Capítulo XLI - Piper
PIPER NÃO SABIA MUITO SOBRE o Mar Mediterrâneo, mas tinha certeza de que ele não devia congelar em julho.
Depois de dois dias em mar aberto após saírem de Split, nuvens negras dominaram o céu. As ondas ficaram mais fortes, lançando no convés uma chuva fina, que formava uma camada de gelo sobre amuradas e cordas.
— É o cetro — murmurou Nico, erguendo o cajado antigo — só pode ser.
Piper ficou desconfiada. Desde que Jason e Nico voltaram do palácio de Diocleciano, estavam agindo de maneira nervosa e reservada. Algo importante tinha acontecido lá, algo que Jason não queria contar a ela.
Tinha lógica o cetro ter provocado aquela mudança de tempo. A orbe negra no topo parecia drenar a cor do ar, e as águias douradas na base tinham um brilho frio. O cetro supostamente controlava os mortos, e ele definitivamente emitia vibrações ruins. Quando o treinador Hedge viu aquela coisa, ficou pálido e avisou que ia para o quarto se consolar com vídeos de Chuck Norris. (Mas Piper desconfiava que, na verdade, ele estava mandando mensagens de Íris para sua namorada, Mellie; o treinador andava muito agitado em relação a ela, apesar de não contar a Piper qual era o problema.)
Então, sim... Talvez o cetro pudesse provocar uma tempestade de gelo assustadora. Mas Piper não achava que fosse isso. Temia que o motivo fosse outro... Algo ainda pior.
— Não podemos conversar aqui — decidiu Jason — vamos adiar a reunião.
Todos tinham se reunido no tombadilho superior para discutir estratégias conforme se aproximavam de Épiro. Agora estava evidente que lá não era um bom lugar para ficar: o vento varria o gelo pelo convés, o mar se revolvia sob eles.
Piper não se incomodava muito com isso. O balanço e a movimentação das ondas a faziam lembrar das vezes em que fora surfar com o pai na costa da Califórnia. Mas notou que Hazel não estava passando bem. A pobre da garota ficava enjoada até com o mar tranquilo. Ela parecia estar tentando engolir uma bola de sinuca.
— Preciso...
Hazel teve ânsia de vômito e apontou para baixo.
— Claro, desça.
Nico beijou-a no rosto, o que surpreendeu Piper. Ele raramente dava demonstrações de carinho, nem mesmo com a irmã. Parecia odiar qualquer contato físico. Beijar Hazel... era quase como se fosse uma despedida.
— Vou com você.
Frank passou um braço pela cintura de Hazel e a ajudou a descer as escadas. Piper torcia para que Hazel ficasse bem. Nas últimas noites, depois daquela luta contra Círon, tinham conversado muito. Serem as únicas meninas a bordo era meio complicado. Dividiam histórias, reclamavam sobre os hábitos nojentos dos meninos e choravam juntas por Annabeth. Hazel contou como era controlar a Névoa, e Piper se surpreendeu ao descobrir que era muito parecido com usar o charme. Piper se ofereceu para ajudá-la com o que precisasse. Em troca, Hazel prometeu ensiná-la a lutar com espadas, uma habilidade na qual Piper era péssima. Sentia que ganhara uma nova amiga, o que era maravilhoso... supondo que vivessem tempo o bastante para desfrutarem dessa amizade.
Nico espanou um pouco de gelo dos cabelos e franziu o cenho diante do cetro de Diocleciano.
— Eu devia guardar essa coisa. Se está mesmo provocando esse tempo, talvez levá-lo lá para baixo ajude...
— Claro — disse Jason.
Nico olhou para Piper e Leo, como se estivesse preocupado com o que poderiam dizer na sua ausência. Piper percebeu que ele estava mais na defensiva, como se estivesse se encolhendo em uma bola psicológica, como quando entrara no transe de morte dentro do jarro de bronze.
Quando ele desceu, Piper estudou a expressão de Jason. Seus olhos estavam carregados de preocupação. O que acontecera na Croácia?
Leo pegou uma chave de fenda no cinto.
— Que grande reunião de equipe. Parece que é só a gente de novo.
Só a gente de novo.
Piper recordou de um dia de inverno em Chicago, em dezembro do ano anterior, quando os três aterrissaram no Millennial Park em sua primeira missão.
Leo não mudara muito, exceto por parecer mais à vontade em seu papel de filho de Hefesto. Ele sempre tivera um excesso de energia nervosa. Agora sabia como usá-la. Suas mãos estavam sempre em movimento. Pegava coisas em seu cinto, mexia nos controles, brincava com sua adorada esfera de Arquimedes. Hoje a havia retirado do painel de controle e desligado Festus, a figura de proa, para manutenção, algo sobre reprogramar seu processador para aprimorar o controle do motor com a esfera, o que quer que isso significasse.
Quanto a Jason, parecia mais magro, mais alto e mais desgastado. O cabelo, antes bem curto, no estilo romano, agora era comprido e desgrenhado. O sulco que Círon fizera do lado esquerdo do couro cabeludo também era interessante, acrescentava um toque de rebeldia. Seus olhos azuis como o céu pareciam de algum modo mais velhos, cheios de preocupação e responsabilidade.
Piper sabia o que seus amigos murmuravam sobre Jason: era perfeito demais, rigoroso demais. Se isso um dia fora verdade, não era mais. A missão tinha acabado com ele, e não apenas fisicamente. As dificuldades que enfrentou não o enfraqueceram, mas ele tinha sido curtido e amaciado como couro, como se estivesse se tornando uma versão mais afável de si mesmo.
E Piper? Só podia imaginar o que Leo e Jason pensavam quando olhavam para ela. Com certeza não se sentia mais a mesma pessoa que era no inverno anterior. Aquela primeira missão para resgatar Hera parecia ter ocorrido séculos atrás.
Tanta coisa havia mudado em sete meses... ela se perguntou como os deuses aguentavam viver milhares de anos. Quantas mudanças eles teriam presenciado? Talvez não fosse de surpreender o fato de os olimpianos parecerem um pouco loucos. Se Piper tivesse vivido por três milênios, teria ficado doidinha.
Ela olhou para a chuva fria. Daria tudo para voltar ao Acampamento Meio-Sangue, onde o clima era controlado até no inverno. As imagens que vira em sua adaga ultimamente... bem, não lhe davam muitos motivos para ficar animada.
Jason apertou seu ombro.
— Ei, vai ficar tudo bem. Estamos perto de Épiro. Só mais um dia, se as indicações de Nico estiverem corretas.
— É — Leo brincava com sua esfera, batendo e apertando as joias — amanhã de manhã, mais ou menos, vamos chegar na costa leste da Grécia. Depois mais uma hora de caminhada e pronto, a CASA DE HADES! Vou comprar uma camiseta de lembrança!
— Oba — murmurou Piper em voz baixa.
Não estava muito ansiosa para mergulhar novamente na escuridão. Ainda tinha pesadelos com o nymphaeum e o hipogeu sob Roma.
Na lâmina de Katoptris, vira imagens parecidas com as que Leo e Hazel descreveram a partir de seus sonhos, uma feiticeira pálida em um vestido dourado, cujas mãos teciam luz dourada no ar como seda em um tear, e um gigante envolto em sombras descendo por um corredor comprido iluminado por tochas nas paredes. Conforme ele passava, as chamas se apagavam. Ela viu uma caverna enorme cheia de monstros (ciclopes, nascidos da terra e coisas mais estranhas) cercando a ela e a seus amigos em tamanha superioridade numérica que não lhes dava qualquer esperança.
Cada vez que via essas imagens, uma voz interior não parava de repetir a mesma frase.
— Gente — disse ela — tenho pensado sobre a Profecia dos Sete.
Era preciso muito para desviar a atenção de Leo de seu trabalho, mas isso foi suficiente.
— O que pensou? — perguntou ele. — Tipo... coisas boas, certo?
Ela reajustou a alça que prendia sua cornucópia ao ombro. Às vezes a trompa da fartura parecia tão leve que se esquecia dela. Em outras, parecia tão pesada quanto uma bigorna, como se o deus do Rio Aqueloo estivesse enviando energias ruins para puni-la por pegar seu chifre.
— Na Katoptris, não paro de ver aquele gigante Clítio, o cara sempre envolto em sombras. Sei que o ponto fraco dele é o fogo, mas em minhas visões ele assopra as chamas aonde quer que vá. Todo tipo de luz é sugado por sua nuvem de escuridão.
— Parece o Nico — Leo comentou — será que são parentes?
Jason fechou a cara.
— Ei, dá um tempo pro Nico, ok? Então, Piper, o que tem esse gigante? O que você está pensando?
Ela e Leo trocaram um olhar intrigado, tipo: Desde quando Jason defende Nico di Angelo? Ela preferiu não comentar.
— Não paro de pensar em fogo — respondeu Piper — como esperamos que Leo derrote esse gigante porque ele é...
— Um cara quente? — sugeriu Leo com um sorriso.
— Humm, acho que a melhor definição é inflamável. Enfim, esse trecho da profecia me incomoda: em tempestade ou fogo, o mundo terá acabado.
— É, já sabemos isso — afirmou Leo — você vai dizer que sou fogo. E que Jason é a tempestade.
Piper assentiu com relutância. Sabia que nenhum deles gostava de discutir o assunto, mas todos deviam ter sentido que era verdade.
O navio lançou-se abruptamente para estibordo. Jason agarrou a amurada congelada.
— Então você está preocupada que um de nós prejudique a missão e acidentalmente destrua o mundo?
— Não — disse Piper — acho que temos interpretado esse trecho do modo errado. O mundo... a Terra. Em grego, a palavra para isso seria...
Ela hesitou, sem querer dizer o nome em voz alta, mesmo no mar.
— Gaia — os olhos de Jason cintilaram com um interesse súbito — você quer dizer que Em tempestade ou fogo, Gaia terá acabado?
— Ah... — Leo deu um sorriso ainda maior — sabe, gosto muito mais da sua versão. Porque se Gaia não resistir a mim, o sr. Fogo, vai ser muito maneiro.
— Ou a mim... a tempestade — Jason a beijou — Piper, isso é incrível! Se estiver certa, são ótimas notícias. Só precisamos descobrir qual de nós destrói Gaia.
— Pode ser — ela se sentiu desconfortável por deixá-los tão esperançosos — mas, vejam, é tempestade ou fogo...
Desembainhou Katoptris e a pôs sobre o painel. Imediatamente a lâmina piscou e acendeu, mostrando a forma escura do gigante Clítio caminhando por um corredor e apagando as tochas.
— Estou preocupada com Leo e essa luta contra Clítio — afirmou — aquele trecho na profecia pode dar a entender que só um de vocês conseguirá. E se o trecho “em tempestade ou fogo” estiver relacionado com o terceiro verso, “Um juramento a manter com um alento final”...
Não concluiu o raciocínio, mas pelas expressões de Jason e Leo, percebeu que eles tinham entendido. Se estivesse interpretando a profecia corretamente, ou Leo ou Jason iria derrotar Gaia. O outro morreria.
Capítulo XLII - Piper
LEO OLHOU PARA A ADAGA.
— Ok... então não gosto tanto da sua interpretação quanto pensava. Você acha que um de nós vai derrotar Gaia, e o outro morrer? Ou talvez um de nós morra enquanto a derrota? Ou...
— Gente — disse Jason — vamos ficar loucos se pensarmos muito nisso. Vocês sabem como são as profecias. Os heróis sempre se ferram quando tentam mudá-las.
— É — murmurou Leo — e nós odiaríamos isso. Porque as coisas estão indo perfeitamente bem até agora.
— Você sabe o que quero dizer. O trecho do alento final pode não estar ligado à parte da tempestade ou fogo. Pelo que sabemos, nós dois podemos nem mesmo ser a tempestade e o fogo. Percy pode criar furacões.
— E eu sempre posso incendiar o treinador Hedge — observou Leo com humor — então ele seria o fogo.
A ideia de um sátiro em chamas gritando “Morra, sua vaca!” enquanto atacava Gaia quase conseguiu fazer Piper rir... Quase.
— Espero estar enganada — disse com cautela — mas a missão começou com a gente: encontramos Hera e despertamos o rei dos gigantes, Porfírio. Tenho a sensação de que nós também vamos terminar esta guerra. Para o bem ou para o mal.
— Ei — disse Jason — eu, pessoalmente, gosto do nós.
— Concordo — acrescentou Leo — nós são minhas pessoas favoritas.
Piper conseguiu sorrir. Amava mesmo aqueles dois. Queria poder usar seu charme nas Parcas, descrever um final feliz e forçá-las a torná-lo realidade.
Infelizmente, era difícil imaginar um final feliz com todos aqueles pensamentos sombrios na cabeça. Temia que o gigante Clítio tivesse sido mandado atrás deles para tirar Leo do caminho. Se isso fosse verdade, significaria que Gaia também ia tentar eliminar Jason. Sem tempestade ou fogo, a missão deles fracassaria.
E aquele frio também a incomodava... tinha certeza de que estava sendo provocado por algo além do cetro de Diocleciano. O vento frio e a chuva de granizo pareciam agressivos e hostis. E, de algum modo, familiares.
Aquele cheiro no ar, um cheiro forte de...
Piper devia ter percebido o que estava acontecendo antes, mas morara durante a maior parte da vida no sul da Califórnia, com temperaturas amenas o ano todo. Não tinha crescido com aquele cheiro... o cheiro de neve iminente.
Todos os músculos em seu corpo se contraíram.
— Leo, toque o alarme!
Piper não tinha percebido que estava usando o charme, mas Leo largou a chave de fenda imediatamente e apertou o botão do alarme. Franziu a testa quando nada aconteceu.
— Hum, não está funcionando — lembrou Leo — Festus está desligado. Me dê um minuto para colocar o sistema on-line de novo.
— Não temos um minuto! Fogo, precisamos de frascos de fogo grego. Jason, convoque os ventos. Ventos quentes, do sul.
— Como é? — Jason olhou para ela, confuso. — Piper, qual o problema?
— É ela! — respondeu Piper já empunhando a adaga. — Ela voltou! Temos que...
Antes que pudesse terminar, o barco guinou para bombordo. A temperatura caiu tão rápido que as velas congelaram imediatamente. Os escudos de bronze ao longo das amuradas saltaram como uma rolha de champanhe.
Jason sacou a espada, mas era tarde demais. Uma onda de partículas de gelo caiu sobre ele, cobrindo-o como a calda de uma maçã do amor e paralisando-o no lugar. Sob a camada de gelo, seus olhos estavam arregalados de surpresa.
— Leo! Fogo! Agora! — berrou Piper.
A mão direita de Leo pegou fogo, mas o vento girou em torno dele e apagou as chamas. Ele segurou a esfera de Arquimedes com força quando um redemoinho de chuva e neve o ergueu do chão.
— Ei! — gritou ele. — Ei! Me solte!
Piper correu em sua direção, mas uma voz na tempestade disse:
— Ah, sim, Leo Valdez. Vou soltar você, e vai ser para sempre.
Leo disparou para o alto tão rápido que pareceu ter sido arremessado por uma catapulta, e desapareceu nas nuvens.
— Não! — Piper ergueu a adaga, mas não havia nada para atacar.
Olhou desesperada para as escadas, torcendo para ver os amigos chegando para resgatá-los, mas um bloco de gelo havia selado a escotilha. Tudo abaixo do convés principal devia estar completamente congelado.
Ela precisava de uma arma melhor para lutar – algo melhor que sua voz, uma adaga que dizia o futuro e uma cornucópia da qual saíam presunto e frutas frescas.
Piper se perguntou se conseguiria chegar à balista.
Então seus inimigos surgiram, e ela se deu conta de que nenhuma arma seria suficiente. No meio do navio, Piper viu uma garota usando um vestido esvoaçante de seda branca, o cabelo negro preso com um arco cravejado de diamantes. Tinha olhos escuros como café, mas sem qualquer calor.
Atrás dela estavam seus irmãos – dois rapazes com asas de penas roxas, cabelos muito brancos e espadas denteadas de bronze celestial.
— É tão bom vê-la outra vez, ma chère — disse Quione, a deusa da neve. — Já era tempo de termos um reencontro congelante.
Capítulo XLIII - Piper
PIPER NÃO TINHA PLANEJADO ATIRAR muffins de mirtilo. A cornucópia deve ter sentido seu desconforto e achou que ela e os visitantes gostariam de coisas assadas e quentinhas.
Meia dúzia de muffins suculentos voou do chifre da fartura como tiros de espingarda. Não era um ataque inicial dos mais eficazes.
Quione simplesmente deu um passo para o lado. A maioria dos muffins passou por ela e caiu amurada abaixo. Cada um de seus irmãos, os boreadas, pegou um bolinho e começou a comer.
— Muffins — disse o maior deles.
Cal, Piper lembrou-se, apelido de Calais. Estava vestido exatamente como em Quebec, com chuteiras de couro, calças largas e uma jaqueta vermelha de hóquei, e tinha olhos pretos e vários dentes quebrados.
— Muffins são bons.
— Ah, merci — disse o irmão magrelo, que estava parado na plataforma da catapulta com as asas abertas.
Ela lembrou de seu nome, Zetes. Os cabelos brancos ainda eram daquele estilo mullet horroroso dos tempos da discoteca. O colarinho de sua camisa de seda aparecia acima do peitoral da armadura. Suas calças de poliéster verde-limão eram grotescamente justas, e sua acne só tinha piorado. Apesar disso, ele ergueu as sobrancelhas sugestivamente e sorriu como se fosse um guru da pegação.
— Eu sabia que a garota bonita ia sentir minha falta.
Falava o francês do Quebec, que Piper entendia sem esforço. Graças a sua mãe, Afrodite, ela tinha a mente programada para a língua do amor, apesar de não querer usá-la com Zetes.
— O que está fazendo? — questionou Piper. E depois disse usando o charme: — Solte meus amigos.
Zetes piscou.
— Devíamos soltar os amigos dela.
— É — concordou Cal.
— Não, seus idiotas! — disse Quione bruscamente. — Ela está utilizando o charme. Usem o cérebro!
— Cérebro... — Cal franziu o cenho como se não tivesse certeza do que ela estava falando. — Muffins são bons.
Ele botou o bolinho inteiro na boca e começou a mastigar.
Zetes pegou um mirtilo da cobertura de seu muffin e o mordeu com delicadeza.
— Ah, minha bela Piper... esperei tanto tempo para revê-la. Infelizmente, minha irmã tem razão. Não podemos soltar seus amigos. Na verdade, devemos levá-los para o Quebec, onde vão ser motivo eterno de chacota. Sinto muito, mas são nossas ordens.
— Ordens?
Desde o inverno anterior, Piper esperava que cedo ou tarde Quione mostrasse sua cara congelada. Quando a derrotaram na Casa dos Lobos em Sonoma, a deusa da neve jurara vingança. Mas por que Zetes e Cal estavam ali? No Quebec, os boreadas pareceram quase amistosos – pelo menos comparados a sua irmã glacial.
— Meninos, escutem — disse Piper — sua irmã desobedeceu Bóreas. Ela está trabalhando com os gigantes, tentando despertar Gaia. Planeja tomar o trono do pai de vocês.
Quione riu, um riso suave e frio.
— Querida Piper McLean. Você tenta manipular meus irmãos de mente fraca com seus encantamentos, como uma verdadeira filha da deusa do amor. Que boa mentirosa você é.
— Mentirosa? — gritou Piper. — Você tentou nos matar! Zetes, ela está trabalhando para Gaia!
Zetes se encolheu.
— Ah, bela garota. Estamos todos trabalhando para Gaia agora. Infelizmente, essas ordens foram de nosso pai, o próprio Bóreas.
— O quê? — Piper não queria acreditar naquilo, mas o sorriso convencido de Quione mostrou a ela que era verdade.
— Finalmente meu pai aceitou meu sábio conselho — disse Quione, satisfeita — ou pelo menos ele fez isso antes que sua personalidade romana entrasse em conflito com a grega. Uma pena, pois agora está um tanto incapacitado, mas me deixou no comando. Ordenou que as forças do Vento Norte fossem usadas a serviço do rei Porfírio. E, é claro... da Mãe Terra.
Piper engoliu em seco.
— Mas como vocês conseguiram chegar até aqui? — Com um gesto, mostrou o gelo que cobria todo o navio. — Estamos no verão!
Quione deu de ombros.
— Nossos poderes aumentaram. As leis da natureza estão de cabeça para baixo. Quando a Mãe Terra despertar, vamos refazer o mundo como desejarmos!
— Com hóquei — disse Cal, ainda de boca cheia — e pizza. E muffins.
— Tá, tá — desdenhou Quione — tive que prometer algumas coisas a este grandalhão simplório. E para Zetes...
— Ah, minhas vontades são simples — Zetes passou a mão no cabelo e piscou para Piper — eu devia tê-la mantido em nosso palácio quando nos conhecemos, querida Piper. Mas logo voltaremos para lá, juntos, e vamos viver um romance incrível.
— Obrigada, mas não, obrigada — disse Piper — agora solte Jason.
Ela concentrou todo seu poder nas palavras, e Zetes obedeceu. Estalou os dedos, e Jason descongelou imediatamente. Ele desabou no chão, sem fôlego e exalando vapor. Mas pelo menos estava vivo.
— Seu imbecil! — Quione estendeu a mão, e Jason recongelou, agora deitado no convés como um tapete de pele de urso. Ela repreendeu Zetes. — Se quer a garota como recompensa, deve provar que pode controlá-la. Não o contrário!
— Sim, é claro — Zetes parecia envergonhado.
— E em relação a Jason... — Os olhos castanhos de Quione brilharam. — Ele e o resto de seus amigos vão se unir a nossa corte de estátuas de gelo no Quebec. Jason Grace vai ficar uma graça no salão do trono.
— Que inteligente — murmurou Piper — você levou o dia inteiro para pensar nessa piada?
Pelo menos Piper sabia que Jason ainda estava vivo, o que diminuiu um pouco seu pânico. O congelamento podia ser revertido. Isso significava que seus outros amigos provavelmente ainda estavam vivos sob o convés. Ela só precisava de um plano para libertá-los.
Infelizmente, não era Annabeth. Não era tão boa em elaborar planos do nada. Precisava de tempo para pensar.
— E Leo? — disse abruptamente. — Para onde você o mandou?
A deusa da neve caminhou com passos leves em torno de Jason, observando-o como se ele fosse uma escultura.
— Leo Valdez merecia um castigo especial. Eu o mandei para um lugar do qual nunca poderá voltar.
Piper mal conseguia respirar. Pobre Leo. A ideia de nunca mais voltar a vê-lo quase acabou com ela. Quione deve ter visto isso em seu rosto.
— Ah, minha querida Piper! — Ela deu um sorriso triunfante. — Mas isso é por um bem maior. Não podia tolerar Leo nem mesmo como uma estátua de gelo... não depois que me insultou. O tolo se recusou a reinar ao meu lado! E seu poder sobre o fogo... — Ela sacudiu a cabeça. — Não podemos deixá-lo se aproximar da Casa de Hades. Lorde Clítio gosta ainda menos de fogo do que eu.
Piper agarrou sua adaga.
Fogo, pensou. Obrigada por me lembrar, sua bruxa.
Ela examinou o convés. Como fazer fogo? Havia uma caixa cheia de frascos de fogo grego perto de uma das balistas, mas estava longe demais. Mesmo que conseguisse chegar lá sem ser transformada em uma estátua de gelo, o fogo grego queimaria tudo, incluindo o navio e todos os seus amigos. Tinha que haver outra maneira. Seus olhos se dirigiram à proa.
Ah.
Festus, a figura de proa, podia expelir muitas chamas. Infelizmente, estava desligado. E Piper não tinha ideia de como reativá-lo. Nunca teria tempo de descobrir os botões certos no painel de controle do navio. Tinha uma vaga lembrança de Leo mexendo no interior da cabeça do dragão de bronze, resmungando sobre um disco de controle; mas mesmo que Piper conseguisse chegar à proa, não saberia o que fazer.
Apesar disso, seu instinto lhe disse que Festus era sua melhor chance. Só precisava convencer seus captores a deixá-la chegar perto o suficiente...
— Bem! — Quione interrompeu seus pensamentos. — Sinto que nosso tempo aqui esteja no fim. Zetes, por favor...
— Espere! — disse Piper.
Era um comando simples, e funcionou. Os boreadas e Quione encararam a garota, atentos. Piper estava quase certa de que poderia controlar os irmãos com o charme, mas Quione era um problema. Seu poder não funcionava muito bem se a pessoa não estivesse atraída por ela, ou se fossem seres poderosos como os deuses ou se a vítima soubesse sobre o charme e estivesse esperando por ele. Todas as alternativas se aplicavam a Quione.
O que Annabeth faria?
Enrolaria, pensou Piper. Na dúvida, continue falando.
— Você tem medo de meus amigos. Então por que simplesmente não os mata?
Quione riu.
— Você não é uma deusa, ou iria entender. A morte é tão curta, tão... insatisfatória. Suas almas mortais insignificantes vão para o Mundo Inferior, e o que acontece? O melhor que posso esperar é vocês serem mandados para os Campos de Punição ou Asfódelos, mas semideuses são insuportavelmente nobres. A chance de irem para o Elísio ou renascerem é muito grande. Por que iria querer recompensar seus amigos se posso castigá-los por toda a eternidade?
— E eu? — Piper odiou perguntar. — Por que ainda estou viva e não fui congelada?
Quione olhou com aborrecimento para os irmãos.
— Um dos motivos é Zetes ter pedido você como recompensa.
— Eu beijo magnificamente bem — declarou Zetes. — Você vai ver, querida.
A ideia embrulhou o estômago de Piper.
— Mas esta não é a única razão — disse Quione. — A outra é que eu odeio você, Piper. Profundamente. Sem você, Jason teria ficado comigo em Quebec.
— Isso não é muita pretensão sua?
Os olhos de Quione ficaram duros como os diamantes do arco em seu cabelo.
— Você é um peso morto, a filha de uma deusa que não serve para nada. O que pode fazer sozinha? Nada. De todos os sete semideuses, você não tem objetivo, não tem poder. Quero que você fique neste navio, à deriva e desamparada, enquanto Gaia desperta e o mundo acaba. E só para garantir que você permaneça fora do caminho...
Ela gesticulou para Zetes, que pegou alguma coisa no ar – uma esfera do tamanho de uma bola de tênis coberta de pontas de gelo.
— Uma bomba — explicou Zetes — especialmente para você, meu amor.
— Bombas! — Cal riu. — Um dia bom! Bombas e muffins!
— Hã... — Piper baixou a adaga, que parecia ainda mais inútil do que o normal. — Flores já bastariam.
— Ah, a bomba não vai matar a garota bonita — Zetes franziu o cenho — bem... estou quase certo disso. Mas quando o invólucro frágil se romper em... ah, daqui a pouco... ele vai liberar a força dos ventos do norte. O barco vai ser levado para longe de sua rota. Para muito, muito longe.
— Isso mesmo — a voz de Quione estava carregada de falsa simpatia — vamos levar seus amigos para nossa coleção de estátuas, liberar os ventos e lhe dar adeus! Você pode assistir ao fim do mundo do... bem, do fim do mundo! Talvez consiga usar o charme nos peixes e se alimentar com sua cornucópia. Pode andar de um lado para outro no convés deste barco e assistir a nossa vitória na lâmina de sua adaga. Quando Gaia tiver despertado, e o mundo que você conhece estiver morto, aí Zetes pode retornar e torná-la sua esposa. O que vai fazer para nos deter, Piper? Uma heroína? Há! Você é uma piada.
Aquelas palavras doeram como chuva de granizo, principalmente porque Piper tinha pensado exatamente as mesmas coisas. O que ela podia fazer? Como podia salvar seus amigos? Estava quase surtando – pulando enfurecida sobre seus inimigos e sendo morta por eles.
Olhou para a expressão arrogante de Quione e percebeu que a deusa estava torcendo por isso. Queria que Piper surtasse. Queria diversão.
A garota reuniu toda sua coragem. Lembrou-se das colegas que zombavam dela na Escola da Vida Selvagem. Lembrou-se de Drew, a cruel conselheira-chefe que ela substituíra no chalé de Afrodite; de Medeia, que enfeitiçara Jason e Leo em Chicago; e Jane, a velha assistente de seu pai, que sempre a tratara como uma criança mimada e inútil. Por toda sua vida foi menosprezada, chamada de inútil por todos.
Isso nunca foi verdade, murmurou outra voz, uma voz parecida com a de sua mãe. Todos eles repreenderam você por temê-la e invejá-la. Assim como Quione. Use isso!
Piper não estava com vontade, mas forçou uma risada. Tentou de novo, e a risada saiu com mais facilidade. Logo, estava às gargalhadas, se dobrando de rir. Calais se juntou a ela, até ser cutucado com o cotovelo por Zetes.
O sorriso de Quione vacilou.
— O que foi? Qual é a graça? Acabei de condenar você!
— Me condenar! — Piper voltou a rir. — Ah, deuses... desculpe. — Tentou recuperar o fôlego e parar de rir. — Ah, nossa... está bem. Você acha mesmo que não tenho poder nenhum? Acha mesmo que não sirvo para nada? Deuses do Olimpo! Seu cérebro deve ter ressecado com o frio. Você não sabe do meu segredo, não é?
Os olhos de Quione se estreitaram.
— Você não tem segredo nenhum. Está mentindo.
— Está bem, como quiser — disse Piper — vá em frente e leve meus amigos. Me deixe aqui... sem poder fazer nada — ela resfolegou — sim. Gaia vai ficar muito satisfeita com você.
Um turbilhão de neve girou em torno da deusa. Nervosos, Zetes e Calais olhavam um para o outro.
— Irmã — disse Zetes — se ela tem mesmo algum segredo...
— Pizza? — arriscou Cal. — Hóquei?
— ...precisamos descobrir qual é — terminou Zetes.
Quione obviamente não tinha acreditado. Piper tentava se manter séria, mas fez os olhos dançarem travessos e bem-humorados.
Vá em frente, desafiou ela. Pague para ver.
— Que segredo? — perguntou Quione. — Conte para nós!
Piper deu de ombros.
— Como quiser — apontou despreocupadamente para a proa — por aqui, pessoal do gelo.
Capítulo XLIV - Piper
ELA ABRIU CAMINHO ENTRE OS boréadas, o que foi como passar por um grande freezer. O ar em torno deles era extremamente frio e queimava o rosto dela. Parecia até que estava respirando neve pura.
Piper tentou não olhar para o corpo congelado de Jason quando passou. Tentou não pensar nos amigos lá embaixo, ou em Leo lançado para o céu, para um lugar sem volta. Ela com certeza tentava não pensar nos boréadas nem na deusa da neve, que a estavam seguindo. Fixou os olhos na figura de proa.
O barco sacudia sob seus pés. Um único sopro de ar de verão infiltrou-se em meio ao frio e Piper inspirou, considerando isso um bom presságio. Ainda era verão lá fora. Quione e os irmãos não pertenciam àquele lugar.
Piper sabia que não podia vencer uma luta direta contra Quione e dois caras alados que carregavam espadas. Não era tão inteligente quanto Annabeth, nem tão boa para solucionar problemas quanto Leo. Mas possuía poder. E pretendia usá-lo.
Na noite anterior, durante a conversa com Hazel, Piper se dera conta de que o domínio do charme era muito parecido com o do uso da Névoa. No passado, tivera muitas dificuldades para fazer seu charme funcionar, porque sempre mandava inimigos fazerem o que ela queria. Ela berrava “Não nos mate” quando o maior desejo do monstro era matá-los. Botava todo seu poder na voz e torcia para que fosse suficiente para superar a vontade do inimigo.
Às vezes funcionava, mas era exaustivo e incerto. Afrodite não era conhecida por seus confrontos diretos. Ela era sutileza, inteligência e sedução. Piper decidiu não se concentrar em mandar as pessoas fazerem o que ela queria. Precisava levá-los a fazer o que eles queriam.
Excelente na teoria, mas tinha dúvidas quanto à prática...
Parou no mastro principal e olhou para Quione.
— Uau, acabei de entender porque você nos odeia tanto — afirmou, enchendo a voz de piedade — a gente a humilhou feio em Sonoma.
Os olhos de Quione brilharam como café congelado, e ela lançou um olhar desconfortável para os irmãos.
Piper riu.
— Ah, você não contou para eles! — deduziu. — Não a culpo. Você tinha um gigante do seu lado, além de um exército de lobos e nascidos da terra e nem assim conseguiu nos derrotar.
— Cale a boca! — sibilou a deusa.
O ar ficou enevoado. Piper sentiu o gelo se acumular em suas sobrancelhas e congelar seus ouvidos, mas fingiu sorrir.
— Não importa — ela piscou para Zetes — mas foi bem engraçado.
— A garota bonita deve estar mentindo — disse Zetes — Quione não foi derrotada na Casa do Lobo. Ela disse que foi um... ah, qual foi a expressão? Uma retirada estratégica.
— Estra... o quê? — perguntou Cal. — Isso é de comer?
Piper empurrou o peito enorme do cara de maneira bem-humorada.
— Não, Cal. Isso significa que sua irmã fugiu.
— Não fugi! — gritou Quione.
— Do que foi mesmo que Hera chamou você? — Piper parou pensativa. — Ah, claro, uma deusa de meia-tigela!
Caiu novamente na gargalhada, e estava realmente se divertindo tanto que Zetes e Cal começaram a rir também.
— Isso é très bon! — disse Zetes. — Deusa de meia-tigela. Há!
— Há! — disse Cal. — A irmã fugiu! Há!
O vestido branco de Quione começou a emitir vapor. Uma camada de gelo se formou sobre a boca de Zetes e Cal para calá-los.
— Mostre-nos seu segredo, Piper McLean — grunhiu Quione. — E reze para que eu a deixe ilesa neste navio. Se estiver brincando conosco, vou lhe mostrar os horrores das queimaduras provocadas pelo frio. Duvido que Zetes ainda a queira sem os dedos das mãos ou dos pés... talvez sem nariz ou orelhas.
Zetes e Cal cuspiram as tampas de gelo da boca.
— A moça bonita ia ficar menos bonita sem nariz — admitiu Zetes.
Piper tinha visto fotos de vítimas de queimaduras provocadas pelo frio. A ameaça a assustou, mas não deixou que isso transparecesse.
— Venham, então — ela os conduziu na direção da popa, cantarolando uma das canções favoritas do pai, “Summertime”.
* * *
Quando chegou à proa, pôs a mão no pescoço de Festus. Suas escamas de bronze estavam frias. Não havia ruído de engrenagens em funcionamento. Seus olhos de rubi estavam escuros e sem brilho.
— Lembra de nosso dragão? — perguntou Piper.
Quione riu com desdém.
— Esse não pode ser seu segredo. O dragão está quebrado. Seu fogo se extinguiu.
— Bem, sim... — Piper acariciou o focinho do dragão.
Não tinha o poder de Leo para ligar motores ou acionar circuitos. Não entendia nada sobre o funcionamento de máquinas. Tudo o que podia fazer era falar com sentimento e honestidade e dizer ao dragão o que ele mais queria ouvir.
— Mas Festus é mais que uma máquina. É uma criatura viva.
— Ridículo — respondeu a deusa com raiva — Zetes, Cal... peguem os semideuses congelados lá embaixo. Depois vamos destruir a esfera dos ventos.
— Podem fazer isso, rapazes — concordou Piper — mas aí não vão ver Quione humilhada. Sei que gostariam disso.
Os boréadas hesitaram.
— Hóquei? — perguntou Cal.
— Quase tão bom — prometeu Piper — você lutou do lado de Jasão e os Argonautas, não lutou? Em um barco como este, o primeiro Argo.
— É — concordou Zetes — o Argo. Bem parecido com este, mas não tínhamos um dragão.
— Não preste atenção nela! — repreendeu Quione.
Piper sentiu o gelo se formando sobre seus lábios.
— Você pode me calar — disse depressa — mas quer saber meu poder secreto... como vou destruir você, Gaia e os gigantes.
O ódio fervilhava nos olhos de Quione, mas a deusa conteve seu poder de congelamento.
— Você... não... tem... nenhum... poder — insistiu.
— Falou como uma deusa de meia-tigela. Uma que nunca é levada a sério, que sempre quer mais poder — Piper observou.
Ela se virou para Festus e passou a mão por trás de suas orelhas de metal.
— Você é um bom amigo, Festus. Ninguém pode realmente desativá-lo. É mais que uma máquina. Quione não entende isso.
Piper se virou para os boréadas.
— Ela também não valoriza vocês, sabiam? Acha que pode mandar nos dois porque são semideuses, não são totalmente deuses. Ela não entende que formam uma equipe poderosa.
— Uma equipe — grunhiu Cal — Como os ca-na-den-ses.
Cal se esforçou para dizer a palavra, já que possuía mais de duas sílabas. Ele sorriu e pareceu muito satisfeito consigo mesmo.
— Exatamente — concordou Piper — igual a um time de hóquei. O todo é maior que as partes.
— Como uma pizza — acrescentou Cal.
Piper riu.
— Você é esperto, Cal! Até eu subestimei você.
— Espere aí — protestou Zetes — também sou esperto. E bonito.
— Muito esperto — concordou Piper, ignorando a parte do e bonito — então largue essa bomba de vento e veja Quione ser humilhada.
Zetes sorriu. Ele se agachou e jogou a esfera de gelo rolando pelo convés.
— Seu tolo! — berrou Quione.
Antes que a deusa pudesse ir atrás da esfera, Piper gritou.
— Nossa arma secreta, Quione! Não somos só um bando de semideuses. Somos uma equipe. Assim como Festus é mais que um monte de peças. Ele tem vida. Ele é meu amigo. E quando seus amigos estão com problemas, especialmente Leo, ele desperta por conta própria.
Pôs toda confiança na voz, todo seu amor pelo dragão de metal e a lembrança de tudo o que ele fez por eles.
A parte racional dela sabia que era uma tentativa fadada ao fracasso. Como podia acionar uma máquina usando emoções? Mas Afrodite não era racional. Ela exercia seus poderes através das emoções. Era a mais velha e mais primordial dos olimpianos, nascida do sangue de Urano em agitação no mar. Seu poder era mais antigo que o de Hefesto, de Atena ou mesmo de Zeus.
Por um minuto terrível, nada aconteceu. Quione apenas olhava para ela. Os boréadas, então, começaram a sair de seu transe e pareciam decepcionados.
— Esqueçam nosso plano — rosnou Quione. — Matem-na!
Quando os boréadas ergueram suas espadas, a pele metálica do dragão esquentou sob a mão de Piper. Ela saiu do caminho e saltou sobre a deusa da neve, enquanto Festus virou a cabeça cento e oitenta graus, explodiu os boréadas e os vaporizou no ato. Por algum motivo, a espada de Zetes foi poupada. Ela caiu no convés, ainda fumegante.
Piper conseguiu ficar de pé. Viu a esfera dos ventos na base do mastro principal. Correu para pegá-la, mas antes que conseguisse chegar perto, Quione se materializou a sua frente em um redemoinho de gelo. Sua pele reluzia com brilho o bastante para cegar.
— Sua desgraçada — rosnou — acha que pode me derrotar? A mim, uma deusa?
Atrás de Piper, Festus rugiu e expeliu vapor, mas a garota sabia que ele não podia lançar fogo de novo sem acertá-la também.
Cerca de cinco metros atrás da deusa, a esfera de gelo começou a rachar e emitir um chiado. Piper não tinha mais tempo para detalhes. Berrou, ergueu a adaga e atacou a deusa. Quione agarrou seu pulso, e o braço de Piper se cobriu de gelo. A lâmina de Katoptris ficou branca.
O rosto da deusa estava a vinte centímetros do dela. Quione sorria, sabendo que tinha vencido.
— Uma filha de Afrodite — repreendeu-a — você não é nada.
Festus tornou a crepitar. Piper podia jurar que ele estava tentando gritar palavras de estímulo.
De repente, seu peito se aqueceu, não devido à raiva ou ao medo, mas ao amor por aquele dragão; e por Jason, que dependia dela; e por seus amigos congelados; e Leo, que estava perdido e ia precisar de sua ajuda.
Talvez o amor não fosse páreo para o gelo... mas Piper o havia usado para despertar um dragão de metal. Mortais eram capazes de feitos sobre-humanos em nome do amor o tempo todo. Mães erguiam carros para salvar seus filhos. E Piper era mais que uma simples mortal. Era uma semideusa. Uma heroína.
O gelo em sua lâmina derreteu. Seu braço soltava vapor onde Quione a segurava.
— Ainda está me subestimando — disse Piper para a deusa — você precisa reavaliar isso.
A expressão arrogante de Quione perdeu forças quando Piper golpeou para baixo com sua adaga.
A lâmina tocou o peito de Quione, e a deusa explodiu numa tempestade de neve em miniatura. Piper desmoronou, sem forças por causa do frio. Ouviu o ruído de Festus em funcionamento, e o som dos alarmes foi reativado.
A bomba.
Piper se esforçou para levantar. A esfera estava a uns três metros de distância, chiando e girando à medida que os ventos em seu interior começavam a se agitar. Piper pulou para pegá-la.
Seus dedos se fecharam ao redor da bomba no momento exato em que o gelo se despedaçou e os ventos explodiram.
Capítulo XLV - Percy
PERCY SENTIA SAUDADE DO PÂNTANO.
Nunca imaginou que sentiria falta de dormir na cama de couro de um gigante no interior de uma cabana construída com ossos de drakon em um lugar nojento, mas naquele momento isso parecia até o Elísio.
Ele, Annabeth e Bob avançavam com dificuldade pela escuridão. O ar estava denso e frio, e ora passavam por trechos de rochas afiadas, ora por poças gosmentas. O terreno parecia feito especialmente para que Percy jamais pudesse baixar a guarda. Mesmo caminhar dois metros era um sacrifício.
Começara se sentindo revigorado. Estava com a cabeça limpa e a barriga cheia de carne-seca de drakon de seus sacos de provisões. Agora suas pernas doíam. Todos os músculos latejavam. Vestiu uma túnica improvisada de couro de drakon por cima da camiseta esfarrapada, mas isso de nada adiantou para protegê-lo do frio.
Sua atenção estava toda concentrada no chão à sua frente. Não existia nada além disso e de Annabeth ao seu lado.
Sempre que tinha vontade de desistir, desabar no chão e morrer (o que acontecia a aproximadamente cada dez minutos), Percy segurava a mão dela, só para poder se lembrar de que ainda havia calor no mundo.
Depois da conversa de Annabeth com Damásen, Percy ficou preocupado com a namorada. Apesar de quase nunca se render ao desespero, ela secava lágrimas enquanto andavam, tentando evitar que Percy notasse. Ele sabia que Annabeth odiava quando seus planos não funcionavam. Estava convencida de que precisavam da ajuda de Damásen, mas o gigante não atendera ao seu pedido.
Parte de Percy ficou aliviada. Já se preocupava o suficiente se Bob ficaria do seu lado quando chegassem às Portas da Morte. Não sabia se queria um gigante como aliado, mesmo que esse gigante soubesse preparar um belo caldeirão de ensopado.
Ele se perguntou o que havia acontecido depois que deixaram a cabana de Damásen. Fazia horas que não ouviam seus perseguidores, mas Percy podia sentir seu ódio... especialmente o de Polibotes. O gigante estava lá atrás em algum lugar, perseguindo-os e empurrando-os cada vez mais para as profundezas do Tártaro.
Percy tentava pensar em coisas boas para não se deixar abater, como o lago no Acampamento Meio-Sangue ou a primeira vez em que beijou Annabeth debaixo da água. Tentou imaginar os dois juntos em Nova Roma, caminhando de mãos dadas pelas colinas. Mas tanto o Acampamento Júpiter quanto o Acampamento Meio-Sangue pareciam sonhos distantes. Tinha a impressão de que só existia o Tártaro. Aquele era o mundo real: morte, trevas, frio, sofrimento. Todo o resto era só fruto de sua imaginação.
Percy estremeceu. Não. Aquele era o Tártaro tentando fazê-lo desistir. Ele se perguntou como Nico tinha sobrevivido ali sozinho sem ficar maluco. Aquele garoto era mais forte do que Percy imaginara. Quanto mais fundo chegavam, mais difícil ficava manter a concentração.
— Este lugar é pior que o Rio Cócito — murmurou.
— É — retrucou Bob alegremente — muito pior! Isso quer dizer que estamos chegando.
Chegando onde? Mas Percy não teve forças para perguntar em voz alta. Percebeu que Bob Pequeno havia se escondido de novo no uniforme de Bob, o que reforçou suas suspeitas de que o gato era o mais esperto do grupo.
Annabeth entrelaçou os dedos nos dele. O rosto dela ficava lindo à luz de sua espada de bronze.
— Estamos juntos — lembrou ela — vamos sair dessa.
Ele tinha ficado tão preocupado em não deixá-la se abater, e era Annabeth quem estava ali reconfortando-o.
— É. Vai ser moleza.
— Mas no próximo encontro quero ir a outro lugar.
— Paris foi legal.
Ela conseguiu sorrir. Há alguns meses, antes da amnésia de Percy, eles jantaram em Paris com os cumprimentos de Hermes. Isso parecia ter acontecido em outra vida.
— Eu me contento com Nova Roma — sugeriu ela — desde que você esteja lá comigo.
Cara, Annabeth era maravilhosa. Por um instante, Percy se lembrou de como era se sentir feliz de verdade. Sua namorada era fantástica. Eles podiam ter um futuro juntos.
Então a escuridão se dissipou em uma lufada, como o último suspiro de um deus moribundo.
Havia uma clareira diante deles, um campo estéril de pedra e poeira. No centro, a uns vinte metros de distância, estava ajoelhada uma mulher repulsiva. Ela usava roupas esfarrapadas, tinha membros macilentos e sua pele parecia couro esverdeado. Com a cabeça pendendo sobre o peito, chorava baixinho, e aquele som destruiu as esperanças de Percy.
Ele se deu conta de como a vida não tinha sentido. Seus esforços eram em vão. Aquela mulher chorava como se pranteasse a morte do mundo inteiro.
— Chegamos — anunciou Bob — Akhlys pode ajudar.
Capítulo XLVI - Percy
SE AQUELA CRIATURA CHOROSA ERA a ideia que Bob tinha de ajuda, Percy com certeza não queria ser ajudado.
Mesmo assim, o titã avançou a passos largos. Percy se sentiu obrigado a segui-lo. Pelo menos aquela área era menos escura. Não exatamente clara, mas havia ali um tipo de neblina branca e espessa.
— Akhlys! — chamou Bob.
A criatura levantou a cabeça, e o estômago de Percy gritou: Socorro!
O corpo dela já era horrível. Parecia extremamente desnutrida. Os braços e as pernas eram finos como varetas, com joelhos e cotovelos ossudos. Estava vestida com farrapos e tinha as unhas das mãos e dos pés quebradas. Havia terra incrustada em sua pele e amontoada em seus ombros, como se tivesse ficado parada na parte de baixo de uma ampulheta.
O rosto era a imagem da miséria. Os olhos fundos e congestionados vertiam lágrimas. O nariz escorria como um chafariz. Os cabelos prateados, ralos e desgrenhados, estavam grudados à cabeça em mechas sebosas, e suas bochechas tinham cortes e sangravam como se ela tivesse arranhado o próprio rosto.
Percy não conseguia encará-la, por isso desviou o olhar. A mulher tinha no colo um escudo antigo de madeira e bronze, amassado e desgastado, pintado com a imagem dela mesma segurando um escudo. Havia uma imagem dentro da outra, infinitamente.
— O escudo — murmurou Annabeth — é dele. Achei que fosse apenas uma lenda.
— Ah, não — disse a velha repulsiva — o escudo de Hércules. Ele pintou minha imagem em seu escudo para que a última visão de seus inimigos fosse eu, a deusa da miséria — ela tossiu com tanta força que até o peito de Percy doeu — como se Hércules soubesse o que é miséria de verdade. A pintura não ficou nem parecida comigo!
Percy engoliu em seco. Quando ele e os amigos encontraram Hércules no Estreito de Gibraltar o resultado não fora nada bom. Terminara em muitos gritos, ameaças de morte e torrentes de abacaxis.
— O que o escudo dele está fazendo aqui? — perguntou Percy.
A deusa o encarou com seus olhos úmidos e leitosos. O sangue que escorria de suas bochechas pingava e manchava o vestido esfarrapado de pontinhos vermelhos.
— Ele não precisa mais dele, precisa? Veio parar aqui quando seu corpo mortal foi queimado. Um lembrete, imagino, de que nenhum escudo é suficiente. No fim, a miséria vence todos vocês. Até Hércules.
Percy chegou mais para perto de Annabeth. Tentou se lembrar do porquê de terem ido até ali, mas o desespero que sentia prejudicava seu raciocínio. Depois de ouvir Akhlys falar, não achou mais estranho que ela tivesse arranhado o próprio rosto. A deusa irradiava sofrimento.
— Bob — disse Percy — não devíamos ter vindo aqui.
De algum lugar dentro do uniforme de Bob, o gatinho esqueleto concordou com um miado. O titã parecia desconfortável e fez uma careta de dor, como se Bob Pequeno estivesse afiando as garras em suas axilas.
— Akhlys controla a Névoa da Morte — insistiu ele — ela pode esconder vocês.
— Escondê-los? — Akhlys emitiu um som gorgolejante. Ou ela estava rindo, ou estava morrendo sufocada. — Por que eu faria isso?
— Eles precisam chegar às Portas da Morte — Bob respondeu — para retornar ao mundo mortal.
— Impossível! — disse Akhlys. — As forças do Tártaro vão encontrá-los. E matá-los.
Annabeth girou a lâmina de sua espada de osso de drakon, o que, Percy teve que admitir, a deixou intimidante e sensual, como uma princesa bárbara.
— Então acho que essa sua Névoa da Morte não serve para nada — disse a garota.
A deusa mostrou os dentes amarelos e deteriorados.
— Para nada? Quem é você?
— Uma filha de Atena — Annabeth soava corajosa. Percy não entendia como ela conseguia fazer isso — não caminhei por meio Tártaro para uma deusa menor qualquer vir me dizer o que é ou não impossível.
O chão estremeceu. Uma névoa começou a subir, e eles ouviram um pranto agonizante.
— Deusa menor? — As unhas retorcidas de Akhlys se cravaram no escudo de Hércules, perfurando o metal. — Eu era velha antes do nascimento dos titãs, sua ignorante. Era velha antes de Gaia despertar. A miséria é eterna. A existência é uma miséria. Sou filha dos mais antigos, o Caos e a Noite. Eu era...
— Sim, sim — disse Annabeth — tristeza e miséria, blá-blá-blá. O que importa é que você não tem poder suficiente para esconder dois semideuses com sua Névoa da Morte. Como eu falei: não serve para nada.
Percy pigarreou.
— Hã, Annabeth...
A filha de Atena lhe lançou um olhar de advertência que dizia: colabore. Percy percebeu que Annabeth estava apavorada, mas não havia alternativa. Aquela era a melhor chance que tinham de convencer a deusa a fazer alguma coisa.
— Quer dizer... Annabeth tem razão! — arriscou Percy. — Bob nos fez vir até tão longe porque achava que você podia ajudar. Mas parece que está ocupada demais olhando para esse escudo e chorando. Não posso culpá-la. É a sua cara.
Akhlys deu um gemido de sofrimento e olhou para o titã.
— Por que trouxe essas crianças irritantes até aqui?
Bob emitiu um ruído que era uma mistura de rugido com choramingo.
— Eu achei... achei...
— A Névoa da Morte não existe para ajudar! — gritou Akhlys. — Ela envolve mortais em miséria enquanto suas almas penetram no Mundo Inferior. É a própria respiração do Tártaro, da morte, do desespero!
— Maravilha — disse Percy — será que podemos levar duas porções para viagem?
Akhlys sibilou:
— Peçam algo mais razoável. Também sou a deusa dos venenos. Posso lhes oferecer a morte... Milhares de maneiras de morrer menos dolorosas do que a que escolheram ao decidir seguir para o coração do Tártaro.
Flores brotaram na poeira em torno da deusa... botões roxo-escuro, laranja e vermelhos que tinham um aroma doce e enjoativo. Percy ficou tonto.
— Erva-moura — ofereceu Akhlys — cicuta. Beladona, meimendro ou estricnina. Posso dissolver suas entranhas, fazer seu sangue ferver.
— É muita gentileza sua — Percy respondeu — mas já tomei bastante veneno para uma viagem só. Agora, você pode nos esconder em sua Névoa da Morte ou não?
— É, vai ser divertido — incentivou Annabeth.
A deusa os observou com desconfiança.
— Divertido?
— Claro — assegurou Annabeth — se falharmos, pense como vai ser ótimo para você poder se vangloriar quando morrermos em agonia. Vai poder dizer “Eu avisei! Eu avisei!” por toda a eternidade.
— Ou, se tivermos sucesso... — completou Percy — pense em como os monstros aqui embaixo vão sofrer. Nosso objetivo é fechar as Portas da Morte. Isso vai provocar muitos gemidos e lamentos.
Akhlys pareceu considerar a ideia.
— Gosto de sofrimento. E também de lamentos.
— Então está combinado — disse Percy — faça a gente ficar invisível.
Akhlys levantou com dificuldade. O escudo de Hércules caiu para o lado e rolou até um arbusto de plantas venenosas.
— Não é tão simples assim — explicou a deusa — a Névoa da Morte chega no momento em que se está perto do fim. Só então seus olhos ficam nublados. E o mundo desaparece.
Percy sentiu a boca seca.
— Tudo bem. Mas... isso vai nos esconder dos monstros?
— Ah, vai — disse Akhlys — se sobreviverem ao processo, vão passar despercebidos pelas forças do Tártaro. Não há a menor esperança de sobreviverem, claro, mas, se estão mesmo decididos, podem vir. Vou mostrar o caminho.
— O caminho para onde, exatamente? — perguntou Annabeth.
A deusa já estava se arrastando para a escuridão.
Percy virou-se, à procura de Bob, mas o titã havia desaparecido. Como é que um cara prateado de três metros de altura com um gatinho muito barulhento desaparece do nada?
— Ei! — gritou Percy para Akhlys. — Onde está nosso amigo?
— Ele não pode seguir este caminho — retrucou a deusa — ele não é mortal. Venham, tolinhos. Venham experimentar a Névoa da Morte.
Annabeth suspirou e segurou a mão de Percy.
— Bem... Não pode ser tão ruim assim, não é?
O comentário era tão ridículo que Percy riu, apesar de isso fazer seus pulmões doerem.
— Verdade. Mas no próximo encontro, vamos jantar em Nova Roma.
Juntos, seguiram as pegadas da deusa entre as plantas venenosas, rumo às profundezas da névoa.
Capítulo XLVII - Percy
PERCY SENTIA FALTA DE BOB.
Tinha se acostumado a ter o titã ao seu lado, iluminando o caminho com seus cabelos prateados e a temível vassoura de guerra. Agora, seu único guia era uma senhora cadavérica com sérios problemas de autoestima.
À medida que avançavam devagar pela planície poeirenta, a névoa foi ficando tão densa que Percy teve que resistir ao impulso de afastá-la com as mãos. Só conseguia seguir a trilha de Akhlys porque por onde a deusa passava brotavam plantas venenosas.
Se aquele ainda era o corpo de Tártaro, Percy achava que deviam estar na sola do pé, uma área áspera e calosa onde cresciam apenas as plantas mais nojentas.
Finalmente chegaram ao fim do dedão. Pelo menos era o que parecia ser. A névoa, então, se dissipou, e eles se viram em uma península em meio a um vazio negro como breu.
— Chegamos — Akhlys se virou e lançou um olhar maligno para eles.
O sangue de suas bochechas escorria e pingava na veste. Os olhos doentios da deusa pareciam úmidos e inchados, mas de algum modo entusiasmados. Será que a miséria consegue parecer entusiasmada?
— Hã... ótimo. Mas chegamos onde? — perguntou Percy.
— À beira da morte final — disse Akhlys — onde a Noite encontra o vazio abaixo do Tártaro.
Annabeth avançou alguns centímetros e espiou o precipício.
— Pensei que não existisse nada abaixo do Tártaro.
— Mas há, com certeza há... — Akhlys tossiu — até o Tártaro teve que surgir de algum lugar. Este é o limite da escuridão mais antiga, que era minha mãe. Abaixo ficam os domínios de Caos, meu pai. Aqui vocês estão mais perto do nada do que qualquer mortal jamais esteve. Não conseguem sentir?
Percy percebia o que a deusa queria dizer. O vazio parecia atraí-lo, roubando o ar de seus pulmões e o oxigênio de seu sangue. Ele olhou para Annabeth e viu que os lábios dela estavam ficando azuis.
— Não podemos ficar parados aqui — disse o semideus.
— Não mesmo! — disse Akhlys. — Vocês não sentem a Névoa da Morte? Estão passando por ela agora mesmo. Vejam!
Havia uma fumaça branca se acumulando aos pés de Percy. Conforme aquilo o envolvia e subia por seu corpo, ele se deu conta de que a fumaça não o estava cercando, mas emanava dele. Todo seu corpo estava se dissolvendo. Examinou as mãos e viu que estavam turvas e indistintas. Nem conseguia dizer quantos dedos tinha. Esperava que ainda fossem dez.
Ele se virou para Annabeth e sufocou um gemido.
— Você... hã...
Não conseguiu falar. Ela parecia morta.
Estava pálida, com os olhos escuros e fundos. Seus lindos cabelos tinham secado e se transformado em um emaranhado feito teias de aranha. Parecia ter ficado presa em um mausoléu frio e escuro por décadas, secando e murchando devagar até virar uma casca ressecada. Quando se virou para olhar para ele, seus traços momentaneamente se turvaram em uma névoa.
O sangue de Percy circulava como seiva em suas veias.
Por anos ele se preocupara com a morte de Annabeth. Quando você é um semideus, isso vem no pacote. A maioria dos meios-sangues não vivia muito. Você já sabia que o próximo monstro que enfrentasse poderia ser o último. Mas ver Annabeth daquele jeito era doloroso demais. Percy preferiria pular no Rio Flegetonte, ou ser atacado por arai, ou pisoteado por gigantes.
— Ah, deuses — soluçou Annabeth. — Percy, você...
Percy olhou para os próprios braços. Viu apenas bolhas de névoa branca, mas para Annabeth ele devia estar parecendo um cadáver. Deu alguns passos, apesar de não ser fácil. Seu corpo parecia não ter substância, como se fosse feito de gás hélio e algodão-doce.
— Já estive melhor — reconheceu — não consigo me mexer direito. Mas estou bem.
Akhlys riu.
— Ah, com certeza você não está bem.
Percy franziu a testa.
— Mas agora vamos passar sem ser vistos? Podemos chegar às Portas da Morte?
— Bem, talvez vocês conseguissem — respondeu a deusa. — Se sobrevivessem. O que não vai acontecer.
Akhlys abriu os dedos retorcidos. Mais plantas brotaram na beira do precipício: cicutas, ervas-mouras e oleandros avançaram na direção dos pés de Percy como um tapete letal.
— A Névoa da Morte não é simplesmente um disfarce, sabiam? É um estado. Eu não poderia lhes dar esse presente a menos que ele fosse seguido pela morte, morte de verdade.
— É uma armadilha — disse Annabeth.
A deusa deu uma gargalhada.
— Vocês não esperavam que eu os traísse?
— Esperávamos — responderam Percy e Annabeth ao mesmo tempo.
— Ora, então nem foi realmente uma armadilha, não é? Foi mais um acontecimento inevitável. A miséria é inevitável. A dor...
— É, é — rosnou Percy — vamos logo à luta.
Ele sacou a Contracorrente, mas a lâmina tinha virado fumaça. Quando golpeou Akhlys, a espada apenas esvoaçou ao redor dela como uma brisa suave.
A boca arruinada da deusa se abriu em um sorriso.
— Ah, será que me esqueci de dizer? Vocês agora são apenas névoa, uma sombra anterior à morte. Talvez, se tivessem tempo, pudessem aprender a controlar sua nova forma. Mas não têm. E como não podem me tocar, temo que qualquer luta contra a miséria seja causa perdida.
Suas unhas cresceram e viraram garras. Sua mandíbula se deslocou, e os dentes amarelados se alongaram em presas.
Capítulo XLVIII - Percy
AKHLYS SE LANÇOU SOBRE PERCY, e por uma fração de segundo o semideus pensou: Ora, eu sou apenas fumaça. Ela não pode me atingir, certo?
Ele imaginou as Parcas no Olimpo rindo de sua ingenuidade: LOL, seu noob!
As garras da deusa arranharam seu peito e queimaram como água fervente. Percy cambaleou para trás, mas não estava acostumado ao corpo de fumaça. As pernas se moviam muito devagar. Os braços pareciam lenços de papel. Desesperado, arremessou a mochila nela, pensando que talvez ficasse sólida quando saísse de suas mãos, mas não teve essa sorte. Ela fez um ruído baixo e abafado ao cair.
Akhlys rosnou e se agachou, preparando-se para saltar. Teria arrancado o rosto de Percy com uma mordida se Annabeth não tivesse avançado e gritado bem no ouvido da deusa:
— Ei!
Akhlys levou um susto e se virou na direção do som.
Ela atacou, mas Annabeth era mais ágil que Percy. Talvez não estivesse se sentindo tão feita de fumaça, ou talvez simplesmente tivesse mais treinamento de combate. Vivia no Acampamento Meio-Sangue desde os sete anos. Provavelmente tivera aulas que Percy nunca frequentara, como Técnicas de Luta para Quando se Estiver em Forma de Fumaça.
Annabeth deu uma cambalhota, passando por baixo das pernas da deusa, e voltou a ficar de pé. Akhlys se virou e atacou, mas Annabeth estava preparada e se esquivou, como uma toureira.
Percy estava tão atônito que desperdiçou alguns segundos preciosos. Ficou olhando para o cadáver de Annabeth, envolto em névoa, mas se movendo com a rapidez e a confiança de sempre. Então, entendeu por que ela estava fazendo aquilo: para ganhar tempo. O que significava que ele precisava ajudar.
Tentou raciocinar, desesperado, querendo bolar um plano para derrotar a miséria. Como ele poderia lutar se não conseguia tocar em nada?
No terceiro ataque de Akhlys, Annabeth não teve a mesma sorte. Tentou se virar de lado, mas a deusa agarrou seu pulso, puxou-a com força e jogando-a longe. Antes que a deusa pudesse dar o bote, Percy avançou, gritando e brandindo a espada. Ainda se sentia tão sólido quanto um lenço de papel, mas a raiva pareceu deixá-lo mais ágil.
— E aí, feliz? — gritou ele.
Akhlys se voltou para ele, largando o braço de Annabeth.
— Feliz?
— É! — Ele se agachou quando a deusa tentou golpear sua cabeça. — Você está que é pura alegria!
— Argh! — Ela atacou de novo, mas estava sem equilíbrio.
Percy deu um passo para o lado e recuou, atraindo a deusa para mais longe de Annabeth.
— Simpática! — chamou ele. — Agradável!
A deusa rosnou, estremeceu e partiu na direção de Percy. Cada elogio parecia atingi-la como uma bofetada.
— Vou matá-lo bem devagar! — grunhiu ela com os olhos e o nariz escorrendo, e sangue pingando das bochechas. — Vou cortá-lo em pedaços em um sacrifício para a Noite!
Annabeth conseguiu ficar de pé. Começou a remexer em sua sacola, com certeza à procura de algo que pudesse ser útil.
Percy queria lhe dar mais tempo. Ela era o cérebro. Era melhor que ele fosse atacado enquanto a filha de Atena bolava um plano brilhante.
— Fofa! — berrou Percy. — Tão macia e quentinha que dá vontade de abraçar!
Akhlys emitiu um grunhido engasgado, como um gato tendo uma convulsão.
— Uma morte lenta! — gritou ela. — Uma morte por mil venenos!
Ao redor dela cresciam plantas venenosas que se avolumavam e explodiam como balões de gás. Uma seiva verde e branca se acumulava em poças e começava a se espalhar pelo chão na direção de Percy. Os vapores de aroma adocicado o deixavam tonto.
— Percy! — A voz de Annabeth pareceu distante. — Hã, ei, Miss Simpatia! Felicíssima! Sorriso encantador! Aqui!
Mas a deusa da miséria estava concentrada em Percy. O garoto tentou recuar outra vez. Infelizmente, estava cercado pelo icor venenoso, que corroía o chão e fazia o ar arder. Percy se viu preso em uma ilha de poeira não muito maior que um escudo. A alguns metros de distância, sua mochila virou fumaça e desapareceu em uma poça repugnante. Percy não tinha para onde ir.
Ele se agachou, apoiando-se em um joelho. Queria mandar Annabeth correr, mas não conseguia falar. Sua garganta estava seca como folhas mortas.
Desejou que houvesse água no Tártaro, um belo lago em que pudesse mergulhar para se curar, ou talvez um rio que conseguisse controlar. Já ficaria satisfeito só com uma garrafa de água mineral.
— Você vai alimentar a escuridão eterna — prometeu Akhlys — vai morrer nos braços da Noite!
Percy ouvia Annabeth ao longe, gritando e arremessando pedaços de carne-seca de drakon na deusa. O veneno verde e branco continuava a se acumular. Pequenos filetes escorriam das plantas, aumentando o lago venenoso ao seu redor.
Lago, pensou. Rio. Água.
Provavelmente era só o seu cérebro fritando com os vapores venenosos, mas Percy riu. O veneno era líquido. Se aquilo escorria como água, devia ser parcialmente feito de água.
Ele se lembrou de uma aula de ciências em que aprendeu que a maior parte do corpo humano era composta de água. Se lembrou de quando fez sair a água dos pulmões de Jason, em Roma... Se tinha conseguido controlar aquilo, então por que não outros líquidos?
Era uma ideia maluca. Poseidon era o deus do mar, não de todos os líquidos. Entretanto, o Tártaro tinha suas próprias regras. O fogo era bebível. O chão era o corpo de um deus sombrio. O ar era ácido, e semideuses podiam ser transformados em cadáveres de fumaça.
Então por que não tentar? Não tinha mais nada a perder.
Encarou fixamente a grande poça de veneno que o cercava. Concentrou-se tanto que algo em seu interior estalou, como se uma bola de cristal tivesse se espatifado em seu estômago. Sentiu o calor fluir por seu corpo. A poça de veneno parou de se aproximar.
Os vapores foram soprados para longe dele, na direção da deusa. O lago de veneno fluiu na direção dela com pequenas ondas e marolas.
Akhlys gritou.
— O que é isso?
— Veneno. É sua especialidade, não?
Ele levantou. Ficou cada vez mais furioso, sentindo a raiva fervendo dentro de si. O veneno continuou a correr na direção da deusa, e os vapores começaram a fazê-la tossir. Os olhos dela lacrimejaram ainda mais.
Ah, ótimo, pensou Percy. Mais água.
Percy imaginou o nariz e a garganta dela se enchendo com as próprias lágrimas.
Akhlys não conseguia falar.
— Eu...
A onda de veneno alcançou seus pés e começou a borbulhar como gotas de água em uma superfície quente de metal. Ela gemeu e recuou, trôpega.
— Percy! — chamou Annabeth.
Ela havia se aproximado da beira do precipício, apesar de o veneno não estar indo em sua direção. Parecia estar morrendo de medo. Demorou para Percy se dar conta de que ela estava com medo dele.
— Pare... — suplicou ela com voz rouca.
Ele não queria parar. Queria sufocar aquela deusa. Queria vê-la se afogar no próprio veneno. Queria ver quanta miséria a deusa Miséria poderia aguentar.
— Percy, por favor...
O rosto de Annabeth ainda estava pálido e cadavérico, mas seus olhos eram os mesmos de sempre. A angústia neles fez a raiva de Percy desaparecer.
Ele se virou para a deusa. Fez a poça retroceder e escorrer pela beira do penhasco.
— Vá embora! — gritou ele.
Para um quase esqueleto ambulante, Akhlys podia correr bem rápido quando queria. A deusa se afastou aos tropeços, caiu de cara e se levantou de novo, uivando enquanto corria escuridão adentro.
Assim que foi embora, as poças de veneno evaporaram. As plantas venenosas viraram pó e foram levadas pelo vento.
Annabeth cambaleou na direção dele. Parecia um cadáver envolto em névoa, mas Percy sentiu seu toque quando ela agarrou os braços dele.
— Percy, por favor, não, nunca mais... — a voz dela falhou. — Algumas coisas não são feitas para serem controladas. Por favor.
Ele ainda se sentia poderoso, mas a raiva estava desaparecendo. O vidro estilhaçado dentro dele estava começando a perder o corte.
— É — concordou — é, tudo bem.
— Temos que sair de perto deste precipício — disse Annabeth — se Akhlys nos trouxe aqui como algum tipo de sacrifício...
Percy tentou raciocinar. Estava ficando acostumado a se mexer com a Névoa da Morte ao seu redor. Sentia-se mais sólido, mais parecido com seu antigo eu. Mas seu cérebro ainda parecia feito de algodão-doce.
— Ela falou algo sobre nos dar à noite como alimento — lembrou — o que queria dizer com isso?
A temperatura caiu. O abismo diante deles parecia respirar.
Percy agarrou Annabeth e juntos se afastaram da beirada quando uma presença emergiu do vazio, uma forma tão vasta e sombria que ele teve a impressão de só então compreender o significado de escuro.
— Imagino — disse a escuridão, em uma voz feminina tão suave quanto um forro de caixão — que ela se referia à Noite com N maiúsculo. Afinal de contas, eu sou a única.
Capítulo XLIX - Leo
NA OPINIÃO DE LEO, ELE passava mais tempo caindo do que voando.
Se existisse um programa de fidelidade para pessoas que caem sempre, ele seria, tipo, cliente VIP. Recobrou consciência enquanto estava em queda livre entre as nuvens. Tinha uma vaga lembrança de Quione insultando-o antes de ele ser lançado no céu. Não a vira, mas jamais esqueceria a voz daquela bruxa da neve. Leo não sabia por quanto tempo ganhara altitude, mas em algum momento desmaiara com o frio e a falta de oxigênio. Agora estava caindo, rumo à maior de todas as suas quedas.
As nuvens se abriram em volta dele. Viu o mar brilhando muito, muito lá embaixo. Nenhum sinal do Argo II. Nenhum sinal de qualquer litoral, conhecido ou não, a não ser uma ilhota no horizonte.
Leo não conseguia voar. Tinha no máximo dois minutos antes de bater na água e plaft! Decidiu que não gostaria de um final assim para a Balada Épica de Leo.
Ainda estava agarrado à esfera de Arquimedes, o que não o surpreendeu. Inconsciente ou não, jamais largaria seu bem mais precioso. Com alguma dificuldade, conseguiu puxar uma tira de fita adesiva de seu cinto de ferramentas e prender a esfera ao peito. Aquilo o fez parecer um Homem de Ferro de baixo orçamento, mas ao menos ficou com as mãos livres. Começou a mexer furiosamente na esfera, tirando de seu cinto de ferramentas mágico tudo o que achava que pudesse ajudar: uma lona, extensores de metal, um pouco de corda e argolas.
Trabalhar enquanto caía era quase impossível. O vento rugia em seus ouvidos. Arrancava ferramentas, parafusos e telas de suas mãos, mas, finalmente, ele conseguiu construir uma armação improvisada. Abriu um compartimento na esfera, puxou dois fios e conectou-os à armação.
Quanto tempo até atingir a água? Talvez um minuto?
Girou o botão de controle da esfera, que zumbiu ao entrar em ação. Mais fios de bronze saíram, sentindo intuitivamente o que Leo necessitava. Cabos fixaram a lona. A estrutura começou a se expandir por conta própria. Leo tirou uma lata de querosene e um tubo de borracha e uniu-os ao novo e sedento motor que a esfera o estava ajudando a montar.
Finalmente, fez um cabresto de corda e moveu-se para que a estrutura em X se adaptasse às suas costas. O mar se aproximava cada vez mais, uma superfície brilhante de morte dolorosa.
Ele gritou de um jeito desafiador e socou o interruptor de ativação da esfera. O motor engasgou e ganhou vida. O rotor improvisado girou. As lâminas de lona rodaram, mas muito lentamente. A cabeça de Leo estava apontada para baixo, na direção do mar. Talvez faltassem uns trinta segundos até o impacto.
Pelo menos não tem ninguém por perto, pensou amargamente, ou eu seria uma eterna piada para os semideuses. Qual foi a última coisa que passou pela cabeça de Leo? O Mediterrâneo.
Subitamente, a esfera se aqueceu junto a seu peito. As lâminas giraram mais rapidamente. O motor engasgou e Leo inclinou-se para o lado, cortando o céu.
— ISSO! — gritou.
Criara o helicóptero pessoal mais perigoso do mundo.
Disparou em direção à ilha distante, mas ainda perdia altitude muito rapidamente. As lâminas estremeciam. A tela rangia.
A praia estava a apenas algumas centenas de metros quando a esfera ficou quente como lava e o helicóptero explodiu, lançando chamas em todas as direções. Se não fosse imune ao fogo, Leo teria virado carvão. Contudo, a explosão em pleno ar provavelmente salvou-lhe a vida. O impacto lançou-o para o lado enquanto a maior parte de sua engenhoca em chamas colidia com a praia em alta velocidade com um enorme CABUM!
Leo abriu os olhos, surpreso por ainda estar vivo. Estava sentado em uma cratera na areia do tamanho de uma banheira. A poucos metros de distância havia uma cratera muito maior, de onde erguia uma coluna de fumaça negra e densa. A praia em volta estava repleta de destroços menores em chamas.
— Minha esfera.
Leo tateou o peito. Ela não estava mais lá. A fita adesiva e a corda haviam se desintegrado. Ele levantou com dificuldade. Nenhum osso parecia estar quebrado, o que era bom, mas estava realmente preocupado com sua esfera de Arquimedes. Se tivesse destruído seu artefato de valor inestimável para fazer um helicóptero flamejante que durara trinta segundos, Leo perseguiria aquela estúpida deusa da neve, Quione, e a espancaria com uma chave inglesa.
Cambaleou pela praia, perguntando-se por que não havia turistas, hotéis ou barcos à vista. A ilha parecia perfeita para um resort, com água cristalina e areia branca e fofa.
Talvez não fosse conhecida. Será que ainda existiam ilhas não descobertas no mundo? Talvez tivesse sido lançado para longe do Mediterrâneo. Ao que tudo indicava, estava em Bora Bora.
A cratera maior tinha cerca de dois metros e meio de profundidade. No fundo, as pás dohelicóptero ainda tentavam girar. O motor soltava fumaça. O rotor resmungava como um sapo pisoteado, mas, caramba!, era bem impressionante para um trabalho feito às pressas.
Aparentemente o helicóptero caíra sobre algo. A cratera estava repleta de madeira de mobília despedaçada, pratos de porcelana quebrados, algumas taças de estanho meio derretidas e guardanapos de linho flamejantes. Leo não sabia por que todas aquelas coisas elegantes estavam na praia, mas ao menos isso significava que, afinal de contas, o local era habitado.
Finalmente avistou a esfera de Arquimedes – fumegante e enegrecida, mas ainda intacta, emitindo cliques de insatisfação em meio aos destroços.
— Esfera! — gritou ele. — Vem com o papai!
Leo desceu ao fundo da cratera e pegou a esfera. Sentou de pernas cruzadas, e aninhou o dispositivo nos braços. A superfície de bronze estava muito quente, mas ele não se importou. Estava inteira, o que significava que ainda poderia usá-la.
Agora, se Leo ao menos pudesse descobrir onde estava e como voltar até seus amigos... Listava mentalmente as ferramentas de que poderia precisar quando uma voz feminina o interrompeu:
— O que você está fazendo? Você explodiu a minha mesa de jantar!
* * *
Imediatamente, Leo pensou: Opa...
Ele já conhecera um monte de deusas, mas a menina que o olhava feio da borda da cratera realmente parecia uma deusa.
Usava um vestido branco estilo grego, sem mangas, com um cinto de ouro trançado. Seu cabelo era longo, liso e castanho-claro, quase da mesma cor de churros com canela que tinha o cabelo de Hazel, mas a semelhança com a amiga terminava ali. O rosto da menina era pálido como leite, com olhos escuros e amendoados e lábios carnudos. Parecia ter uns quinze anos, a idade de Leo, e, com certeza, era bonita, mas aquela expressão furiosa o fazia lembrar de cada garota popular de cada escola que já frequentara – aquelas que zombavam dele, faziam muita fofoca, achavam-se muito superiores e, basicamente, faziam tudo o que podiam para tornar a vida dele horrível.
Leo desgostou dela à primeira vista.
— Ah, me desculpe — disse ele — acabo de cair do céu. Construí um helicóptero em pleno ar que explodiu em chamas no meio do caminho, caiu, e eu quase não sobrevivi. Mas, claro, vamos falar sobre a sua mesa de jantar!
Ele pegou uma taça meio derretida.
— Quem põe uma mesa de jantar na praia, onde pode ser atingida por semideuses inocentes em queda livre? Quem faz uma coisa dessas?
A menina cerrou os punhos. Ele tinha certeza de que ela desceria até o fundo da cratera e lhe daria um soco na cara. Em vez disso, ela olhou para o céu.
— VERDADE? — Gritou para o vazio azul. — Vocês querem piorar ainda mais a minha maldição? Zeus! Hefesto! Hermes! Vocês não têm vergonha?
— Hã...
Leo percebeu que ela só escolhera três deuses a quem culpar, e um era o pai dele. Não achou que aquilo fosse um bom sinal.
— Duvido que estejam ouvindo — prosseguiu ele — você sabe, todo esse negócio de personalidade dividida...
— Apareçam! — gritou a menina para o céu, ignorando Leo. — Não basta estar exilada? Não basta tirarem de mim os poucos bons heróis que estou autorizada a encontrar? Acham engraçado enviar este... este menino nanico e chamuscado para arruinar a minha tranquilidade? Isso NÃO É ENGRAÇADO! Levem-no de volta!
— Ei, flor do dia — disse Leo. — Estou bem aqui, sabia?
Ela rosnou como um animal encurralado.
— Não me chame assim! Saia desse buraco e venha comigo agora para que eu o tire de minha ilha!
— Bem, já que está pedindo com tanto carinho...
Leo não sabia por que a menina maluca estava tão alterada, mas realmente não se importava. Se ela pudesse ajudá-lo a sair daquela ilha, tudo bem. Pegou a esfera carbonizada e saiu da cratera. Quando chegou ao topo, ela já se afastava pela praia. Teve que correr para alcançá-la.
A menina gesticulou para os destroços em chamas, desgostosa.
— Esta era uma praia imaculada! Olhe como está agora.
— É, foi mau — murmurou Leo — eu deveria ter caído em uma das outras ilhas. Ah, espere... não há nenhuma!
Ela rosnou e continuou andando junto ao mar. Leo sentiu cheiro de canela. Seria o perfume dela? Não que ele se importasse. O cabelo da menina caía pelas costas de um modo fascinante, e, é claro, ele também não se importava com isso.
Leo examinou o mar. Assim como vira durante a queda, não havia nem terra nem navios à vista. Olhando para a ilha, viu colinas verdejantes repletas de árvores. Uma trilha através de um bosque de cedros. Ele se perguntou aonde aquilo levaria: provavelmente ao esconderijo secreto da garota, onde ela assava seus inimigos para comê-los em sua mesa de jantar na praia.
Estava tão ocupado pensando nisso, que não percebeu quando a menina parou e acabou trombando nela.
— Ai!
Ela se virou e se segurou em seus braços para não cair na água. As mãos eram fortes, como se as usasse para se sustentar. No acampamento, as garotas do chalé de Hefesto tinham mãos fortes assim, mas aquela não parecia ser uma filha de Hefesto.
Ela olhou feio para Leo, os olhos escuros e amendoados a apenas alguns centímetros dos dele. O cheiro de canela o fez lembrar do apartamento de sua abuela. Cara, não pensava naquele lugar havia anos.
A menina o afastou.
— Tudo bem. Aqui está bom. Agora, diga que quer ir embora.
— O quê?
O cérebro de Leo ainda estava meio confuso desde o pouso forçado. Não tinha certeza se ouvira direito.
— Você quer ir embora? — perguntou ela. — Certamente tem um lugar aonde quer ir!
— Hã... sim. Meus amigos estão em apuros. Preciso voltar para o meu navio e...
— Tudo bem — retrucou a menina — basta dizer: Quero ir embora de Ogígia.
— Hã, tudo bem.
Leo não tinha certeza do porquê, mas o tom de voz dela meio que o entristeceu; o que era uma idiotice, já que ele não se importava com o que aquela garota pensava.
— Quero ir embora de... seja lá o lugar que você disse.
— O-gí-gia — pronunciou a menina lentamente, como se Leo tivesse cinco anos de idade.
— Quero ir embora de O-gí-gia — ele repetiu.
Ela suspirou, claramente aliviada.
— Ótimo. A qualquer momento, aparecerá uma jangada mágica. Ela o levará para onde quiser ir.
— Quem é você?
Ela pareceu estar prestes a responder, mas se conteve.
— Isso não importa. Logo você irá embora. Obviamente você é um erro.
Essa doeu, pensou Leo.
Passara tempo bastante pensando que era um erro: como semideus, naquela missão, na vida em geral. Não precisava de uma deusa louca para reforçar essa ideia.
Lembrava-se de uma lenda grega sobre uma menina em uma ilha... Talvez um de seus amigos a tivesse mencionado. Não importava. Desde que ela o deixasse ir embora.
— A qualquer momento agora...
A menina olhou para a água.
Nenhuma jangada mágica apareceu.
— Talvez tenha ficado presa no trânsito — disse Leo.
— Isso está errado — ela olhou feio para o céu — isso está totalmente errado!
— Então... plano B — disse Leo. — Você tem um telefone, ou...
— Argh!
A menina voltou-se e caminhou resoluta para o interior da ilha. Quando chegou à trilha, correu pelo bosque e desapareceu.
— Tudo bem. Ou você pode simplesmente fugir.
Dos bolsos do cinto de ferramentas ele tirou uma corda e um gancho e, em seguida, atou a esfera de Arquimedes ao cinto.
Olhou para o mar. Ainda nenhuma jangada mágica à vista.
Leo poderia ficar ali e esperar, mas estava com fome, sede, e cansado. E estava bastante dolorido por causa da queda.
Não queria seguir aquela garota maluca, não importava quanto fosse bom seu perfume. Por outro lado, não tinha para aonde ir. A menina dispunha de uma mesa de jantar, portanto tinha comida. E parecia achar a presença de Leo irritante.
— Irritá-la será uma espécie de bônus — decidiu.
Ele a seguiu em meio às colinas.
Capítulo L - Leo
— SANTO HEFESTO — DISSE LEO.
A trilha levava ao mais belo jardim que já vira. Não que tenha passado muito tempo em jardins, mas, caramba. À esquerda havia um pomar e um vinhedo: árvores de pêssego com frutas vermelho-dourado que cheiravam deliciosamente sob o sol quente, vinhedos cuidadosamente podados repletos de uvas, caramanchões de jasmins florescentes e uma infinidade de outras plantas que Leo não sabia nomear.
À direita havia maravilhosos canteiros de legumes e ervas, dispostos como raios ao redor de uma grande fonte borbulhante onde sátiros de bronze cuspiam água em um chafariz.
Nos fundos do jardim, onde terminava a trilha, abria-se uma caverna na encosta de uma colina gramada. Comparada ao bunker 9 do acampamento, a entrada era pequena, mas era impressionante à sua maneira. Em ambos os lados, a rocha cristalina fora esculpida em forma de colunas gregas brilhantes. Os topos das colunas eram unidos por uma vara de bronze que sustentava cortinas de seda branca.
O nariz de Leo foi tomado por aromas deliciosos: cedro, zimbro, jasmim, pêssego e ervas frescas. O cheiro que vinha da caverna realmente chamou sua atenção: parecia que havia um ensopado de carne no fogo.
Começou a andar em direção à entrada. Sério, como poderia evitar? Mas parou quando viu a menina. Estava ajoelhada em sua horta, de costas para Leo. Murmurava para si mesma enquanto cavava furiosamente com uma espátula de jardinagem.
Leo se aproximou pelo lado, para que ela pudesse vê-lo. Não pretendia surpreendê-la uma vez que a menina estava armada com um afiado instrumento de jardinagem.
Ela continuou xingando em grego antigo e esfaqueando o solo. Tinha torrões de terra nos braços, no rosto e em seu vestido branco, mas parecia não se importar.
Leo gostou do que viu. Ela ficava melhor com um pouco de lama. Menos com cara de rainha da beleza, mais parecida com o tipo de pessoa que mete a mão na massa.
— Acho que você já castigou a terra o suficiente — disse Leo.
Ela olhou feio para ele, com olhos vermelhos e lacrimejantes.
— Vá embora.
— Você está chorando — ele falou, o que era estupidamente óbvio, mas vê-la dessa forma o desconcertou, por assim dizer.
Era difícil ficar bravo com alguém que estava chorando.
— Isso não é da sua conta — murmurou ela — a ilha é grande. Apenas... encontre o seu lugar. Deixe-me em paz. — Ela acenou vagamente em direção ao sul. — Vá por ali talvez.
— Então, nada de jangada mágica — afirmou Leo — não existe nenhuma outra maneira de sair desta ilha?
— Aparentemente, não!
— O que devo fazer? Ficar sentado nas dunas de areia até morrer?
— Seria bom... — Calipso baixou a espátula e amaldiçoou o céu. — Só que acho que ele não pode morrer aqui, não é mesmo? Zeus! Isso não é engraçado!
Não pode morrer aqui?
— Espere um pouco.
A cabeça de Leo girou como um eixo de manivela. Não conseguia traduzir muito bem o que a garota estava dizendo, como quando ouvia espanhóis ou sul-americanos falando espanhol. Sim, conseguia entender mais ou menos. Mas soava tão diferente que era quase outro idioma.
— Preciso de algumas informações. Você não me quer por perto, tudo bem. Também não quero ficar aqui. Mas não vou morrer em um canto. Preciso sair desta ilha. Tem de haver um meio. Todo problema tem uma solução.
Ela riu amargamente.
— Se ainda acredita nisso, não viveu muito tempo.
O modo como disse aquilo provocou-lhe um calafrio. Ela parecia ter a mesma idade que ele, mas Leo se perguntou quantos anos realmente teria.
— Você falou algo sobre uma maldição.
Ela flexionou os dedos, como se estivesse praticando a sua técnica de estrangulamento.
— É. Não posso deixar Ogígia. Meu pai, Atlas, lutou contra os deuses, e eu o apoiei.
— Atlas — Leo repetiu — o titã Atlas?
A garota revirou os olhos.
— Sim, seu pequeno impossível... — Fosse lá o que ia dizer, guardou para si. — Fiquei presa aqui, onde não poderia causar problemas para os olimpianos. Há cerca de um ano, depois da Segunda Guerra dos Titãs, os deuses prometeram perdoar os seus inimigos e ofereceram anistia. Supostamente, Percy os fez prometer...
— Percy — disse Leo — Percy Jackson?
Ela fechou os olhos. Uma lágrima escorreu pelo seu rosto.
Ah, pensou Leo.
— Percy esteve aqui — murmurou ele.
Ela enterrou os dedos no solo.
— E-eu pensei que seria libertada. Atrevi-me a ter esperança... mas ainda estou aqui.
Leo lembrava-se agora. A história era para ser um segredo, mas é claro que isso significava que se espalharia como fogo pelo acampamento. Percy contou para Annabeth. Meses mais tarde, quando ele desapareceu, Annabeth contou para Piper. Piper contou para Jason...
Percy dissera ter visitado aquela ilha. Encontrara uma deusa que se apaixonou por ele e queria mantê-lo por lá, mas acabou deixando-o partir.
— Você é aquela moça. Aquela que tem nome de música caribenha.
Os olhos dela faiscaram de ódio.
— Música caribenha...
— É. Reggae? — Leo balançou a cabeça. — Merengue? Espere, vou me lembrar... — Ele estalou os dedos. — Calipso! Mas Percy disse que você era incrível. Disse que era doce e útil, e prestativa, não, hum...
Ela se levantou:
— Sim?
— Hã, nada — cortou Leo.
— Você seria doce — perguntou ela — se os deuses esquecessem de sua promessa de deixá-lo partir? Seria doce se debochassem de você enviando outro herói, mas um herói parecido com... com você?
— Isso é uma pegadinha?
— Di Immortales!
Ela se virou e entrou em sua caverna.
— Ei!
Leo correu atrás dela.
Ao entrar, ficou atônito. As paredes eram feitas de pedaços de cristal colorido. Cortinas brancas dividiam a caverna em diferentes cômodos decorados com confortáveis almofadas, tapeçarias e pratos de frutas frescas. Viu uma harpa em um canto, um tear em outro e uma grande panela no fogo, onde o ensopado borbulhava, preenchendo a caverna com aromas deliciosos.
O mais estranho? As tarefas se executavam por conta própria. Toalhas flutuavam pelo ar, dobravam-se e empilhavam-se caprichosamente. Colheres lavavam a si mesmas em uma pia de cobre. A cena fez Leo lembrar dos espíritos invisíveis que serviam o almoço no Acampamento Júpiter.
Calipso estava diante de um lavatório, limpando a terra de seus braços.
Olhou feio para Leo, mas não gritou para que saísse. Sua raiva parecia estar perdendo a força.
Leo pigarreou. Se pretendia obter qualquer ajuda daquela mulher, precisava ser agradável.
— Então... Entendo por que está com raiva. Provavelmente deseja não ver nunca mais outro semideus. Acho que não ficou muito bem quando, hã, Percy a deixou...
— Ele foi apenas o mais recente — rosnou Calipso — antes dele, foi Drake, o pirata. E antes dele, Odisseu. São todos iguais! Os deuses me enviam os melhores heróis, aqueles que não me dão alternativa senão...
— Você se apaixonar por eles — completou Leo — e então eles a abandonam.
O queixo da garota tremia.
— Essa é a minha maldição. Tinha a esperança de me livrar disso agora, mas ainda estou aqui, presa em Ogígia há três mil anos.
— Três mil — a boca de Leo formigou, como se tivesse acabado de comer aquelas balinhas que estouram — hã, você está inteiraça para alguém que tem três mil anos.
— E agora... o pior insulto de todos. Os deuses zombam de mim enviando você.
A raiva borbulhou no estômago de Leo.
Sim, típico. Se Jason estivesse ali, Calipso se jogaria nos braços dele. Imploraria para que ficasse, mas ele se faria de nobre, falaria sobre retomar seus deveres e deixaria Calipso de coração partido. E a jangada mágica certamente chegaria.
Mas Leo? Era o convidado chato de quem ela não podia se livrar. Calipso nunca se apaixonaria por ele, porque ela definitivamente não era para o seu bico. Não que se importasse. Afinal, a moça não fazia o seu tipo. Era muito chata, e bonita, e... bem, isso não importava.
— Tudo bem. Eu a deixarei em paz. Vou construir algo sozinho e sair desta ilha estúpida sem a sua ajuda.
Ela balançou a cabeça com tristeza.
— Você não entende, não é? Os deuses estão rindo de nós dois. Se a jangada não aparecer, significa que fecharam Ogígia. Você está preso aqui, assim como eu. Nunca irá embora.
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