criando um rodamoinho para fazê-los flutuar.
Apesar de não conseguir ver o que havia ao redor, sabia que aquilo era um rio. E rios tinham margens.
— Terra — disse com voz rouca. — Vá para o lado.
Percy parecia morto de exaustão. Normalmente a água o revigorava, mas não aquela água. Controlá-la devia ter exigido toda a sua energia. O rodamoinho começou a se dissipar.
Annabeth passou um braço pela cintura dele e lutou contra a corrente. O rio estava contra ela: milhares de vozes chorosas murmurando em seus ouvidos, em seus pensamentos.
Vida é desespero, diziam elas. Nada faz sentido, e depois você morre.
— Sem sentido — murmurou Percy.
Seus dentes batiam de frio. Ele parou de nadar e começou a afundar.
— Percy! — gritou ela. — O rio está mexendo com a sua cabeça. É o Cócito, o Rio das Lamentações. Ele é feito de infelicidade!
— Infelicidade — concordou ele.
— Resista!
Ela movia as pernas e fazia um enorme esforço para manter os dois na superfície. Outra piada cósmica para a diversão de Gaia: Annabeth morre tentando impedir que o namorado, o filho de Poseidon, se afogue.
Não vai acontecer, sua bruxa, pensou Annabeth.
Abraçou Percy com mais força e o beijou.
— Conte-me sobre Nova Roma — pediu. — Quais eram seus planos para nós?
— Nova Roma... para nós...
— É, Cabeça de Alga. Você disse que poderíamos ter um futuro, lá! Me fale sobre isso!
Annabeth nunca tivera vontade de deixar o Acampamento Meio-Sangue. Era o único lar de verdade que conhecera. Mas alguns dias antes, no Argo II, Percy dissera que imaginava um futuro para os dois entre os semideuses romanos. Na cidade de Nova Roma, veteranos da legião podiam se estabelecer com segurança, fazer faculdade, se casar e até ter filhos.
— Arquitetura — murmurou Percy. Seus olhos começaram a entrar em foco. — Achei que você ia gostar das casas, dos parques. Tem uma rua cheia de chafarizes bem legais.
Annabeth já conseguia vencer a correnteza. Seus membros pareciam sacos de areia molhada, mas Percy agora a estava ajudando. A linha escura da margem estava a alguns metros de distância.
— Faculdade — disse ela, ofegante. — Será que poderíamos estudar juntos?
— É... É — concordou ele, com um pouco mais de segurança.
— O que você estudaria, Percy?
— Não sei — admitiu ele.
— Biologia marinha? — sugeriu ela. — Oceanografia?
— Surfe? — perguntou ele.
Ela riu. O som produziu uma onda pela água, e o impacto fez os lamentos se reduzirem a um ruído de fundo. Annabeth se perguntou se alguém já havia rido antes no Tártaro, apenas uma risada pura e simples de prazer. Ela duvidava.
Usou o que restava de suas forças para alcançar a beira do rio. Seus pés afundaram no leito arenoso, e ela e Percy saíram da água com dificuldade. Os dois tremiam, ofegavam e desmoronaram sobre a areia escura.
Annabeth queria se encolher junto de Percy e dormir. Queria fechar os olhos, na esperança de que tudo aquilo fosse apenas um pesadelo, e acordar no Argo II, em segurança e junto de seus amigos (bem... tão em segurança quanto pode estar um semideus).
Mas, não. Eles estavam mesmo no Tártaro. Aos seus pés, o Rio Cócito passava rugindo, uma torrente de tristeza e infelicidade líquidas. O ar sulfuroso fazia os pulmões e a pele de Annabeth arderem. Quando olhou para os braços, viu que já estavam cobertos com feias manchas vermelhas. Ela tentou se sentar, mas ofegou de dor.
A praia não era de areia. Estavam sentados em um campo de cacos de vidro afiados, alguns dos quais agora estavam nas mãos de Annabeth.
Então o ar era ácido. A água era infelicidade. O chão era vidro quebrado. Tudo ali era feito para machucar e matar. Annabeth respirou fundo com dificuldade e se perguntou se as vozes no Cócito estavam certas. Talvez lutar pela vida não fizesse sentido. Eles estariam mortos em menos de uma hora.
Percy tossiu ao seu lado.
— O cheiro deste lugar é igualzinho ao do meu ex-padrasto.
Annabeth conseguiu dar um leve sorriso. Não conhecia Gabe Cheiroso, mas já ouvira várias histórias sobre ele. Amava Percy por tentar melhorar seu ânimo.
Se tivesse caído no Tártaro sozinha, pensou Annabeth, estaria condenada. Depois de tudo pelo que passara no subterrâneo de Roma e de ter encontrado a Atena Partenos, aquilo era simplesmente demais. Ela teria se encolhido e chorado até se transformar em outro fantasma e se dissolver no Cócito.
Mas não estava sozinha. Tinha Percy. E aquilo significava que não podia desistir.
Ela se concentrou para avaliar a situação. Seu pé continuava envolto na tala improvisada com madeira e plástico bolha, ainda emaranhado em teias de aranha. Mas quando o moveu, não sentiu dor. A ambrosia que comera nos túneis sob Roma devia finalmente ter curado a sua fratura.
Sua mochila tinha desaparecido, perdida durante a queda, ou talvez levada pelo rio. Odiou ter perdido o laptop de Dédalo, com todos os seus programas e informações fantásticos, mas tinha problemas piores: sua faca de bronze celestial tinha sumido, a arma que carregava desde os sete anos.
Quando percebeu essa perda, quase desmoronou, mas não podia se permitir pensar muito nisso. Mais tarde teria tempo para chorar. O que mais eles tinham?
Sem comida, sem água... basicamente sem suprimentos.
É. Um começo bastante promissor.
Annabeth olhou para Percy, que estava com uma aparência péssima. Seus cabelos negros estavam grudados na testa, e a camiseta, toda esfarrapada. Seus dedos haviam ficado em carne viva por terem se agarrado à beira do precipício antes de caírem. O mais preocupante de tudo: ele não parava de tremer, e seus lábios estavam azuis.
— Precisamos ficar em movimento ou vamos ter hipotermia — disse Annabeth. — Você consegue se levantar?
Ele assentiu com a cabeça. Os dois fizeram um grande esforço para ficar de pé.
Annabeth o abraçou pela cintura, mas não tinha certeza de quem estava dando apoio a quem. Ela examinou os arredores. Acima, não viu sinal do túnel pelo qual haviam caído. Não conseguia enxergar nem o teto da caverna, apenas nuvens cor de sangue flutuando no ar cinza e enevoado. Era como olhar através de uma mistura de cimento com sopa de tomate.
A praia de cacos de vidro se estendia por uns cinquenta metros, até a beira de um precipício. De onde estava, Annabeth não conseguia ver o que havia abaixo, mas a borda tremeluzia com luz vermelha como se estivesse iluminada por grandes fogueiras.
Uma lembrança distante a incomodou, algo sobre o Tártaro e fogo. Antes que pudesse pensar melhor, Percy arquejou.
— Veja! — Ele apontou rio abaixo.
A uns trinta metros de distância, um carro italiano azul-bebê familiar tinha batido de frente na areia. Parecia exatamente o Fiat que caíra sobre Aracne e a arremessara no abismo.
Annabeth esperava estar errada, mas quantos carros esportivos italianos poderia haver no Tártaro? Parte dela não queria chegar nem perto do veículo, mas ela precisava descobrir. Agarrou a mão de Percy com força, e os dois foram cambaleantes na direção do carro destruído.
Um dos pneus tinha se soltado e estava flutuando sobre um rodamoinho em um remanso do Cócito. As janelas do Fiat tinham se espatifado, e uma camada de vidro mais claro cobria a praia escura como se fosse neve. Sob o capô amassado havia os restos reluzentes de um gigantesco casulo de seda, a armadilha que Annabeth fizera Aracne tecer. Não havia dúvida de que estava vazia. Riscos na areia formavam uma trilha que levava rio abaixo... como se algo pesado e com várias pernas tivesse corrido para se esconder na escuridão.
— Ela está viva. — Annabeth estava tão horrorizada, tão revoltada com toda aquela injustiça, que teve ânsias de vômito.
— É o Tártaro — disse Percy. — Lar e corte dos monstros. Talvez aqui embaixo eles não possam ser mortos.
Olhou envergonhado para Annabeth, como se percebesse que não estava ajudando o moral da equipe.
— Ou talvez esteja gravemente ferida e tenha rastejado para morrer em algum lugar.
— Vamos torcer para que seja isso — concordou Annabeth.
Percy ainda tremia. Annabeth também não estava se sentindo mais aquecida, apesar do ar quente e úmido. Os cortes de vidro em suas mãos ainda sangravam, o que era estranho. Ela costumava se curar rapidamente. Sua respiração foi ficando entrecortada.
— Este lugar está nos matando — disse ela. — Quer dizer, ele vai literalmente nos matar, a menos que...
Tártaro. Fogo . A lembrança distante surgiu em sua mente. Ela olhou para a terra adiante, para o penhasco iluminado por chamas.
Era uma ideia absolutamente louca. Mas podia ser sua única chance.
— A menos que o quê? — perguntou Percy. — Você tem um plano brilhante, não tem?
— É um plano — murmurou Annabeth. — Não sei se brilhante. Temos que encontrar o Rio de Fogo.

Capítulo VII - Annabeth

QUANDO CHEGARAM À BEIRADA DO penhasco, Annabeth tinha certeza de que os estava levando para a morte.
O precipício tinha mais de trinta metros de altura. No fundo havia uma versão pesadelo do Grand Canyon: um rio de fogo passando por fendas obsidianas irregulares. A corrente vermelha brilhante projetava sombras terríveis nas faces rochosas do penhasco.
Mesmo do alto do cânion, o calor era intenso. O frio do Rio Cócito não tinha saído dos ossos de Annabeth, mas agora sentia o rosto ardido parecendo queimado de sol. Respirar era cada vez mais difícil, como se seu peito estivesse cheio de bolinhas de isopor. Os cortes na mão sangravam mais em vez de menos. O pé de Annabeth, que estava praticamente curado, parecia piorar de novo. Ela havia tirado a tala improvisada, mas agora estava arrependida. Seu rosto se contorcia de dor a cada passo.
Supondo que conseguissem chegar ao rio de chamas, o que ela duvidava, seu plano parecia uma insanidade absoluta.
— Hã... — Percy examinou o penhasco.
Ele apontou para uma pequena fissura que descia em diagonal da beirada até o fundo.
— A gente podia tentar aquela saliência. Talvez dê para descer por ali.
Ele não disse que seria loucura tentar. Conseguiu parecer esperançoso. Annabeth ficou feliz por isso, mas continuava preocupada por talvez estar conduzindo-o para a morte.
Claro que se ficassem ali iam morrer de qualquer jeito. O ar quente do Tártaro estava deixando seus braços cobertos de bolhas. Aquele ambiente era quase tão saudável quanto a área de uma explosão nuclear.
Percy foi na frente. A saliência mal era larga o bastante para eles apoiarem as pontas dos pés. Suas mãos procuraram qualquer rachadura na rocha vítrea. Toda vez que Annabeth se apoiava no pé machucado, tinha vontade de gritar de dor. Tinha arrancado as mangas da camiseta e usado o tecido para envolver as palmas das mãos sangrentas, mas seus dedos ainda estavam fracos e escorregadios.
Alguns passos abaixo dela, Percy resmungou enquanto procurava outro apoio para a mão.
— Então... como se chama mesmo esse rio?
— Flegetonte — disse ela. — Você devia se concentrar em descer.
— Flegetonte?
Ele seguia caminhando pela saliência estreita e se segurava onde podia.
Tinham percorrido um terço do caminho até o fundo do penhasco, mas, da altura em que estavam, ainda morreriam se caíssem.
— Parece até nome de bicho pré-histórico: flegetonte, mastodonte...
— Por favor, não me faça rir — disse ela.
— Só estou tentando aliviar o clima.
— Obrigada — grunhiu Annabeth, quase pisando fora da saliência com o pé machucado. — Vou despencar para a morte com um sorriso no rosto.
Eles seguiram em frente, um passo de cada vez. Os olhos de Annabeth ardiam com o suor. Seus braços tremiam. Mas, para sua surpresa, finalmente chegaram ao fim do penhasco.
Quando chegou ao fundo, tropeçou. Percy a segurou. Annabeth ficou assustada ao sentir que a pele dele fervia. Bolhas vermelhas haviam irrompido em seu rosto, fazendo-o parecer uma vítima de varíola.
Sua própria visão estava embaçada. Sentia como se a garganta estivesse cheia de bolhas, e seu estômago estava mais apertado que um punho cerrado.
Temos de nos apressar, pensou.
— Só até o rio — disse a Percy, tentando não parecer em pânico. — Vamos conseguir.
Caminharam com dificuldade por saliências escorregadias de vidro, contornando enormes blocos de rocha e evitando estalagmites que os teriam empalado ao menor escorregão. Suas roupas esfarrapadas soltavam vapor devido ao calor do rio, mas eles seguiram em frente até caírem de joelhos às margens do Flegetonte.
— Temos de beber — disse Annabeth.
Percy hesitou com os olhos semicerrados. Ele contou até três antes de responder.
— Er... beber fogo?
— O Flegetonte corre do reino de Hades para o Tártaro. — Annabeth mal conseguia falar. Sua garganta estava se fechando por conta do calor e do ar ácido. — O rio é usado para punir os maus. Mas além disso... algumas lendas o chamam de Rio da Cura.
— Algumas lendas?
Annabeth engoliu em seco, tentando não desmaiar.
— O Flegetonte preserva os maus para que eles tenham que suportar os tormentos dos Campos de Punição. Eu acho que... pode ser o equivalente do Mundo Inferior da ambrosia e do néctar.
O rosto de Percy se contorceu quando cinzas se ergueram do rio e giraram perto dele.
— Mas isso é fogo. Como vamos...
— Assim. — Annabeth enfiou as mãos no rio.
Burrice? Sim, mas ela estava convencida de que não tinham escolha. Se esperassem um pouco mais, iriam desmaiar e morrer. Era melhor tentar algo idiota e torcer para funcionar.
Ao primeiro contato, o fogo não era doloroso. Ele parecia frio, o que provavelmente significava que era tão quente que estava sobrecarregando os nervos de Annabeth. Antes que pudesse mudar de ideia, pegou um pouco do líquido flamejante nas mãos em concha e o levou à boca.Esperava que tivesse um gosto parecido com o de gasolina. Mas era muito pior.
Certa vez, em um restaurante lá em São Francisco, ela tinha cometido o erro de provar a pimenta mais picante do mundo, que vinha com um prato de comida indiana. Após mordiscá-la, achou que seu sistema respiratório fosse implodir. Beber do Flegetonte era como virar um copo do suco concentrado daquela pimenta. Suas cavidades nasais se encheram de chamas líquidas. A boca parecia estar sendo frita. Os olhos derramaram lágrimas ferventes, e todos os poros de seu rosto pipocaram. Ela desmoronou, engasgando e vomitando enquanto o corpo inteiro tremia violentamente.
— Annabeth! — Percy agarrou seus braços, impedindo-a por pouco de rolar para dentro do rio.
O acesso passou. Ela respirou fundo com dificuldade e conseguiu se sentar. Sentia-se horrivelmente fraca e enjoada, mas a respiração seguinte foi mais fácil. As bolhas nos braços começaram a sumir.
— Funcionou — disse com voz rouca. — Percy, você precisa beber.
— Eu... — Ele revirou os olhos e caiu sobre ela.
Desesperada, Annabeth encheu outra vez as palmas em concha. Ignorando a dor, pingou o fogo líquido na boca de Percy. Ele não reagiu.
Tentou de novo, derramando as mãos cheias em sua garganta. Dessa vez, ele engasgou e tossiu. Annabeth o segurou enquanto Percy tremia e o fogo mágico agia em seu corpo. A febre passou. As bolhas sumiram. Ele conseguiu sentar e estalar os lábios.
— Ergh — disse ele. — Apimentado, mas nojento.
Annabeth riu sem forças. Estava tão aliviada... ficou até meio tonta.
— É. Isso mais ou menos resume tudo.
— Você nos salvou.
— Por enquanto. O problema é que ainda estamos no Tártaro.
Percy piscou. Olhou ao redor como se começasse a aceitar que estavam ali.
— Por Hera! Nunca pensei... bem, não tenho certeza do que pensei. Talvez que o Tártaro fosse um espaço vazio, um poço sem fundo. Mas este é um lugar real.
Annabeth lembrou da paisagem que vira enquanto caíam: uma série de platôs que iam descendo até sumir na escuridão.
— Nós ainda não vimos tudo — alertou ela. — Isto pode ser só uma parte mínima do abismo, os degraus da entrada.
— O tapete de boas-vindas — murmurou Percy.
Os dois olharam para as nuvens cor de sangue que pairavam na névoa cinzenta. Não tinham forças para subir aquele penhasco de volta de jeito nenhum, mesmo que quisessem. Agora só havia duas opções: subir ou descer o Flegetonte, acompanhando suas margens.
— Vamos achar uma saída — disse Percy. — As Portas da Morte.
Annabeth estremeceu. Ela se lembrava do que Percy dissera pouco antes de caírem no Tártaro. Tinha feito Nico di Angelo prometer levar o Argo II até Épiro, até o lado mortal das Portas da Morte.
Encontramos vocês lá, dissera Percy.
A ideia parecia ainda mais louca do que beber fogo. Como eles poderiam sair andando pelo Tártaro e encontrar as Portas da Morte? Mal tinham conseguido cambalear por cem metros naquele lugar venenoso sem morrer.
— Temos que conseguir — disse Percy. — Não apenas por nós, mas por todos os que amamos. As Portas têm que ser fechadas pelos dois lados, ou os monstros vão continuar a passar. As forças de Gaia acabarão dominando o mundo.
Annabeth sabia que ele tinha razão. Mesmo assim... era impossível pensar em um plano com alguma chance de sucesso. Eles não tinham como localizar as Portas. Não sabiam quanto tempo iam demorar, sequer se o tempo passava na mesma velocidade no Tártaro. Como poderiam sincronizar um encontro com seus amigos? E Nico dissera que a legião dos monstros mais fortes de Gaia vigiava as Portas do lado do Tártaro. Annabeth e Percy não podiam exatamente fazer um ataque direto.
Ela resolveu não mencionar nada disso. Os dois sabiam que não tinham muita chance. Além do mais, após nadarem no Rio Cócito, Annabeth tinha ouvido lamentos e gemidos o bastante para uma vida. Prometeu a si mesma nunca mais voltar a reclamar.
— Bem. — Ela respirou fundo, grata por seus pulmões finalmente terem parado de arder. — Se ficarmos perto do rio, vamos sempre ter um modo de nos curarmos. Se descermos o rio...
Aconteceu tão rápido que Annabeth teria morrido se estivesse sozinha.
Os olhos de Percy se fixaram em algo atrás dela. Annabeth girou quando uma forma escura enorme se lançou em sua direção, uma massa monstruosa com pernas finas cobertas de espinhos, olhos reluzentes e presas à mostra.
Só teve tempo de pensar: Aracne. Mas estava paralisada de medo, sem conseguir raciocinar por causa do cheiro doce enjoativo.
Então ouviu o SHWINK da caneta esferográfica de Percy se transformando em espada. A lâmina de bronze reluzente descreveu um arco acima da cabeça de Annabeth. Um gemido horrível ecoou pelo cânion.
Ela ficou ali parada, atônita, enquanto a poeira amarela, os restos de Aracne, caía ao seu redor como uma chuva de pólen de árvore.
— Você está bem?
Percy examinou os penhascos e blocos rochosos, à procura de outros monstros, mas nada mais apareceu. A poeira dourada da aranha caiu sobre as rochas obsidianas. Annabeth olhou impressionada para o namorado. A lâmina de bronze celestial de Contracorrente brilhava ainda mais forte na escuridão do Tártaro e emitiu um silvo desafiador ao cortar o ar denso e quente, como uma serpente furiosa.
— Ela... ela teria me matado — gaguejou Annabeth.
Percy chutou a terra sobre as rochas com a cara amarrada e um ar nada satisfeito.
— A morte dela foi muito rápida, considerando como torturou você. Ela merecia pior.
Annabeth não podia negar isso, mas o tom duro de Percy a incomodou. Ela nunca vira alguém ficar tão raivoso ou vingativo por causa dela. Ficou quase feliz por Aracne ter morrido tão rápido.
— Como você reagiu tão depressa?
Percy deu de ombros.
— Temos que cuidar um do outro, não é? Agora, você estava dizendo... rio abaixo?
Annabeth assentiu com a cabeça, ainda confusa. A poeira amarela se dissipou sobre a margem rochosa e virou vapor. Pelo menos agora sabiam que era possível matar monstros no Tártaro... apesar de ela não ter ideia de por quanto tempo Aracne permaneceria morta.
Annabeth não planejava ficar ali o bastante para descobrir.
— É, rio abaixo — conseguiu dizer. — Se o Flegetonte vem dos níveis superiores do Mundo Inferior, deve correr para as profundezas do Tártaro...
— Na direção mais perigosa — completou Percy. — Que é provavelmente onde ficam as Portas. Sorte a nossa.

Capítulo VIII - Annabeth

TINHAM PERCORRIDO APENAS algumas centenas de metros quando Annabeth ouviu vozes.
Annabeth estava seguindo em frente lentamente, parte dela ainda em choque, tentando pensar em um plano. Como era filha de Atena, os planos deviam ser sua especialidade. Mas era difícil raciocinar com o estômago roncando e a garganta queimando. A água causticante do Flegetonte podia tê-la curado e lhe dado força, mas não ajudou a saciar sua fome ou sede. O objetivo do rio não era fazer com que ninguém se sentisse bem, imaginou Annabeth. Ele apenas mantinha a gente viva para poder experimentar mais dor excruciante.
Sua cabeça começou a pender de exaustão. Então ela as ouviu, vozes femininas em algum tipo de discussão, e ficou imediatamente alerta.
— Percy, se abaixe! — sussurrou ela.
Ela o puxou para trás da rocha mais próxima, tão espremida contra a margem do rio que seus sapatos quase tocavam o fogo líquido. Do outro lado, descendo o rio pela passagem estreita entre o Flegetonte e o penhasco, vozes irritadas ficavam mais altas ao se aproximarem.
Annabeth tentou manter a respiração estável. As vozes soavam vagamente humanas, mas isso não significava nada. Ela pressupunha que todos no Tártaro fossem seus inimigos. Não sabia como os monstros ainda não os tinham localizado. Eles podiam farejar semideuses, especialmente os poderosos como Percy, filho de Poseidon. Annabeth duvidava que se esconder atrás de uma rocha fosse adiantar alguma coisa quando os monstros sentissem o cheiro deles.
Mesmo assim, conforme os monstros se aproximavam, não mudavam de tom. Seus passos irregulares – scrap, clump, scrap, clump – não se aceleravam.
— Falta muito? — perguntou um deles com uma voz rouca, como se tivesse acabado de fazer um gargarejo com o fogo do Flegetonte.
— Ah, meus deuses! — resmungou outra voz.
Parecia bem mais jovem e muito mais humana, como de uma adolescente mortal no shopping, ficando irritada com os amigos. Por alguma razão, a voz soava familiar.
— Cara, vocês são muito chatos! Eu já falei, é a três dias daqui.
Percy agarrou o pulso de Annabeth e a olhou alarmado, como se também tivesse reconhecido a voz da garota do shopping.
Houve um coro de resmungos e reclamações. As criaturas, talvez meia dúzia, calculou Annabeth, tinham parado bem do outro lado da rocha, sem dar sinal de terem farejado os semideuses. Annabeth se perguntou se os semideuses tinham um cheiro diferente no Tártaro, ou se os outros odores ali eram fortes o suficiente para mascarar a aura de um semideus.
— Eu acho — disse uma terceira voz, séria e velha como a primeira — que talvez você não saiba o caminho, minha jovem.
— Ah, cale a boca, Serefone, sua imbecil — retrucou a garota do shopping. — Quando foi a última vez que vocês escaparam para o mundo mortal? Eu estive lá há alguns anos. Sei o caminho! Além disso, eu sei o que estamos enfrentando lá em cima. Vocês não têm a mínima ideia!
— A Mãe Terra não fez de você nossa líder! — interveio uma terceira voz aguda.
Mais sussurros, sibilos, discussões e gemidos ferozes, como uma briga de gatos de rua gigantes. Por fim, a que se chamava Serefone berrou:
— Basta!
O bate-boca morreu.
— Por enquanto, vamos seguir você — disse Serefone. — Mas se não nos conduzir direito, se descobrirmos que mentiu sobre as invocações de Gaia...
— Eu não minto! — respondeu bruscamente a menina do shopping. — Podem acreditar, tenho um bom motivo para entrar nessa batalha. Tenho inimigos a devorar, e vocês vão se banquetear no sangue dos heróis. Deixem apenas um pedaço especial para mim... um chamado Percy Jackson.
Annabeth se segurou para não rosnar também. Esqueceu seu medo. Queria pular por cima da rocha e fazer picadinho dos monstros com sua faca... só que a tinha perdido.
— Podem acreditar em mim — continuou a garota do shopping — Gaia nos convocou, e vamos nos divertir muito. Antes do fim desta guerra, mortais e semideuses vão tremer ao som de meu nome: Kelli.
Annabeth quase soltou um grito. Olhou para Percy. Mesmo à luz vermelha do Flegetonte, o rosto dele parecia branco como cera.
Empousai, disse sem som, apenas mexendo os lábios. Vampiras.
Percy assentiu com a cabeça, preocupado.
Ela se lembrava de Kelli. Dois anos antes, no primeiro ano de orientação de Percy, ele e a amiga Rachel Dare foram atacados por empousai disfarçadas de líderes de torcida. Uma era Kelli. Mais tarde, a mesma empousa os havia atacado na oficina de Dédalo. Annabeth a apunhalara nas costas e a enviara... para lá, para o Tártaro.
As criaturas continuaram a andar, e suas vozes foram sumindo. Annabeth rastejou até o canto da rocha e arriscou uma espiada. Como esperava, cinco mulheres caminhavam lentamente sobre pernas de tipos diferentes, mecânicas de bronze à esquerda, e peludas e com cascos à direita. Seus cabelos eram feitos de fogo, e suas peles eram brancas como ossos. A maioria delas usava túnicas gregas antigas esfarrapadas, menos a líder, Kelli, que usava uma blusa queimada e rasgada com uma saia curta plissada... seu disfarce de líder de torcida.
Annabeth cerrou os dentes. Enfrentara muitos monstros malvados ao longo dos anos, mas seu ódio pelas empousai era maior que o normal.
Além de suas garras e presas perigosas, tinham o poder de manipular a Névoa. Conseguiam mudar de forma e usar o charme, enganando mortais e fazendo-os baixarem a guarda. Homens eram especialmente suscetíveis. A tática favorita de uma empousa era fazer com que um homem se apaixonasse por ela para depois beber seu sangue e devorar sua carne. Não era um bom primeiro encontro.
Kelli quase tinha matado Percy. Ela havia manipulado o amigo mais antigo de Annabeth, Luke, levando-o a cometer atos cada vez mais sombrios em nome de Cronos.
Annabeth queria muito ainda ter sua faca.
Percy ficou de pé.
— Elas estão indo para as Portas da Morte — murmurou ele. — Sabe o que isso significa?
Annabeth não queria pensar naquilo, mas, infelizmente, aquele grupo de mulheres devoradoras de carne dignas de um circo de aberrações podia ser a coisa mais próxima de boa sorte que teriam no Tártaro.
— Sei — disse ela. — Temos de segui-las.

Capítulo IX - Leo

LEO PASSOU A NOITE LUTANDO com uma Atena de doze metros de altura.
Desde que trouxeram a estátua a bordo, estava obcecado em descobrir como funcionava. Tinha certeza de que ela possuía poderes especiais. Tinha de haver um interruptor secreto, uma placa de pressão ou algo assim.
Ele deveria estar dormindo, mas simplesmente não conseguia. Passava horas rastejando sobre a estátua deitada, que ocupava a maior parte do convés inferior. Os pés de Atena estavam enfiados na enfermaria, de modo que quem quisesse um analgésico tinha que se espremer por entre seus dedos de marfim. O corpo da estátua ocupava todo o corredor de bombordo, e sua mão estendida chegava até o interior da casa de máquinas, segurando na palma a estátua em tamanho real de Nice, como se dissesse: Aqui, tome um pouco de Vitória! O rosto sereno de Atena ocupava a maior parte dos estábulos dos pégasos, na popa, que felizmente estavam desocupados. Se Leo fosse um cavalo mágico, ele não gostaria de morar em um estábulo com uma deusa da sabedoria gigante olhando para ele.
A estátua tomava todo o corredor, por isso Leo tinha de subir nela e se esgueirar sob os seus membros, procurando alavancas e botões.
Como sempre, não encontrou nada.
Leo andara pesquisando sobre a estátua. Ele sabia que fora feita a partir de uma estrutura de madeira oca coberta de marfim e ouro, o que explicava por que era tão leve. Estava em muito bom estado, considerando-se que tinha mais de dois mil anos de idade, fora roubada de Atenas, levada para Roma e estivera secretamente escondida na caverna de uma aranha por praticamente dois milênios. A magia, combinada com o excelente trabalho artesanal, devia tê-la mantido intacta, supunha Leo.
Annabeth dissera... bem, ele tentou não pensar em Annabeth. Ainda se sentia culpado por ela e Percy terem caído no Tártaro. Leo sabia que a culpa era dele. Deveria ter trazido todos em segurança a bordo do Argo II antes de começar a prender a estátua. Ele deveria ter percebido que o chão da caverna era instável.
Contudo, lamentar-se não traria Percy e Annabeth de volta. Ele precisava se concentrar nos problemas que podia resolver.
De qualquer forma, Annabeth dissera que a estátua era a chave para derrotar Gaia. Ela poderia pôr fim à rixa entre os semideuses gregos e romanos. Leo imaginava que devia haver ali mais do que simples simbolismo. Talvez os olhos de Atena disparassem raios laser, ou a serpente por trás de seu escudo cuspisse veneno. Ou talvez a figura menor da deusa Nice ganhasse vida e executasse alguns golpes ninja.
Leo imaginava todo tipo de coisas divertidas que a estátua poderia fazer caso ele a tivesse projetado, mas quanto mais a examinava, mais frustrado ficava. A Atena Partenos irradiava magia. Até mesmo ele conseguia sentir. Mas aparentemente não fazia outra coisa além de parecer impressionante.
O navio adernou em uma manobra evasiva. Leo resistiu ao impulso de correr até o timão.
Jason, Piper e Frank estavam de plantão com Hazel agora. Eles podiam lidar com fosse lá o que estivesse acontecendo. Além disso, Hazel insistira em assumir o leme para guiá-los pela passagem secreta que a deusa da magia mencionara.
Leo esperava que Hazel estivesse certa a respeito do longo desvio ao norte. Ele não confiava naquela tal de Hécate e não entendia por que uma deusa esquisita que dava arrepios de repente decidira ser prestativa.
Claro, ele não costumava confiar em magia. Por isso estava tendo tantos problemas com a Atena Partenos. A estátua não tinha peças móveis. Seja lá o que fizesse, aparentemente funcionava com pura feitiçaria... e Leo não gostava disso. Ele queria que aquilo fizesse sentido, como uma máquina.
Finalmente, ficou exausto demais para pensar direito. Encolheu-se sob um cobertor na sala de máquinas e ficou ouvindo o reconfortante murmurar dos geradores. Buford, a mesa mecânica, estava em um canto, em modo de espera, emitindo seus roncos vaporosos: shhh, pfft, shh, pfft.
Leo até gostava de seus aposentos, mas se sentia mais seguro ali, no coração do navio, em uma sala repleta de mecanismos que sabia controlar. Além disso, se passasse mais tempo perto da Atena Partenos, talvez acabasse compreendendo os seus segredos.
— Sou eu ou você, Dona — murmurou, puxando o cobertor até o queixo. — Você vai acabar cooperando.
Ele fechou os olhos e dormiu. Infelizmente, isso significava sonhar.

* * *

Tentando salvar a própria vida, ele corria pela antiga oficina de sua mãe, onde ela morrera em um incêndio quando Leo tinha oito anos.
Ele não sabia bem o que o estava perseguindo, mas sentia que se aproximava com rapidez – algo grande, escuro e cheio de ódio. Esbarrou em bancadas, derrubou caixas de ferramentas e tropeçou em cabos elétricos.
Viu a saída e correu naquela direção, mas uma figura surgiu à sua frente: uma mulher trajando uma túnica de terra seca rodopiante, com o rosto coberto por um véu de poeira.
Aonde vai, heroizinho?, perguntou Gaia. Fique e conheça meu filho favorito.
Leo correu para a esquerda, mas o riso da deusa da terra o seguiu.
Na noite em que sua mãe morreu, eu o avisei. Disse que as Parcas não me permitiriam matá-lo naquela ocasião. Mas agora você escolheu o seu caminho. Sua morte está próxima, Leo Valdez.
Ele se chocou contra uma mesa de desenho, o antigo local de trabalho de sua mãe. A parede atrás da mesa era decorada com desenhos feitos por Leo com giz de cera. Ele soluçou em desespero e tentou voltar, mas a coisa que o perseguia estava agora em seu caminho, um ser colossal envolto em sombras de forma vagamente humanoide, com a cabeça quase tocando o teto, seis metros mais acima.
As mãos de Leo se incendiaram. Ele atacou o gigante, mas a escuridão engoliu o fogo. Leo tateou à procura do cinto de ferramentas, mas os bolsos estavam costurados. Ele tentou falar – dizer qualquer coisa que pudesse salvar sua vida – mas não conseguia emitir som algum, como se o ar tivesse sido roubado de seus pulmões.
Meu filho não permitirá fogos hoje à noite, disse Gaia do fundo do armazém. Ele é o vazio que engole toda a magia, o frio que engole qualquer fogo, o silêncio que engole todas as vozes.
Leo quis gritar: E eu sou o cara que vai dar o fora!
Sua voz não funcionava, então usou os pés, correndo para a direita, esquivando-se das gigantescas mãos sombrias que tentavam agarrá-lo, e atravessou a porta mais próxima.
Subitamente, viu-se no Acampamento Meio-Sangue, só que o lugar estava em ruínas. Os chalés eram cascas carbonizadas. Campos queimados ardiam ao luar. O pavilhão de jantar desmoronara em uma pilha de escombros brancos, e a Casa Grande estava em chamas, e suas janelas brilhavam como olhos de demônios.
Leo continuou a correr, certo de que o gigante de sombra ainda estava atrás dele. Desviou de corpos de semideuses gregos e romanos. Queria verificar se estavam vivos. Queria ajudá-los. Mas por algum motivo sabia que seu tempo estava se esgotando.
Leo correu em direção às únicas pessoas vivas que viu – um grupo de romanos na quadra de vôlei. Dois centuriões casualmente inclinados contra seus dardos, conversando com um sujeito louro alto e magricela, vestindo uma toga roxa.
Leo tropeçou.
Era aquele estranho Octavian, o áugure do Acampamento Júpiter, que estava sempre clamando por guerra.
Octavian se voltou para ele, mas parecia estar em transe. Estava com o rosto relaxado e de olhos fechados. Quando falou, foi com a voz de Gaia: Isto não pode ser evitado. Os romanos estão se deslocando a leste de Nova York. Eles avançam em direção ao seu acampamento, e nada poderá detê-los.
Leo se sentiu tentado a dar um soco no rosto de Octavian. Em vez disso, continuou correndo. Subiu a Colina Meio-Sangue. No cume, um raio partira o pinheiro gigante.
Ele parou, atônito. A parte de trás da colina fora devastada. Mais além, o mundo inteiro desaparecera. Leo viu apenas nuvens bem lá embaixo, um tapete prateado estendendo-se sob o céu escuro.
Uma voz aguda disse:
— Bem?
Leo se assustou.          
No pinheiro partido, havia uma mulher ajoelhada à entrada de uma caverna que se abrira entre as raízes da árvore.
A mulher não era Gaia. Mais parecia uma Atena Partenos viva, com a mesma toga dourada e os braços nus de marfim. Quando ela se levantou, Leo quase caiu da borda do mundo.
Seu rosto era belo como o de uma rainha, com maçãs do rosto proeminentes, grandes olhos escuros e cabelo cor de alcaçuz trançado em um elegante penteado grego, enfeitado com uma espiral de esmeraldas e diamantes que para Leo lembrava uma árvore de Natal. Sua expressão irradiava puro ódio. Tinha os lábios retorcidos. O nariz franzido.
— O filho do deus remendão — zombou ela. — Você não é ameaça, mas suponho que minha vingança deva começar em algum lugar. Faça a sua escolha.
Leo tentou falar, mas estava paralisado de tanto medo. Entre aquela rainha furiosa e o gigante que o perseguia, não tinha ideia do que fazer.
— Ele estará aqui em breve — avisou a mulher. — Meu amigo sombrio não lhe dará o luxo de uma escolha. É o precipício ou a caverna, garoto!
Subitamente, Leo entendeu o que ela queria dizer. Ele estava encurralado. Poderia saltar do precipício, mas isso seria suicídio. Mesmo que houvesse terra sob aquelas nuvens, morreria na queda, ou talvez simplesmente caísse para sempre.
Mas a caverna... ele olhou para a entrada escura entre as raízes da árvore. Cheirava a podridão e morte. Ele ouviu corpos movendo-se lá dentro, vozes sussurrando nas sombras. A caverna era a casa dos mortos. Se ele entrasse, nunca sairia.
— Sim — disse a mulher.
Trazia ao redor do pescoço um estranho pingente de bronze e esmeralda, como um labirinto circular. Seus olhos estavam tão zangados que Leo finalmente entendeu por que se dizia que alguém ficava “louco de raiva”. Aquela mulher havia enlouquecido de tanto ódio.
— A Casa de Hades o espera — disse ela. — Você será o primeiro roedor insignificante a morrer em meu labirinto. Tem apenas uma chance de escapar, Leo Valdez. Aproveite-a.
Ela fez um gesto em direção ao penhasco.
— Você está doida — disse ele, recuperando a fala.
Não devia ter dito aquilo. Ela o agarrou pelo pulso.
— Talvez eu devesse matá-lo agora, antes da chegada de meu amigo das trevas.
Passos faziam a encosta tremer. O gigante se aproximava, envolto em sombras, enorme, pesado e sedento de sangue.
— Você já ouviu falar sobre morrer em um sonho, rapaz? — perguntou a mulher. — Isso é possível, nas mãos de uma feiticeira!
O braço de Leo começou a fumegar. O toque da mulher era ácido. Ele tentou se libertar, mas os dedos dela pareciam feitos de aço.
Leo abriu a boca para gritar. O enorme volume do gigante pairou sobre ele, obscurecido por camadas de fumaça negra.
O gigante ergueu o punho e uma voz penetrou em seu sonho.
— Leo — Jason sacudia o seu ombro. — Ei, cara, por que você está agarrando a Nice?
Leo abriu os olhos. Seus braços estavam ao redor da estátua em tamanho natural na mão de Atena. Ele deve ter se debatido durante o sono e se agarrado à deusa da vitória, como costumava se agarrar ao travesseiro na infância quando tinha pesadelos. (Cara, isso era tão embaraçoso quando acontecia em lares adotivos...)
Ele se desvencilhou da estátua e se sentou, esfregando o rosto.
— Nada — murmurou. — Estávamos apenas nos abraçando. Hã, o que está acontecendo?
Jason não caçoou dele. Esta era uma coisa que Leo apreciava no amigo. Os olhos azul gelo do garoto estavam calmos e sérios. A pequena cicatriz em sua boca estremeceu, como sempre acontecia quando trazia más notícias.

— Conseguimos atravessar as montanhas — contou ele. — Estamos quase chegando a Bolonha. Você deve encontrar a gente no refeitório. Nico tem novas informações.

Capítulo X - Leo

LEO PROJETARA AS PAREDES DO refeitório para exibir cenas em tempo real do Acampamento Meio-Sangue. No começo, achara que era uma ótima ideia. Agora, já não tinha tanta certeza. As cenas de casa – as cantorias ao pé da fogueira, os jantares no pavilhão, os jogos de vôlei do lado de fora da Casa Grande – pareciam entristecer seus amigos.
Quanto mais se distanciavam de Long Island, pior ficava. Os fusos horários mudavam, fazendo com que Leo sentisse a distância toda vez que olhava para as paredes. Ali na Itália, o sol acabara de nascer. Já no Acampamento Meio-Sangue, era de madrugada. As tochas crepitavam às portas dos chalés. O luar refletia nas ondas do Estuário de Long Island. A praia estava coberta de pegadas, como se uma grande multidão tivesse acabado de ir embora.
Subitamente, Leo se deu conta de que o dia anterior – certo, a noite anterior, na verdade – fora o Quatro de Julho. Eles haviam perdido a festa anual do Acampamento Meio-Sangue com os fogos de artifício incríveis preparados pelos irmãos de Leo no chalé 9.
Decidiu não comentar nada com a tripulação, mas esperava que os amigos em casa tivessem se divertido. Eles também precisavam de algo para manter o moral elevado.
Lembrou-se das imagens que vira em seu sonho: o acampamento em ruínas, repleto de corpos; Octavian na quadra de vôlei, falando despreocupadamente com a voz de Gaia.
Ele olhou para seus ovos com bacon e desejou poder desligar as imagens da parede.
— Então — disse Jason — agora que estamos aqui...
Ele se sentou à cabeceira da mesa meio que de modo automático. Desde que perderam Annabeth, Jason vinha se esforçando ao máximo para assumir o papel de líder do grupo. Como fora pretor no Acampamento Júpiter, provavelmente estava acostumado. Mas Leo sabia que o amigo estava estressado. Ele parecia mais abatido, e seu cabelo louro estava desarrumado, como se tivesse se esquecido de penteá-lo, o que era estranho para ele.
Leo observou o restante da mesa. Hazel também estava com os olhos vermelhos, mas ela passara a noite em claro, guiando o navio pelas montanhas. Seu cabelo encaracolado cor de canela estava preso por uma bandana, o que lhe dava um ar de soldado de elite que Leo achou meio sensual – e logo em seguida se sentiu culpado por isso.
Ao lado dela estava sentado seu namorado, Frank Zhang, vestindo calça preta de ginástica e uma camiseta romana de turista com a palavra: CIAO! (Aquilo chegava a ser uma palavra?). Trazia sua antiga medalha de centurião presa à camiseta, apesar de os semideuses do Argo II serem agora os Inimigos Públicos Números 1 a 7 do Acampamento Júpiter. Sua expressão sombria apenas reforçava sua infeliz semelhança com um lutador de sumô.
Em seguida, vinha o meio-irmão de Hazel, Nico di Angelo. Sério, aquele garoto era muito esquisito. Usava uma jaqueta de couro de aviador, camiseta e calça jeans pretas, aquele anel de prata sinistro em forma de caveira no dedo e trazia ao seu lado a espada de ferro estígio. Os cachos na ponta de seu cabelo preto pareciam asas de filhotes de morcego. Tinha olhos tristes e um tanto vazios, como se tivesse olhado para as profundezas do Tártaro – como de fato olhara.
O único semideus ausente era Piper, que manejava o timão ao lado do treinador Hedge, seu acompanhante sátiro.
Leo desejou que Piper estivesse ali. Ela tinha um jeito de acalmar as coisas com aquele seu charme de Afrodite. Depois de seus sonhos na noite anterior, Leo gostaria de se acalmar.
Por outro lado, provavelmente era bom que ela estivesse no convés superior, com o acompanhante deles. Agora que estavam nas terras antigas, tinham de ficar constantemente em estado de alerta. Leo tinha medo de deixar o treinador Hedge voando sozinho. O sátiro tinha um dedo muito leve no gatilho, e o timão tinha muitos botões brilhantes e perigosos que poderiam explodir as pitorescas vilas italianas abaixo deles.
Leo estava tão fora do ar que não percebeu que Jason ainda estava falando.
— ... a Casa de Hades — dizia. — Nico?
Nico inclinou-se para a frente.
— Fiz contato com os mortos na noite passada.
Ele disse aquilo com a maior naturalidade, como se estivesse contando que recebera uma mensagem de texto de um amigo.
— Descobri mais a respeito do que vamos enfrentar — prosseguiu Nico. — Nos tempos antigos, a Casa de Hades era um importante lugar de peregrinação para os gregos. Eles iam até lá para falar com os mortos e homenagear os antepassados.
Leo franziu a testa.
— Parece com o Día de los Muertos. Minha tia Rosa levava esse negócio a sério.
Ele se lembrava de ter sido arrastado por ela até o cemitério local, em Houston, onde limparam os túmulos de seus parentes e fizeram oferendas de limonada, biscoitos e cravos frescos. Tia Rosa forçava Leo a participar de um piquenique, como se o fato de passar um tempo com os mortos abrisse o apetite.
Frank resmungou:
— Os chineses também fazem isso: adoram os antepassados e varrem as sepulturas na primavera — ele olhou para Leo — sua tia Rosa teria se dado bem com a minha avó.
Leo teve uma visão aterrorizante de sua tia Rosa e uma velha chinesa em trajes de luta, se digladiando com porretes pontiagudos.
— É — disse Leo. — Tenho certeza de que teriam sido melhores amigas.
Nico pigarreou.
— Muitas culturas têm tradições sazonais para honrar os mortos, mas a Casa de Hades ficava aberta o ano inteiro. Os peregrinos podiam realmente falar com os fantasmas. Em grego, o lugar era chamado de Necromanteion, o Oráculo da Morte. Você atravessava diferentes níveis de túneis, deixando oferendas e bebendo poções especiais...
— Poções especiais — murmurou Leo. — Que delícia.
Jason lançou-lhe um olhar tipo já chega, cara.
— Prossiga, Nico.
— Os peregrinos acreditavam que cada nível do templo os aproximava mais do Mundo Inferior, até os mortos aparecerem diante deles. Se ficassem satisfeitos com as oferendas, respondiam às perguntas, talvez até mesmo revelassem o futuro.
Frank deu um tapinha em sua caneca de chocolate quente.
— E se os espíritos não ficassem satisfeitos?
— Alguns peregrinos não encontravam nada — disse Nico. — Alguns enlouqueciam ou morriam após saírem do templo. Outros se perdiam nos túneis e nunca mais eram vistos.
— O fato — acrescentou Jason rapidamente — é que Nico encontrou uma informação que pode nos ser útil.
— É — Nico não parecia muito animado — o fantasma com que falei ontem à noite... ele era um ex-sacerdote de Hécate. Confirmou o que a deusa disse para Hazel ontem na encruzilhada. Na primeira guerra contra os gigantes, Hécate lutou ao lado dos deuses. Ela matou um dos gigantes, um que fora concebido como o anti-Hécate. Um sujeito chamado Clítio.
— Sujeito tenebroso — adivinhou Leo. — Envolto em sombras.
Hazel se voltou para ele, estreitando os olhos dourados.
— Como é que você sabe disso, Leo?
— Tive uma espécie de sonho.
Ninguém pareceu surpreso. A maioria dos semideuses tinha pesadelos vívidos sobre o que estava acontecendo no mundo.
Seus amigos ouviram o relato atentamente. Leo tentou não olhar para as imagens do Acampamento Meio-Sangue na parede enquanto descrevia o lugar em ruínas. Falou sobre o gigante tenebroso e sobre a estranha mulher na Colina Meio-Sangue, oferecendo-lhe diferentes opções de morte.
Jason afastou o prato de panquecas.
— Então o gigante é Clítio. Acho que ele vai estar nos esperando, guardando as Portas da Morte.
Frank enrolou uma das panquecas e começou a mastigar. Não era o tipo de sujeito que deixava a morte iminente ficar entre ele e um café da manhã saudável.
— E a mulher no sonho de Leo?
— Ela é problema meu — Hazel passou um diamante entre seus dedos em um truque de mágica — Hécate mencionou um inimigo poderoso na Casa de Hades, uma bruxa que só poderia ser derrotada por mim, por meio da magia.
— Você sabe magia? — perguntou Leo.
— Ainda não.
— Ah.
Ele tentou pensar em algo otimista para dizer, mas se lembrou dos olhos furiosos da mulher e de como seus dedos de aço fizeram sua pele fumegar.
— Tem alguma ideia de quem ela é?
Hazel balançou a cabeça.
— Só que... — Ela olhou para Nico, e algum tipo de discussão silenciosa ocorreu entre eles.
Leo teve a sensação de que os dois tiveram algumas conversas particulares a respeito da Casa de Hades e não estavam compartilhando todos os detalhes.
— Só que ela não vai ser fácil de derrotar.
— Mas temos algumas boas notícias — disse Nico. — O fantasma com quem conversei explicou como Hécate derrotou Clítio na primeira guerra. Ela usou as suas tochas para pôr fogo no cabelo dele. Clítio morreu queimado. Em outras palavras, o fogo é a sua fraqueza.
Todos olharam para Leo.
— Ah — disse ele. — Tudo bem.
Jason assentiu, animado, como se aquela fosse uma ótima notícia, como se esperasse que Leo avançasse em direção a uma gigantesca massa de trevas, disparasse algumas bolas de fogo e resolvesse todos os seus problemas. Leo não queria decepcioná-lo, mas ainda podia ouvir a voz de Gaia: ele é o vazio que engole toda a magia, o frio que engole qualquer fogo, o silêncio que engole todas as vozes.
Leo tinha certeza de que precisaria de mais do que alguns fósforos para atear fogo àquele gigante.
— É um bom começo — insistiu Jason — pelo menos a gente sabe como matar o gigante. E essa feiticeira... bem, se Hécate acredita que Hazel pode derrotá-la, então eu também acredito.
Hazel baixou os olhos.
— Agora, só precisamos chegar à Casa de Hades, abrir caminho em meio às forças de Gaia...
— Além de um bando de fantasmas — acrescentou Nico, sombrio — os espíritos naquele templo podem não ser amigáveis.
— ... e encontrar as Portas da Morte — completou Hazel. — Supondo que de alguma forma a gente consiga chegar ao mesmo tempo que Percy e Annabeth e resgatar os dois.
Frank engoliu um pedaço de panqueca.
— Nós podemos fazer isso. Precisamos conseguir.
Leo admirou o otimismo do grandalhão. Pena que não sentia o mesmo.
— Então, com este desvio — disse Leo — estimo quatro ou cinco dias de viagem até chegarmos a Épiro, presumindo que não haja atrasos como, vocês sabem, ataques de monstros e outras coisas assim.
Jason sorriu amargamente.
— É. Isso nunca acontece.
Leo olhou para Hazel.
— Hécate disse que Gaia estava planejando a sua grande Festa do Despertar para primeiro de agosto, certo? O Festim de Sei Lá o Quê...
— Spes — disse Hazel. — A Deusa da Esperança.
Jason virou o garfo.
— Teoricamente, temos tempo suficiente. Ainda é cinco de julho. Devemos conseguir fechar as Portas da Morte e, depois, encontrar o quartel-general dos gigantes e os impedir de despertar Gaia antes de primeiro de agosto.
— Teoricamente — concordou Hazel. — Mas eu ainda gostaria de saber como vamos entrar na Casa de Hades sem enlouquecer ou morrer.
Ninguém deu qualquer sugestão.
Frank largou a sua panqueca como se subitamente ela não tivesse mais um gosto tão bom.
— É cinco de julho. Ah, droga, eu nem me lembrei...
— Ei, cara, tudo bem — disse Leo. — Você é canadense, certo? Eu não estava esperando que me desse um presente de Dia da Independência ou algo assim... a menos que você fizesse questão...
— Não é isso. A minha avó... ela sempre me disse que sete era um número de azar. Era um número fantasma. Ela não gostou quando contei que haveria sete semideuses em nossa missão. E julho é o sétimo mês.
— É, mas... — Leo tamborilou nervosamente sobre a mesa. Ele percebeu que estava dizendo eu te amo em código Morse, do jeito que costumava fazer com a mãe, o que teria sido muito constrangedor caso seus amigos entendessem o código Morse. — Mas é só uma coincidência, não é?
A expressão de Frank não o tranquilizou.
— Lá na China, as pessoas chamavam o sétimo mês de mês fantasma. Era quando o mundo dos espíritos e o mundo dos homens ficavam mais próximos. Os vivos e os mortos podiam atravessar de um para o outro. Acha mesmo que é uma coincidência estarmos procurando as Portas da Morte no Mês Fantasma?
Ninguém disse nada.
Leo queria acreditar que uma velha crença chinesa não teria nada a ver com gregos e romanos. Totalmente sem relação, certo? Mas a existência de Frank era prova de que tais culturas estavam interligadas. A árvore genealógica de Zhang remontava à Grécia Antiga. Passaram por Roma e pela China e, finalmente, chegaram ao Canadá.
Além disso, Leo não parava de pensar sobre seu encontro com a deusa da vingança, Nêmesis, no Great Salt Lake. Nêmesis o chamara de a sétima vela, o forasteiro naquela missão. Ela não quis dizer sétimo no sentido de fantasma, certo?
Jason apoiou as mãos nos braços da cadeira.
— Vamos nos concentrar no que podemos resolver. Estamos chegando a Bolonha. Talvez tenhamos mais respostas quando encontrarmos esses anões que Hécate...
O navio adernou como se tivesse batido em um iceberg. O prato de Leo deslizou pela mesa. A cadeira de Nico tombou para trás e ele bateu a cabeça no aparador. Então caiu no chão, com uma dúzia de taças e pratos mágicos virando em cima dele.
— Nico!
Hazel correu para ajudá-lo.
— O que...? — Frank tentou se levantar, mas o navio adernou para o outro lado. Ele tropeçou na mesa e caiu de cara no prato de ovos mexidos de Leo.
— Vejam! — Jason apontou para as paredes.
As imagens do Acampamento Meio-Sangue piscavam e mudavam.
— Impossível — murmurou Leo.
Não havia como aqueles encantamentos exibirem algo além de cenas do acampamento, mas de repente um enorme rosto distorcido preencheu toda a parede de bombordo: dentes amarelos e tortos, uma barba vermelha desgrenhada, nariz cheio de verrugas e olhos assimétricos: um muito maior e mais alto do que o outro. O rosto parecia estar tentando entrar na sala.
As outras paredes piscaram, mostrando cenas do convés. Piper estava no leme, mas havia algo errado. Do pescoço para baixo ela estava enrolada em fita adesiva, e tinha também a boca amordaçada e as pernas amarradas ao painel de controle.
No mastro principal, o treinador Hedge também estava amarrado e amordaçado, enquanto uma criatura de aparência bizarra – uma combinação de gnomo com chimpanzé sem muito bom gosto para roupas – dançava ao redor dele, fazendo pequenas tranças no cabelo do treinador e prendendo-as com elásticos cor-de-rosa.
Na parede de bombordo, a enorme cara feia recuou para exibir seu corpo: era outro gnomo chimpanzé com roupas ainda mais malucas. Ele começou a saltitar pela plataforma, enfiando coisas em um saco de estopa – a adaga de Piper, o controle de Wii de Leo. Então, arrancou a esfera de Arquimedes do painel.
— Não! — gritou Leo.
— Ai — gemia Nico no chão.
— Piper! — gritou Jason.
— Macacos! — gritou Frank.
— Não são macacos — resmungou Hazel. — Acho que são anões.
— Estão roubando as minhas coisas! — gritou Leo, e correu para a escada.

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