quarta-feira, 16 de abril de 2014

A Casa de Hades 51 ao 60

Capítulo LI - Leo

OS PRIMEIROS DIAS FORAM OS PIORES.
Leo dormia ao ar livre, em uma cama de trapos sob as estrelas. Fazia frio à noite, mesmo estando na praia e durante o verão, então acendia fogueiras com os restos da mesa de jantar de Calipso. Isso o animava um pouco.
Durante os dias, caminhava por toda a ilha, mas nada despertava seu interesse – a menos que gostasse de praias e de mar sem fim cercando-o. Tentou enviar uma mensagem de Íris nos arco-íris que se formavam na espuma das ondas, mas não conseguiu. Não tinha nenhum dracma para fazer o pagamento e, aparentemente, a deusa Íris não estava interessada em porcas e parafusos.
Nem estava sonhando, o que era incomum para ele – ou para qualquer semideus – de modo que não tinha a mínima ideia do que estava acontecendo no mundo exterior. Teriam os seus amigos se livrado de Quione? Estariam procurando por ele ou navegaram para Épiro para completar a missão?
Ele sabia o que esperar.
O sonho que tivera no Argo II finalmente fazia sentido: a feiticeira malvada lhe dissera para pular de um penhasco entre as nuvens ou descer em um túnel escuro onde vozes fantasmagóricas sussurravam. Aquele túnel deveria representar a Casa de Hades, que Leo jamais veria. Preferira o precipício – caindo do céu naquela ilha idiota. Mas, no sonho, uma escolha lhe fora oferecida. Na vida real, não tivera uma. Quione simplesmente arrancara-o de seu navio e o lançara em órbita. Totalmente injusto.
A pior parte de estar preso ali? Estava perdendo a noção dos dias. Certa manhã, ao acordar, não conseguia se lembrar se estava em Ogígia há três ou quatro noites.
Calipso ajudou muito. Leo confrontou-a no jardim, mas ela apenas balançou a cabeça.
— O tempo é complicado por aqui.
Ótimo. Para Leo, um século poderia ter se passado no mundo real, e a guerra com Gaia acabado, para o bem ou para o mal. Ou talvez só estivesse em Ogígia por cinco minutos. Poderia passar a sua vida inteira, tempo em que seus amigos no Argo II levariam para tomar o café da manhã.
De qualquer maneira, precisava sair daquela ilha.
Calipso teve pena dele. Enviou seus servos invisíveis para deixar tigelas de ensopado e taças de sidra de maçã na entrada do jardim. Chegou a enviar-lhe algumas mudas de roupa – simples, calças de algodão cru e camisas que ela devia ter feito em seu tear. Cabiam tão bem que Leo se perguntou como ela conseguira suas medidas. Talvez tenha apenas usado o seu molde genérico para MOLEQUE MAGRICELA.
De qualquer modo, estava feliz por ter roupas novas, uma vez que as antigas estavam queimadas e muito fedorentas. Geralmente, conseguia evitar que as roupas queimassem quando pegava fogo, mas aquilo exigia concentração. Às vezes, no acampamento, quando se distraía trabalhando em algum projeto de metal na forja, olhava para baixo e percebia que suas roupas tinham queimado, com exceção de seu cinto de ferramentas mágico e uma cueca fumegante.
Era meio constrangedor.
Apesar dos presentes, obviamente Calipso não queria encontrá-lo. Certa vez, enfiou a cabeça dentro da caverna e ela ficou furiosa, gritando e atirando panelas em sua cabeça.
Sim, ela definitivamente era Time Leo.
Ele acabou montando acampamento perto da trilha, onde a praia e as colinas se encontravam. Assim, ficaria perto o bastante para pegar suas refeições, mas Calipso não o veria, evitando acessos de raiva e arremessos de panelas.
Construiu uma cabana com madeira e lona. Cavou uma vala para a fogueira. Chegou a fazer um banco e uma mesa de trabalho com alguns troncos e galhos mortos de cedro. Passou horas consertando a esfera de Arquimedes, limpando-a e reparando seus circuitos. Construiu uma bússola, mas a agulha girava enlouquecida, não importando o que ele fizesse. Avaliou que um GPS também seria inútil. Aquela ilha fora projetada para ser indetectável, impossível de ser abandonada.
Ele se lembrou do velho astrolábio de bronze que pegara em Bolonha – um dos anões lhe dissera que fora Odisseu quem o construíra. Suspeitava que Odisseu estava pensando naquela ilha quando o construiu, mas, infelizmente, Leo teve que deixá-lo no navio com Buford, a Mesa Maravilha. Além disso, os anões afirmaram que o astrolábio não funcionava. Algo sobre um cristal que estava faltando...
Caminhava pela praia, perguntando por que Quione o enviara até ali – supondo-se que seu desembarque na ilha não fora um acidente. Por que não apenas matá-lo? Talvez Quione quisesse que ele ficasse no limbo para sempre. Talvez soubesse que os deuses estavam incapacitados demais para prestarem atenção em Ogígia, de modo que a magia da ilha fora desfeita. Talvez por isso Calipso ainda estivesse presa ali e a jangada mágica não apareceria para Leo.Ou, talvez, a magia daquele lugar estivesse funcionando muito bem. Os deuses puniam Calipso enviando-lhe caras corajosos que a abandonavam assim que ela se apaixonava por eles.
Talvez esse fosse o problema. Calipso nunca se apaixonaria por Leo. Queria que ele fosse embora. Então, estavam presos em um ciclo vicioso. Se esse era o plano de Quione... uau. Era um super plano do mal.
Então, certa manhã, ele fez uma descoberta, e tudo ficou ainda mais complicado.

* * *

Leo caminhava pelas colinas, seguindo um pequeno riacho que corria entre duas grandes árvores de cedro. Gostava de lá, pois era o único lugar em Ogígia onde não dava para ver o mar e conseguia fingir que não estava preso em uma ilha. À sombra das árvores, quase sentia como se estivesse de volta ao Acampamento Meio-Sangue, caminhando pela floresta em direção ao bunker 9.
Ele pulou o riacho. Em vez de aterrissar em terra macia, seus pés atingiram algo muito mais duro. CLANG.
Metal.
Empolgado, Leo cavou o musgo até ver brilho de bronze.
— Uau, cara.
Ria como um louco enquanto escavava.
Não sabia por que aquele material estava ali. Hefesto sempre se desfazia de peças quebradas de sua oficina divina e enchia a terra de sucata, mas quais as chances de algumas delas terem atingido Ogígia?
Leo encontrou um punhado de fios, algumas engrenagens empenadas, um pistão que ainda poderia funcionar, e várias lâminas de bronze celestial martelado – a menor era do tamanho de um porta-copos, a maior, do tamanho de um escudo de guerra.
Não era muito se comparado ao bunker 9 ou até mesmo ao seu estoque a bordo do Argo II. Mas era melhor do que só areia e pedras.
Olhou para a luz do sol brilhando através dos ramos de cedro.
— Pai? Se você enviou isto para mim, obrigado. Se não... bem, obrigado mesmo assim.
Reuniu seu tesouro e o arrastou de volta ao acampamento.
Depois disso, os dias passaram mais rapidamente e com muito mais barulho. Primeiro, Leo construiu um forno com tijolos de barro, que cozinhou um a um com as suas próprias mãos fumegantes. Encontrou uma pedra grande que poderia usar como base de bigorna, e tirou pregos de seu cinto de ferramentas até ter o suficiente para derretê-los em forma de uma superfície para martelar.
Feito isso, começou a fundir a sucata de bronze celestial novamente. A cada dia, seu martelo golpeava o bronze até a pedra da bigorna quebrar, suas pinças dobrarem, ou ele ficar sem lenha.
Todas as noites, ele caía na cama encharcado de suor e coberto de fuligem; mas sentia-se ótimo. Ao menos estava trabalhando, tentando resolver o seu problema.
A primeira vez que Calipso veio vê-lo, foi para reclamar do barulho.
— Fumaça e fogo — disse ela — retinir de metal o dia inteiro. Você está assustando os pássaros!
— Ah, não, pobres pássaros! — resmungou Leo.
— O que você espera fazer?
Ele ergueu os olhos e quase esmagou o polegar com o martelo. Vinha olhando para metal e fogo por tanto tempo que se esquecera de quão bela era Calipso. Irritantemente bela. Ela ficou ali, com a luz do sol em seu cabelo, a saia branca ondulando em torno de suas pernas, uma cesta com uvas e um pão recém-assado debaixo do braço.
Leo tentou ignorar que seu estômago roncava.
— Espero sair desta ilha — respondeu ele — é isso o que você quer, certo?
Calipso franziu a testa. Colocou a cesta perto de sua cama de trapos.
— Você não come há dois dias. Faça uma pausa e coma.
— Dois dias? — Leo nem notara, o que o surpreendeu já que gostava de comer. Estava ainda mais surpreso que Calipso tivesse notado.
— Obrigado — murmurou — eu, hã, vou tentar fazer menos barulho com o martelo.
— Hum.
Ela não pareceu acreditar.
Depois disso, Calipso não reclamou mais do barulho ou da fumaça.
Na vez seguinte em que o visitou, Leo dava os retoques finais em seu primeiro projeto. Não a viu se aproximar até Calipso falar bem atrás dele:
— Trouxe isso para você...
Leo deu um pulo, deixando cair os seus fios.
— Touros de bronze, garota! Não me assuste!
Ela estava usando vermelho naquele dia, a cor favorita de Leo. Aquilo era completamente irrelevante. Ela ficava muito bem de vermelho. Também irrelevante.
— Não estava tentando assustar. Vim lhe entregar isso.
Ela mostrou as roupas que trazia dobradas: uma nova calça jeans, uma camiseta branca, uma jaqueta militar... espere, aquelas eram as suas roupas, só que não poderiam ser. Sua jaqueta do exército queimara meses antes. Ele não a estava usando quando desembarcou em Ogígia. Mas as roupas que Calipso trouxera eram exatamente como aquelas que usava no primeiro dia em que chegou ao Acampamento Meio-Sangue, só que essas eram maiores, redimensionadas para caberem melhor.
— Como? — perguntou.
Calipso colocou as roupas no chão e se afastou como se ele fosse um animal perigoso.
— Sei um pouco de magia, sabe? Você vive queimando as roupas que lhe dou, então pensei em tecer algo menos inflamável.
— Essas não vão queimar?
Leo pegou a calça jeans que parecia ser feita de tecido normal.
— São completamente à prova de fogo — prometeu Calipso — elas se manterão limpas e crescerão para se adaptarem a você, caso se torne menos magrelo.
— Obrigado.
Queria soar sarcástico, mas estava sinceramente impressionado. Podia fazer muitas coisas, mas uma roupa autolimpante e não inflamável não estava na lista.
— Então... você fez uma réplica exata de minhas roupas favoritas. Será que me pesquisou no Google ou algo assim?
Ela franziu a testa.
— Não conheço essa palavra.
— Você me pesquisou. Quase como se tivesse algum interesse em mim.
Ela torceu o nariz.
— Tenho interesse em não ter que lhe fazer uma nova muda de roupas diariamente. Tenho interesse que não cheire tão mal e que pare de andar pela minha ilha em trapos fumegantes.
— Ah, sim — Leo sorriu — você realmente está se interessando por mim.
O rosto dela ficou ainda mais vermelho.
— Você é a pessoa mais insuportável que já conheci! Só estava retribuindo o favor. Você consertou a minha fonte.
— Aquilo?
Leo riu. O problema fora tão simples que quase se esquecera. Um dos sátiros de bronze virara de lado e a pressão da água estava baixa, de modo que a estátua começou a produzir um tique-taque irritante, balançando para cima e para baixo e jorrando água para fora do chafariz. Ele pegou um par de ferramentas e consertou em dois minutos.
— Não foi nada de mais. Não gosto quando as coisas não funcionam direito.
— E as cortinas na entrada da caverna?
— A vara não estava nivelada.
— E as minhas ferramentas de jardinagem?
— Veja, só afiei as tesouras. Cortar vinhas com uma lâmina cega é perigoso. As tesouras de poda precisavam de lubrificação nas juntas e...
— Ah, sim — disse Calipso, com uma boa imitação da voz de Leo — você realmente está se interessando por mim.
Pela primeira vez, Leo ficou sem palavras. Os olhos de Calipso brilhavam. Sabia que ela estava debochando dele, mas de alguma forma não parecia maldosa.
Calipso apontou para a mesa de trabalho.
— O que está construindo?
— Ah.
Leo olhou para o espelho de bronze, que ele acabara de ligar à esfera de Arquimedes. Na superfície polida da tela, seu próprio reflexo o surpreendeu. O cabelo crescera e estava mais encaracolado. O rosto estava mais magro e definido, talvez porque não estivesse comendo. Seus olhos estavam sombrios e pareciam um tanto ferozes quando não sorria – uma espécie de olhar de Tarzan, se Tarzan fosse um latino tamanho PP. Não podia culpar Calipso por rejeitá-lo.
— Hã, é um dispositivo para ver — explicou — encontramos um como este em Roma, na oficina de Arquimedes. Se eu puder fazer isso funcionar, talvez descubra o que está acontecendo com os meus amigos.
Calipso balançou a cabeça.
— Isso é impossível. Esta ilha está escondida, afastada do mundo por uma magia poderosa. Nem o tempo flui da mesma forma por aqui.
— Bem, você deve ter algum tipo de contato com o exterior. Como descobriu que eu tinha uma jaqueta assim?
Ela torceu o cabelo entre os dedos, como se a pergunta a incomodasse.
— Ver o passado é magia simples. Já ver o presente ou o futuro... não.
— Bem — disse Leo — veja e aprenda, gata. Acabei de ligar estes dois últimos fios e...
A placa de bronze piscou. Fumaça exalou da esfera. A manga da camisa de Leo pegou fogo. Tirou a camisa, jogou-a no chão e a pisoteou.
Dava para ver que Calipso estava tentando não rir, mas ela tremia com o esforço.
— Nem começa — advertiu Leo.
Ela olhou para seu peito nu, suado, ossudo, marcado por velhas cicatrizes de acidentes na fabricação de armas.
— Não há nada que mereça comentário — assegurou ela — se você quiser que o dispositivo funcione, talvez deva tentar uma invocação musical.
— Certo. Quando um aparelho não funciona, gosto de sapatear ao redor dele. Sempre dá certo.
Ela inspirou profundamente e começou a cantar.
Sua voz atingiu-o como uma brisa fresca, como a primeira frente fria no Texas, quando o calor do verão finalmente vai embora e você começa a acreditar que tudo pode melhorar. Leo não compreendia as palavras, mas a música era melancólica e agridoce, como se ela estivesse descrevendo um lar para o qual nunca pudesse retornar.
Seu canto era mágico, sem dúvida, mas não era como a voz indutora ao transe de Medeia, nem mesmo semelhante aos encantamentos de Piper. A música nada queria dele. Simplesmente evocava suas melhores lembranças: construindo coisas com sua mãe na oficina, sentado ao sol com seus amigos no acampamento. Aquilo fazia com que sentisse saudades de casa.
Calipso parou de cantar. Leo percebeu que estava olhando para ela como um idiota.
— Algum avanço? — perguntou ela.
— Hã... — Leo forçou os olhos de volta ao espelho de bronze. — Nada. Espere...
A tela brilhou. No ar acima, imagens holográficas surgiram.

* * *

Leo reconheceu o refeitório do Acampamento Meio-Sangue.
Não havia som, mas Clarisse la Rue do chalé de Ares gritava ordens para os campistas, reunindo-os em fileiras. Os irmãos de Leo do chalé 9 corriam, entregando armaduras e distribuindo armas para todos.
Até mesmo Quíron, o centauro, estava vestido para a guerra. Trotava para cima e para baixo nas fileiras, com o capacete emplumado reluzente, suas cernelhas dotadas de protetores de bronze. Seu sorriso simpático habitual desaparecera, substituído por um olhar de sombria determinação.
Ao longe, trirremes gregos flutuavam no mar em Long Island, preparados para a guerra. Ao longo das colinas, catapultas estavam sendo preparadas. Sátiros patrulhavam os campos, e os cavaleiros em pégasos circulavam no céu, atentos a ataques aéreos.
— Seus amigos? — perguntou Calipso.
Leo assentiu. Seu rosto estava dormente.
— Eles estão se preparando para a guerra.
— Contra quem?
— Veja — disse Leo.
A cena mudou. Uma falange de semideuses romanos marchava através de um vinhedo iluminado pelo luar. Em um letreiro luminoso ao longe, lia-se: ADEGA GOLDSMITH.
— Já vi esse letreiro — disse Leo — não fica longe do Acampamento Meio-Sangue.
Subitamente, as fileiras romanas se deterioraram no caos. Os semideuses se espalharam. Escudos caíram. Dardos oscilaram loucamente, como se todo o grupo tivesse pisado em saúvas.
Movendo-se sob o luar com rapidez havia duas pequenas criaturas cabeludas vestindo roupas descombinadas e chapéus extravagantes. Pareciam estar em todos os lugares ao mesmo tempo, batendo na cabeça dos romanos, roubando suas armas, cortando os cintos fazendo com que as calças caíssem.
Leo não pôde deixar de sorrir.
— Esses encrenqueiros adoráveis! Eles cumpriram a promessa.
Calipso inclinou-se, observando os cércopes.
— Primos seus?
— Muito engraçado... não.  Dois anões que conheci em Bolonha. Pedi que atrasassem os romanos, e eles estão fazendo exatamente isso.
— Mas por quanto tempo? — perguntou Calipso.
Boa pergunta. A cena mudou novamente. Leo viu Octavian – aquele áugure louro com cara de espantalho. Estava no estacionamento de um posto de gasolina, rodeado por SUVs pretas e semideuses romanos. Ele ergueu um longo mastro envolto em tela. Quando o descobriu, uma águia dourada brilhava no topo.
— Ah, isso não é bom — disse Leo.
— Um estandarte romano — observou Calipso.
— É. E esse atira raios, de acordo com Percy.
Assim que disse o nome de Percy, Leo se arrependeu. Olhou para Calipso e viu em seus olhos o quanto ela estava lutando, tentando organizar suas emoções em fileiras ordenadas, como fios em seu tear. O que mais surpreendeu Leo foi a onda de raiva que sentiu. Não era apenas aborrecimento ou ciúme. Estava furioso com Percy por ter magoado aquela menina.
Voltou a se concentrar nas imagens holográficas. Agora, via um único cavaleiro: Reyna, pretora do Campo Júpiter, voando através de uma tempestade montada em um pégaso castanho-claro. O cabelo escuro de Reyna balançava ao vento. Seu manto roxo flutuava, revelando a armadura brilhante. Sangue escorria de cortes nos braços e no rosto. Os olhos de seu pégaso estavam arregalados, a boca tensa pela difícil cavalgada. Mas Reyna avançava com firmeza em meio à tempestade.
Enquanto Leo observava, um grifo selvagem mergulhou das nuvens. Arranhou as costelas do cavalo, quase derrubando Reyna. Ela sacou a espada e matou o monstro. Segundos depois, apareceram três venti: espíritos da tempestade rodopiando como tornados em miniatura, enfeitados por raios. Reyna avançou contra eles, gritando em desafio.
Então, o espelho de bronze escureceu.
— Não! — gritou Leo. — Não, agora não. Mostre-me o que vai acontecer! — Ele bateu no espelho. — Calipso, pode cantar outra vez ou algo assim?
Ela olhou feio para ele.
— Suponho que seja a sua namorada. Sua Penélope? Sua Elizabeth? Sua Annabeth?
— O quê? — Leo não conseguia entender aquela garota. Metade das coisas que ela dizia não faziam sentido. — Essa é Reyna. Não é minha namorada! Preciso ver mais! Preciso...
PRECISO, uma voz ressoou no chão sob seus pés. Leo cambaleou, subitamente sentindo como se estivesse sobre um trampolim.
PRECISO é uma palavra utilizada em excesso. Uma figura humana rodopiante irrompeu da areia: a deusa menos favorita de Leo: a Dama da Lama, a Princesa da Fossa Sanitária, a própria Gaia.
Leo atirou um alicate em sua direção. Infelizmente, a figura não era sólida, e o alicate a atravessou. Seus olhos estavam fechados, mas não parecia exatamente adormecida. Tinha um sorriso estampado em seu rosto de redemoinho, como se estivesse ouvindo atentamente à sua música favorita. Suas roupas de areia se moviam e dobravam, lembrando as barbatanas ondulantes daquele estúpido e monstruoso Camarãozilla com quem lutaram no Atlântico. Mas Gaia certamente era mais feia.
Você quer viver, disse Gaia. Quer se juntar a seus amigos. Mas não precisa disso, meu pobre menino. Não faria diferença. Seus amigos morrerão de qualquer maneira.
As pernas de Leo bambearam. Odiava aquilo, mas, sempre que aquela bruxa aparecia, sentia ter oito anos novamente, preso no estacionamento da oficina mecânica de sua mãe, ouvindo a voz calma e maldosa de Gaia enquanto sua mãe, trancada dentro do armazém em chamas, morria vítima do calor e da fumaça.
— O que eu não preciso — rosnou — é de mais mentiras vindas de você, Cara de Lama. Você falou que meu bisavô morreu na década de 1960. Errado! Você falou que eu não poderia salvar meus amigos em Roma. Errado! Você falou demais.
O riso de Gaia era um farfalhar suave, como terra escorregando por uma colina nos primeiros momentos de uma avalanche.
Tentei ajudá-lo a fazer melhores escolhas. Você poderia ter se salvado. Mas me desafiou a cada passo. Construiu o seu navio. Juntou-se àquela missão tola. Agora está preso aqui, impotente, enquanto o mundo mortal morre.
As mãos de Leo explodiram em chamas. Queria derreter o rosto de areia de Gaia em vidro. Então, sentiu a mão de Calipso sobre o seu ombro.
— Gaia — a voz dela soava severa e firme — você não é bem-vinda.
Leo desejou poder soar tão confiante quanto Calipso. Então lembrou-se de que aquela garota irritante de quinze anos era na verdade a filha imortal de um titã.
Ah, Calipso. Gaia ergueu os braços como se fosse abraçá-la. Ainda aqui, pelo jeito, apesar das promessas dos deuses. Por que será, minha neta querida? Os Olimpianos estão sendo vingativos, deixando-a sem nenhuma companhia afora esse baixinho idiota? Ou será que simplesmente se esqueceram de você porque não significa nada para eles?
Calipso olhou diretamente através do rosto rodopiante de Gaia, em direção ao horizonte.
Sim, murmurou Gaia com simpatia. Os Olimpianos são infiéis. Eles não dão segundas chances. Por que manter a esperança? Você apoiou seu pai, Atlas, em sua grande guerra. Sabia que os deuses deviam ser destruídos. Por que hesita agora? Eu lhe ofereço uma chance que Zeus jamais lhe daria.
— Onde esteve nesses últimos três mil anos? — perguntou Calipso. — Se você se preocupa tanto com o meu destino, por que só veio me visitar agora?
Gaia voltou as palmas das mãos para cima.
A terra demora a despertar. A guerra virá no momento certo. Mas não pense que esquecerá Ogígia. Quando refizer o mundo, esta prisão também será destruída.
— Ogígia destruída? — Calipso balançou a cabeça, como se não pudesse imaginar essas duas palavras juntas.
Você não precisa estar aqui quando isso acontecer, prometeu Gaia. Junte-se a mim agora. Mate esse menino. Derrame o sangue dele sobre a terra e me ajude a despertar. Eu a libertarei e lhe concederei qualquer desejo. Liberdade. Vingança contra os deuses. Até mesmo um prêmio. Você ainda quer o semideus Percy Jackson? Eu o pouparei para você. Eu o ressuscitarei do Tártaro. Ele será seu, para ser punido ou amado, como desejar. Apenas mate esse menino invasor. Mostre a sua lealdade.
Vários cenários passaram pela cabeça de Leo, nenhum deles bom. Tinha certeza de que Calipso o estrangularia ali mesmo, ou mandaria seus servos invisíveis de vento o transformarem em purê.
Por que não o faria? Gaia estava lhe propondo o acordo ideal: mate um cara chato e ganhe um bonitão de graça!
Calipso ergueu a mão em direção a Gaia em um gesto de três dedos que Leo lembrava do Acampamento Meio-Sangue: o antigo sinal grego contra o mal.
— Esta não é apenas a minha prisão, avó. É a minha casa. E você é a invasora.
O vento dissolveu a forma de Gaia em nada, espalhando a areia pelo céu azul.
Leo engoliu em seco.
— Hã, não me leve a mal, mas você não me matou. Enlouqueceu?
Os olhos de Calipso brilhavam de ódio, mas pela primeira vez Leo não achou que aquele ódio fosse destinado a ele.
— Seus amigos devem precisar de você, ou Gaia não pediria a sua morte.
— Eu... hã, sim. Acho que sim.
— Então, temos trabalho a fazer. Precisamos levá-lo de volta ao seu navio.

Capítulo LII - Leo

LEO SE ACHAVA UM SUJEITO ocupado. Mas quando Calipso cismava com alguma coisa, transformava-se em uma máquina.
Em um dia, ela reuniu material suficiente para uma viagem de uma semana: comida, garrafas de água e ervas medicinais de seu jardim. Teceu uma vela grande o bastante para um pequeno iate e fez cordas suficientes para todo o cordame.
Fizera tanto que, no segundo dia, perguntou se Leo precisava de alguma ajuda em seu projeto.
Ele ergueu a cabeça da placa de circuitos que lentamente montava.
— Se não a conhecesse, acharia que está ansiosa para se livrar de mim.
— Isso é um bônus — admitiu ela.
Calipso estava vestida para trabalhar, com um jeans e uma camiseta branca encardida. Quando ele perguntou sobre a mudança de guarda-roupa, ela respondeu que percebera quão práticos eram aqueles trajes após fazer alguns para Leo.
Vestindo calça jeans, não parecia muito com uma deusa. Sua camiseta estava coberta de grama e manchas de terra, como se tivesse acabado de passar por uma Gaia rodopiante. Estava descalça e o cabelo cor de caramelo estava amarrado em um rabo de cavalo, o que fazia seus olhos amendoados parecerem ainda maiores e mais surpreendentes. As mãos estavam calejadas, repletas de bolhas pelo trabalho com as cordas.
Olhando para ela, Leo sentiu um inexplicável frio no estômago.
— Então — disse ela.
— Então... o quê?
Calipso apontou para o circuito.
— Posso ajudar? Como está indo?
— Ah, hã, estou indo bem. Eu acho. Se conseguir ligar essa coisa ao barco, devo ser capaz de navegar de volta para o mundo.
— Agora tudo que precisa é de um barco.
Tentou ler a expressão no rosto de Calipso. Leo não tinha certeza se ela estava irritada por ele ainda estar ali, ou triste por não estar indo embora também. Então olhou para todos os suprimentos que ela empilhara, mais do que o suficiente para duas pessoas durante vários dias.
— Aquilo que Gaia disse... — ele hesitou — sobre você sair desta ilha. Gostaria de tentar?
Ela franziu a testa.
— Como?
— Bem, não estou dizendo que seria divertido tê-la ao meu lado, sempre reclamando e me olhando de cara feia e tudo o mais. Mas suponho que posso suportar, se quiser tentar.
Sua expressão ficou um pouco mais amena.
— Como é nobre — murmurou Calipso — mas não, Leo. Se tentasse ir com você, sua pequena chance de fuga se reduziria a nenhuma. Os deuses colocaram magia antiga nesta ilha para me manter presa aqui. Um herói pode sair. Eu não. O mais importante é libertá-lo para que possa deter Gaia. Não que eu me importe com o que aconteça com você — acrescentou ela rapidamente — mas o destino do mundo está em jogo.
— Por que se preocuparia com isso? — perguntou Leo. — Quer dizer, depois de ter ficado afastada do mundo por tanto tempo?
Ela arqueou as sobrancelhas, como se estivesse surpresa ao vê-lo fazer uma pergunta sensata.
— Suponho que é porque não gosto que me digam o que fazer, seja Gaia ou qualquer outra pessoa. Por mais que odeie os deuses às vezes, ao longo dos últimos três milênios percebi que são melhores do que os titãs. Eles definitivamente são melhores que os gigantes. Ao menos os deuses mantêm contato. Hermes sempre foi gentil comigo. E seu pai, Hefesto, vem me visitar frequentemente. Ele é uma boa pessoa.
Leo não tinha certeza do que significava seu tom distante. Ela parecia quase estar ponderando o valor dele, não o de seu pai.
Calipso estendeu a mão e fechou a boca de Leo. Ele não tinha percebido que estava aberta.
— Agora, como posso ajudar? — perguntou.
— Hã...
Ele olhou para o seu projeto, mas, quando falou, deixou escapar uma ideia que vinha se formando desde que Calipso fizera as suas roupas novas.
— Sabe aquele pano à prova de fogo? Acha que poderia me fazer um saquinho daquele tecido?
Ele deu as dimensões. Calipso acenou com a mão, impaciente.
— Isso só levará alguns minutos. Vai ajudar em sua missão?
— É. Pode salvar uma vida. E, hum, poderia pegar um pedaço de cristal de sua caverna? Não preciso de muito.
Ela franziu a testa.
— Esse é um pedido estranho.
— Confie em mim.
— Tudo bem. Considere feito. Farei a bolsa à prova de fogo hoje à noite no tear, após me lavar. Mas o que posso fazer agora, enquanto minhas mãos estão sujas?
Ergueu os dedos sujos e calejados. Leo não pôde deixar de pensar que não havia nada mais excitante do que uma garota que não se importava em sujar as mãos. Mas, claro, aquela era apenas um observação generalizada, não se aplicava a Calipso. Obviamente.
— Bem, você poderia enrolar mais algumas bobinas de bronze. Mas esse é um tipo de trabalho especializado...
Ela se sentou no banco ao seu lado e começou a trabalhar, enrolando os fios de bronze mais rápido do que ele seria capaz de fazer.
— É como tecer — disse ela — não é tão difícil.
— Hum. Bem, se você algum dia sair desta ilha e quiser um emprego, me procure. Não é totalmente desajeitada.
Ela sorriu.
— Um emprego, hein? Fazer coisas na sua forja?
— Não. Poderíamos abrir nossa própria oficina — Leo respondeu, surpreendendo a si mesmo.
Abrir uma oficina mecânica sempre fora um de seus sonhos, mas ele nunca dissera aquilo para ninguém.
— Garagem do Leo e da Calipso: conserto de automóveis e monstros mecânicos.
— Frutas e vegetais frescos — sugeriu Calipso.
— Sidra e ensopado — acrescentou Leo — poderíamos até proporcionar entretenimento. Você poderia cantar e eu poderia, tipo, irromper em chamas de vez em quando.
Calipso riu, um som claro, feliz, que fez o coração de Leo disparar.
— Viu? — disse ele — Sou engraçado.
Ela conseguiu parar de rir.
— Você não é engraçado. Agora, de volta ao trabalho, ou nada de cidra e ensopado.
— Sim, senhora.
E trabalharam em silêncio, lado a lado, o resto da tarde.

* * *

Duas noites depois, o console de orientação estava concluído.
Leo e Calipso estavam sentados na praia, perto do local onde ele destruíra a mesa de jantar, participando de um piquenique noturno. A lua cheia transformava as ondas em prata. A fogueira que fizeram lançava faíscas cor de laranja para o céu. Calipso usava uma camisa branca limpa e uma calça jeans, que aparentemente decidira nunca mais tirar. Atrás deles, nas dunas, os suprimentos estavam cuidadosamente embalados, prontos para a viagem.
— Tudo o que precisamos agora é de um barco — disse Calipso.
Leo assentiu. Sentiu-se tentado a usar a palavra nós. Calipso deixara claro que não iria com ele.
— Amanhã posso começar a cortar a madeira em tábuas — disse Leo. — Em alguns dias, teremos o suficiente para um pequeno casco.
— Você já fez um navio antes — lembrou Calipso — o Argo II.
Leo assentiu. Pensou em todos os meses que passara para criar o Argo II. De algum modo, fazer um barco para sair de Ogígia parecia uma tarefa ainda mais difícil.
— Então, quanto tempo até ir embora? — O tom de Calipso era casual, mas ela não o fitou nos olhos.
— Hã, não tenho certeza. Mais uma semana?
Por algum motivo, dizer aquilo fez Leo se sentir menos agitado. Quando chegara, não via a hora de ir embora. Agora, estava feliz por ter mais alguns dias. Estranho.
Calipso correu os dedos sobre a placa de circuitos terminada.
— Isso demorou muito tempo para ser feito.
— Você não pode apressar a perfeição.
Um sorriso brotou nos cantos dos lábios dela.
— Sim, mas será que vai funcionar?
— Para eu ir embora, claro. Mas, para voltar, precisarei de Festus e...
— O quê?
Leo piscou.
— Festus. Meu dragão de bronze. Assim que descobrir como reconstruí-lo, vou...
— Você me falou sobre Festus — disse Calipso. — Mas o que quer dizer com voltar?
Leo sorriu nervosamente.
— Bem... para voltar aqui, oras! Tenho certeza de que falei sobre isso.
— Você obviamente não falou.
— Não vou deixá-la aqui! Depois do tanto que me ajudou? É claro que voltarei. Assim que reconstruir Festus, ele poderá lidar com um sistema de orientação aperfeiçoado. Há esse astrolábio que eu, hã...
Ele parou de falar, decidindo que era melhor não mencionar que fora construído por uma das antigas paixões de Calipso.
— ...que eu encontrei em Bolonha. Enfim, acho que com esse cristal que você me deu...
— Você não pode voltar — insistiu Calipso.
O coração de Leo quase parou.
— Porque não sou bem-vindo?
— Porque não pode. É impossível. Nenhum homem encontra Ogígia duas vezes. Essa é a regra.
Leo revirou os olhos.
— Sim, bem, você já deve ter notado que não sou muito bom com esse negócio de seguir regras. Voltarei aqui com o meu dragão, e a resgataremos. Nós a levaremos para onde você quiser ir. É mais do que justo.
— Justo... — A voz de Calipso estava quase inaudível.
À luz do fogo, seus olhos pareciam tão tristes que Leo não conseguia encará-los. Será que Calipso achava que ele estava mentindo apenas para fazê-la se sentir melhor? Ele tinha certeza de que voltaria e a libertaria daquela ilha. Como poderia não fazê-lo?
— Como montaria a Oficina mecânica Leo e Calipso sem Calipso? — ele perguntou. — Não sei fazer cidra e ensopado e certamente não sei cantar.
Ela olhou para a areia.
— Bem, de qualquer forma, amanhã começarei com a madeira — acrescentou Leo. — E, em alguns dias...
Ele olhou para a água. Algo oscilava sobre as ondas. Leo assistiu, incrédulo, quando uma grande jangada de madeira foi trazida pela maré e deslizou até parar na praia.

* * *

Ele estava atordoado demais para se mover, mas Calipso se ergueu.
— Depressa!
Ela correu pela praia, pegou alguns sacos de suprimentos e levou-os até a jangada.
— Não sei quanto tempo ficará aqui!
— Mas...
Leo se levantou. Suas pernas pareciam ter se tornado pedra. Acabara de se convencer de que tinha mais uma semana em Ogígia. Agora, não tinha nem tempo para terminar o jantar.
— Essa é a jangada mágica?
— Dã! — gritou Calipso. — Talvez funcione como deve e o leve para onde quer ir. Mas não podemos ter certeza. A magia da ilha obviamente está instável. Você deve levar o seu dispositivo de orientação para navegar.
Ela pegou o console e correu em direção à jangada, o que fez Leo se mover. Ele a ajudou a prendê-lo à jangada e passar os fios até o pequeno leme na popa. A jangada já era equipada com um mastro, de modo que Leo e Calipso arrastaram a vela para bordo e começaram a trabalhar no cordame.
Trabalharam lado a lado em perfeita harmonia. Nem mesmo entre os campistas de Hefesto, Leo trabalhara com alguém tão intuitiva como aquela jardineira imortal. Em pouco tempo, puseram a vela no lugar e todos os suprimentos a bordo. Leo apertou os botões na esfera de Arquimedes, murmurou uma prece ao seu pai, Hefesto, e o console de bronze celestial ganhou vida. O cordame se esticou. A vela se voltou. A jangada começou a se arrastar pela areia, forcejando para alcançar as ondas.
— Vá — disse Calipso.
Leo virou. Ela estava tão perto que ele não conseguia suportar. Calipso cheirava a canela e a lenha queimada, e achou que nunca voltaria a sentir um aroma tão bom.
— A jangada finalmente chegou — disse ele.
Calipso bufou. Seus olhos podiam estar vermelhos, mas era difícil dizer ao luar.
— Você notou?
— Mas se ela só aparece para os caras de quem você gosta...
— Não abuse da sorte, Leo Valdez. Eu ainda o odeio.
— Tudo bem.
— E você não voltará — insistiu Calipso — então não me faça promessas vazias.
— Que tal uma promessa cheia? — disse ele. — Porque eu, definitivamente...
Ela agarrou o rosto de Leo e puxou-o para um beijo, o que efetivamente o calou.
Apesar de todas as suas brincadeiras e flertes, Leo nunca beijara uma garota antes. Bem, já dera beijinhos fraternais no rosto de Piper, mas aquilo não contava. Aquele era um beijo verdadeiro, de língua. Se Leo tivesse engrenagens e fios em seu cérebro, teriam entrado em curto-circuito.
Calipso o afastou.
— Isso não aconteceu.
— Tudo bem.
A voz de Leo soou mais aguda que o habitual.
— Saia daqui.
— Tudo bem.
Ela deu as costas enxugando os olhos furiosamente e saiu correndo pela areia, a brisa despenteando seu cabelo.
Leo desejou chamá-la, mas a vela se inflou e a jangada deixou a praia. Ele se dedicou a alinhar o console de orientação. Quando voltou a olhar para trás, a ilha de Ogígia era uma linha escura ao longe, a fogueira pulsando como um pequeno coração cor de laranja.
Seus lábios ainda formigavam pelo beijo.
Isso não aconteceu, disse para si mesmo. Não posso estar apaixonado por uma menina imortal.
Ela definitivamente não pode estar apaixonada por mim. Não é possível.
Enquanto a jangada deslizava sobre a água, levando-o de volta ao mundo mortal, entendeu melhor um verso da profecia: Um juramento a manter com um alento final.
Entendeu quão perigosos podem ser os juramentos. Mas Leo não se importava.
— Voltarei para você, Calipso — disse ele ao vento da noite. — Juro pelo Rio Estige.

Capítulo LIII - Annabeth

ANNABETH JAMAIS TIVERA MEDO DO ESCURO.
Mas normalmente a escuridão não tinha mais de dez metros de altura, asas negras, um chicote feito de estrelas e uma biga sinistra puxada por cavalos vampiros.
Nix era quase demais para se assimilar por inteiro. Pairando sobre o abismo, a figura era indefinida, como se feita de cinza e fumaça, e quase tão alta quanto a estátua de Atena Partenos, só que viva. Seu vestido era negro feito o vácuo, com as cores de uma nebulosa espacial, como se galáxias nascessem de seu corpete.
Era difícil ver o rosto em detalhes, exceto pelos pequenos pontos de seus olhos que brilhavam como quasares. Quando batia as asas, ondas de escuridão emanavam do abismo, fazendo com que Annabeth se sentisse pesada e sonolenta, e sua visão se turvasse.
A biga da deusa era feita do mesmo material da espada de Nico di Angelo, ferro estígio, puxada por dois cavalos pretos enormes com caninos prateados e bem afiados. Os animais flutuavam acima do abismo, e suas pernas se transformavam em fumaça quando se moviam. Os cavalos relincharam e mostraram as presas para Annabeth. A deusa estalou seu chicote, uma fina fileira de estrelas que pareciam farpas de diamante, e os cavalos empinaram.
— Sombra, não! — repreendeu ela. — Calma, Trevas. Essas presas pequenas não são para vocês.
Percy olhou para os cavalos que relinchavam e bufavam. Continuava envolto na Névoa da Morte, então ainda parecia um cadáver embaçado, o que deixava Annabeth arrasada sempre que olhava para ele. Além disso, a camuflagem não devia ser muito boa, já que Nix obviamente podia vê-los.
Annabeth não conseguia decifrar a expressão no rosto fantasmagórico de Percy. Aparentemente, seu namorado não tinha gostado do que os cavalos estavam dizendo.
— Hã... Então não vai deixar que eles nos comam? — perguntou à deusa. — Eles querem muito nos devorar.
Os olhos de quasar de Nix flamejaram.
— É claro que não. Não deixaria meus cavalos devorarem vocês, assim como não deixaria Akhlys derrotá-los. São prêmios tão especiais que me mataria se não pudesse dar cabo de vocês eu mesma.
Annabeth não se sentia particularmente sagaz ou corajosa, mas seus instintos lhe disseram para tomar a iniciativa, ou aquela seria uma conversa muito curta.
— Ah, não se mate! — gritou ela. — Não somos assim tão assustadores.
A deusa baixou o chicote.
— O quê? Não, não foi isso que eu quis dizer... Eu...
— Ainda bem! — Annabeth olhou para Percy e deu um riso forçado. — Não queremos assustá-la, não é mesmo?
— Ha, ha. — Percy riu, sem forças. — Não, de jeito nenhum.
Os cavalos vampiros pareciam confusos. Empinavam, bufavam e batiam a cabeça negra uma na outra. Nix puxou as rédeas.
— Vocês sabem quem eu sou?
— Bem, acho que você é Noite — disse Annabeth. — Quer dizer, consegui reconhecê-la porque é cheia de escuridão e tudo mais, apesar de o folheto não falar muito sobre você.
Nix piscou, atordoada.
— Que folheto?
Annabeth tateou os bolsos.
— Nós tínhamos um, não tínhamos?
Percy umedeceu os lábios.
— Aham.
Ainda estava atento aos cavalos, com a mão no punho da espada, mas era inteligente o bastante para acompanhar o raciocínio de Annabeth. Agora ela tinha que torcer para não estar piorando as coisas... se bem que, para ser sincera, não conseguia ver como as coisas poderiam piorar.
— Enfim — continuou ela — acho que o folheto não dava detalhes porque você não era uma das atrações principais do tour. Vimos o Rio Flegetonte, o Cócito, as arai, a clareira venenosa de Akhlys, e até alguns titãs e gigantes aleatórios, mas Nix... humm, não, você não estava no programa.
— Atração principal? Programa?
— É — disse Percy, entrando na onda — viemos aqui para fazer uma excursão pelo Tártaro... tipo um destino exótico, sabe? O Mundo Inferior todo mundo já conhece. O Monte Olimpo é uma armadilha para turistas...
— Deuses, e como! — concordou Annabeth. — Então compramos o pacote com uma excursão ao Tártaro, mas ninguém mencionou que íamos encontrar Nix. Ah, bem, acho que não acharam que você era importante.
— Não sou importante!
Nix estalou o chicote no ar de novo. Os cavalos empinaram e bateram as presas prateadas. Ondas violentas de escuridão emanaram do abismo, deixando Annabeth apavorada, mas não podia demonstrar o medo.
Agarrou o braço de Percy e o forçou a baixar a espada. Aquela era uma deusa diferente de qualquer coisa que jamais tinham enfrentado. Nix era mais velha que todos os Olimpianos, titãs e gigantes, mais velha até que Gaia. Não podia ser derrotada por dois semideuses, pelo menos não pela força de dois semideuses.
Annabeth se obrigou a olhar para o rosto enorme e escuro da deusa.
— Bem, quantos outros semideuses que fizeram o tour vieram ver você? — perguntou com ar inocente.
Nix afrouxou as rédeas.
— Nenhum. Ninguém. Isso é inaceitável!
Annabeth deu de ombros.
— Talvez seja porque você na verdade não tenha feito nada para ficar famosa. Quer dizer, entendo que Tártaro seja importante! Todo esse lugar foi nomeado em sua homenagem. Ou se pudéssemos conhecer Dia...
— Ah, sim — intrometeu-se Percy. — Dia? Seria incrível. Queria muito vê-la e, quem sabe, pedir seu autógrafo.
— Dia! — Nix agarrou a lateral de sua biga. O veículo estremeceu. — Está falando de Hémera? Ela é minha filha! A Noite é muito mais poderosa!
— Ah — disse Annabeth — gostei mais das arai, até mesmo de Akhlys.
— Elas também são minhas filhas!
Percy fingiu bocejar.
— Você tem muitos filhos, hein?

— Sou a mãe de todos os terrores! — gritou Nix. — Das próprias Parcas! De Hécate! Da Velhice! Da Dor! Do Sono! Da Morte! E de todas as maldições! Estão vendo como mereço ser famosa?

Capítulo LIV - Annabeth

NIX CHICOTEOU O AR OUTRA VEZ. A escuridão ao seu redor se intensificou. Dos dois lados da deusa surgiu um exército de sombras, mais arai de asas pretas, que Annabeth não ficou muito animada em ver, um velho caquético que devia ser Geras, o deus da velhice, e uma mulher mais jovem de toga preta, com olhos brilhantes e o sorriso de um assassino em série; sem dúvida Éris, a deusa da discórdia. E outras figuras continuavam a aparecer: dezenas de demônios e deuses menores, cada um deles gerado pela Noite.
Annabeth queria correr. Estava diante de uma linhagem de criaturas horríveis que podiam destruir a sanidade de qualquer um. Mas se tentasse correr, morreria.
A seu lado, a respiração de Percy se acelerou. Apesar de sua aparência de cadáver embaçado, Annabeth sabia que o namorado estava quase entrando em pânico. Ela tinha que manter a calma pelos dois.
Sou filha de Atena, pensou. Controlo minha própria mente.
Imaginou uma espécie de moldura enquadrando a cena à sua frente. Disse a si mesma que estava apenas vendo um filme. Um filme assustador, verdade, mas que não podia feri-la. Estava no controle.
— É, nada mal — reconheceu — acho que podíamos tirar uma foto para o álbum da viagem, mas não sei. Vocês são tão... escuros, sabe? Mesmo que a gente usasse o flash, não sei se ia sair direito.
— É-é... — balbuciou Percy com certa dificuldade — vocês não são nada fotogênicos.
— Seus turistas malditos! — rosnou Nix. — Como ousam não tremer diante de mim? Como ousam não gemer de medo e implorar por meu autógrafo e uma foto para seu álbum? Querem ouvir uma história impressionante? Meu filho Hipnos uma vez fez Zeus dormir! Quando Zeus o perseguiu pela Terra em busca de vingança, Hipnos se refugiou em meu palácio, e Zeus não o seguiu. Até o rei do Olimpo me teme!
— Ah, tá. Legal — Annabeth se virou para Percy — bem, está ficando tarde. Acho que a gente podia almoçar em um dos restaurantes recomendados pelo guia. Depois achamos as Portas da Morte.
— Ahá! — gritou Nix, triunfante.
Sua prole de sombras se agitou e repetiu:
— Ahá! Ahá!
— Vocês querem ver as Portas da Morte? — perguntou Nix. — Elas ficam no coração do Tártaro. Mortais como vocês nunca conseguiriam chegar até elas, a não ser passando pelos salões de meu palácio... a Mansão da Noite!
Ela gesticulou, apontando para algo atrás de si. Pairando sobre o abismo, cerca de cem metros abaixo, havia um pórtico de mármore negro que dava para um grande salão.
O coração de Annabeth estava tão acelerado que ela sentia sua batida até nos dedos dos pés. Aquele era o caminho a seguir, mas a entrada ficava muito longe, e era um salto quase impossível. Se não conseguissem, cairiam no caos e se desintegrariam: uma morte definitiva, sem chance de volta. Mesmo que conseguissem pular, teriam que passar pela deusa da Noite e suas crias mais assustadoras.
De repente, Annabeth se deu conta do que precisava acontecer. Como tudo o que já havia feito, as possibilidades eram pequenas. De algum modo, isso a acalmou. Mais uma ideia maluca diante da morte?
Tudo bem, seu corpo pareceu dizer, relaxando. Estamos em território familiar. Ela conseguiu fingir um bocejo de tédio.
— Acho que podíamos tirar uma foto, mas o grupo todo não vai dar certo. Nix, que tal uma com seu filho favorito? Desses aí, qual é?
A prole se agitou. Dezenas de horríveis olhos brilhantes se voltaram para Nix. A deusa ficou irrequieta, como se a biga estivesse esquentando sob seus pés. Seus cavalos de sombra bufaram e bateram as patas no vazio.
— Meu filho favorito? Todos os meus filhos são aterrorizantes!
— Sério? — questionou Percy com desdém. — Conheci as Parcas. Conheci Tânato. Não eram assim tão assustadores. Tem que haver alguém aí pior que eles.
— O mais tenebroso — prosseguiu Annabeth — o mais parecido com você.
— Eu sou a mais tenebrosa — sibilou Éris — guerras e discórdia! Já causei todas as formas de morte!
— Sou ainda pior! — rosnou Geras. — Enfraqueço a visão e confundo a mente. Todo mortal teme a velhice!
— É, é — disse Annabeth, tentando ignorar seus dentes que batiam sem parar — não estou vendo ninguém sombrio o bastante. Quer dizer, vocês são filhos da Noite! Quero ver trevas de verdade!
A horda de arai urrou e bateu as asas de morcego, gerando ondas negras. Geras estendeu as mãos enrugadas e escureceu todo o abismo. Éris exalou sombras compridas que acentuaram as trevas.
— Sou o mais sinistro! — rosnou um dos demônios.
— Não, eu sou!
— Não! Vejam só as minhas trevas!
Nem se mil polvos gigantes expelissem nanquim ao mesmo tempo, no fundo da fenda mais profunda e obscura do oceano, a escuridão poderia ser maior. Era como se Annabeth estivesse cega. A garota agarrou a mão de Percy e tentou se acalmar.
— Esperem! — gritou Nix, entrando em um pânico repentino. — Não consigo ver nada.
— É! — gritou orgulhoso um de seus rebentos. — Eu fiz isso!
— Não, fui eu!
— Idiota, fui eu!
Dezenas de vozes discutiam na escuridão.
Os cavalos relincharam, assustados.
— Parem com isso! — berrou Nix. — De quem é este pé?
— Éris está me batendo! — gritou alguém. — Mãe, mande ela parar.
— Não fui eu! — berrou Éris. — Ai!
O barulho de brigas e discussões aumentou. Apesar de parecer impossível, a escuridão ficou ainda mais profunda. Os olhos de Annabeth estavam tão abertos que pareciam estar sendo arrancados de suas órbitas.
Ela apertou a mão de Percy.
— Pronto?
— Para quê? — Depois de um instante, ele grunhiu, nada satisfeito. — Pelas cuecas de Poseidon, você não pode estar falando sério.
— Alguém me dê um pouco luz! — gritou Nix. — Argh! Não posso acreditar que disse isso!
— É um truque! — berrou Éris. — Os semideuses estão fugindo.
— Eu os peguei — gritou uma arai.
— Não, isso é meu pescoço! — exclamou Geras, quase sufocando.
— Pule! — disse Annabeth a Percy.
Eles saltaram na escuridão na direção do portal bem, bem abaixo.

Capítulo LV - Annabeth

DEPOIS DE TER CAÍDO NO TÁRTARO, pular cem metros até a Mansão da Noite devia ter passado rápido.
Em vez disso, o coração de Annabeth pareceu desacelerar. Entre as batidas, teve tempo de escrever o próprio obituário.
Morreu Annabeth Chase, aos dezessete anos.
TUM-TUM.
(Supondo-se que seu aniversário, doze de julho, tivesse passado enquanto estava no Tártaro, mas, na verdade, não tinha a menor ideia.)
TUM-TUM.
Annabeth faleceu em decorrência de ferimentos graves sofridos ao pular como uma idiota no abismo do Caos e se estatelar no hall de entrada da mansão de Nix.
TUM-TUM.
Deixou pai, madrasta e dois meios-irmãos que mal a conheceram.
TUM-TUM.
Em vez de flores, favor enviar donativos para o Acampamento Meio-Sangue, se é que Gaia já não o destruiu.
Seus pés tocaram o chão. O impacto fez suas pernas doerem, mas cambaleou para a frente e logo estava correndo, puxando Percy atrás de si.
Acima deles, no escuro, Nix e seus filhos ainda discutiam e gritavam.
— Eu os peguei! Ai! Meu Pé! Parem!
Annabeth continuou a correr. Já que não conseguiria enxergar de qualquer jeito, fechou os olhos. Resolveu recorrer aos outros sentidos: ouvir à procura do eco de espaços abertos, sentir as correntes de ar que sopravam em seu rosto em busca de algum cheiro de perigo, fumaça, veneno ou do fedor de demônios.
Não era a primeira vez que mergulhava na escuridão. Imaginou-se de volta aos túneis subterrâneos de Roma, à procura de Atena Partenos. Em comparação, sua jornada à caverna de Aracne parecia uma viagem à Disneylândia.
Os sons das discussões dos filhos de Nix foram ficando mais distantes. Isso era bom. Percy ainda corria a seu lado, segurando sua mão. O que também era bom.
A distância, à frente deles, Annabeth começou a ouvir um som pulsante como se fosse o eco das batidas de seu coração, tão amplificado que fazia o chão tremer. O barulho a encheu de medo, então imaginou que era o caminho certo a seguir. Correu em direção ao ruído.
À medida que as batidas ficavam mais altas, sentiu cheiro de fumaça e ouviu o crepitar de tochas à sua esquerda e direita. Achou que em breve haveria luz, mas um arrepio que subia por sua nuca a alertava que seria um erro abrir os olhos.
— Não olhe — advertiu ela a Percy.
— Não pretendia fazer isso. Você também está sentindo, certo? Ainda estamos na Mansão da Noite. Eu não quero vê-la.
Garoto esperto, pensou Annabeth. Costumava provocar Percy dizendo que era burro, mas na verdade os instintos de seu namorado em geral acertavam na mosca.
Quaisquer que fossem os horrores abrigados na Mansão da Noite, não eram feitos para olhos mortais. Vê-los seria pior que olhar para o rosto de Medusa. Era melhor correr no escuro.
A pulsação ficou mais alta, enviando vibrações que subiam pela coluna de Annabeth. Parecia que alguém estava batendo no fundo do mundo, exigindo que o deixassem entrar. Sentiu portas se abrirem diante deles. O aroma do ar estava mais fresco, ou pelo menos não tão carregado de enxofre. Havia outro ruído, também, mais próximo do que a pulsação profunda... o som de água corrente.
O coração de Annabeth se acelerou. Sabia que a saída estava por perto. Se conseguissem sair da Mansão da Noite, talvez deixassem aquela família de demônios sombrios para trás. Começou a correr mais rápido, o que teria significado sua morte se Percy não a tivesse detido.

Capítulo LVI - Annabeth

— ANNABETH! — PERCY A PUXOU PARA trás no exato instante em que ela alcançou a beira de um penhasco.
Quase despencou para o interior de sabe-se lá o quê, mas Percy a segurou e envolveu em seus braços.
— Está tudo bem — tranquilizou-a.
Annabeth pressionou o rosto contra o peito dele e manteve os olhos bem fechados. Tremia, mas não de medo. O abraço de Percy era tão quente e reconfortante que queria ficar ali para sempre, segura e protegida... mas era apenas uma ilusão. Não podia se dar ao luxo de relaxar. Não podia se apoiar em Percy mais do que o necessário. Ele também precisava dela.
— Obrigada... — Ela se soltou de seus braços com delicadeza. — Sabe dizer o que há à nossa frente?
— Água — disse ele — ainda não estou olhando. Acho que ainda não é seguro.
— Concordo.
— Posso sentir um rio... ou talvez um fosso. Está no caminho e corre para a direita em um canal aberto na rocha. A outra margem fica a uns cinco metros de distância.
Annabeth se repreendeu mentalmente. Ouvira o barulho de água, mas nem imaginou que podia estar correndo direto para ela.
— Tem alguma ponte, ou...
— Acho que não. E há algo estranho com a água. Escute.
Annabeth se concentrou. De dentro da água, milhares de vozes gritavam, gemendo em agonia e suplicando por misericórdia.
Ajudem!, gemiam. Foi um acidente!
A dor!, uivavam. Façam com que pare!
Annabeth não precisava olhar para saber como devia ser o rio: um córrego negro e salgado de almas torturadas, arrastadas cada vez mais para as profundezas do Tártaro.
— O Rio Aqueronte — supôs — o quinto rio do Mundo Inferior.
— Eu preferia o Flegetonte — murmurou Percy.
— É o Rio da Dor. O castigo final para as almas dos condenados, especialmente os assassinos.
Assassinos!, lamentou o rio. Isso, iguais a vocês!
Juntem-se, murmurou outra voz. Vocês não são melhores que nós.
Inúmeras imagens dos monstros que Annabeth havia matado ao longo dos anos surgiram em sua cabeça.
Aquilo não era assassinato, protestou ela. Eu estava me defendendo!
O rio mudou de curso em sua mente, mostrando Zoe Doce-Amarga, que tinha sido morta no Monte Tamalpais porque fora resgatar Annabeth dos titãs. Viu a irmã de Nico morrer quando Talos, o gigante de metal, desabou sobre Bianca enquanto ela também tentava salvá-la. Michael Yew e Silena Beauregard... que morreram na Batalha de Manhattan.
Você podia ter evitado isso, disse o rio a Annabeth. Devia ter pensado em alguma coisa.
O mais doloroso de todos: Luke Castellan. Annabeth se lembrava do sangue de Luke em sua faca depois que ele se sacrificou para impedir que Cronos destruísse o Olimpo.
O sangue dele está em suas mãos!, gemeu o rio. Devia haver outra maneira!
Annabeth tinha remoído essa ideia muitas vezes. Tentava se convencer de que a morte de Luke não tinha sido culpa dela. O garoto tinha escolhido seu destino. Mesmo assim... não sabia se a alma dele encontrara paz no Mundo Inferior, se ele tinha renascido, ou se havia sido jogado no Tártaro por causa de seus crimes. O semideus podia ser uma das vozes torturadas que passavam por eles naquele instante.
Você o assassinou!, gritou o rio. Pule para cá e compartilhe a punição dele!
Percy segurou o braço dela.
— Não escute.
— Mas...
— Eu sei — a voz dele quase falhou — estão me dizendo a mesma coisa. Eu acho... acho que esse fosso deve ficar nos limites do território de Noite. Se conseguirmos atravessar, acho que vamos ficar bem. Mas vamos ter que pular.
— Mas você disse que eram uns cinco metros!
— É. Você vai ter que confiar em mim. Segure bem em meu pescoço com os dois braços.
— Como você vai conseguir...
— Ali! — gritou uma voz às costas deles. — Matem os turistas ingratos!
Tinham sido encontrados pelos filhos de Nix. Annabeth imediatamente agarrou o pescoço de Percy.
— Vai!
De olhos fechados, só podia imaginar como ele conseguira. Talvez tivesse usado a força do rio de alguma forma. Talvez estivesse apenas apavorado e sob o efeito da adrenalina. Percy saltou mais alto do que Annabeth achava que fosse possível. Passaram por cima do rio enquanto suas águas se agitavam e emitiam lamentos, molhando os tornozelos dela, que arderam com a água salgada.
E então... PLUNC. Estavam em terra firme de novo.
— Pode abrir os olhos — disse Percy, ofegante — mas não vai gostar do que vai ver.
Annabeth piscou. Depois da escuridão de Nix, até a penumbra do halo vermelho do Tártaro parecia cegante.
Diante deles se estendia um vale grande o bastante para abrigar a Baía de São Francisco. O barulho ritmado vinha de todos os lugares, como se trovejasse sob a terra. Sob as nuvens venenosas, o terreno aberto tinha um brilho roxo, com cicatrizes escuras vermelhas e azuis.
— Parece... — Annabeth tentou conter a repulsa. — Parece um coração gigante.
— O coração de Tártaro — murmurou Percy.
No centro do vale havia um aglomerado irregular de incontáveis pontos pretos. Estavam tão longe que Annabeth demorou um pouco para se dar conta de que estava olhando para um exército de milhares, talvez dezenas de milhares, de monstros agrupados em torno de um ponto escuro central. Não conseguia distinguir bem por conta da distância, mas não tinha dúvidas do que era o ponto. Mesmo da extremidade do vale, Annabeth podia sentir seu poder atraindo a alma dela.
— As Portas da Morte.
— É — a voz de Percy estava rouca.
Ele ainda estava com o aspecto pálido e ressecado de um cadáver... o que significava que parecia tão bem quanto Annabeth se sentia.
A garota percebeu que havia se esquecido completamente de seus perseguidores.
— O que aconteceu com Nix?
Ela se virou. De algum modo, eles haviam aterrissado a centenas de metros das margens do Aqueronte, que corria por um leito recortado em colinas vulcânicas negras. Depois disso, não havia nada além de escuridão.
Não havia sinal de ninguém vindo atrás deles. Aparentemente, até os seguidores de Noite não gostavam de cruzar o Aqueronte.
Quando ia perguntar a Percy como ele tinha conseguido saltar tão longe, ouviu o ruído de uma pedra caindo na colina à sua esquerda. Ela sacou a espada de osso de drakon. Percy ergueu Contracorrente.
Cabelos brancos reluzentes surgiram acima da crista do morro e, em seguida, avistaram um rosto sorridente e familiar com olhos prateados.
— Bob? — Annabeth ficou tão feliz que começou a pular. — Ah, meus deuses!
— Amigos!
O titã caminhou na direção deles. As cerdas de sua vassoura estavam queimadas. O uniforme de zelador estava rasgado com marcas de garras, mas ele parecia contentíssimo. No ombro, o gatinho Bob Pequeno ronronava quase tão alto quanto o coração pulsante de Tártaro.
— Achei vocês! — Bob envolveu os dois em um abraço de quebrar ossos. — Vocês parecem gente morta enfumaçada. Isso é bom.
— Uff — disse Percy, sem ar. — Como você chegou aqui? Pela Mansão da Noite?
— Não, não. — Bob sacudiu a cabeça com firmeza. — Aquele lugar é muito assustador. Outro caminho... só para titãs e coisas assim.
— Deixe-me adivinhar — disse Annabeth. — Você foi pelos lados.
Bob coçou o queixo, claramente sem palavras.
— Humm... não, não pelos lados. Mais... pela diagonal.
Annabeth riu. Lá estavam eles no coração do Tártaro, diante de um exército inacreditável. Tinha que aproveitar todo o conforto que pudesse conseguir. Estava ridiculamente feliz por ter novamente a companhia do titã Bob.
Ela beijou o nariz do imortal, o que o fez piscar.
— Ficamos juntos agora? — perguntou ele.
— Claro — concordou Annabeth — é hora de ver se a Névoa da Morte funciona.
— E se não funcionar... — Percy não terminou a frase.
Não fazia sentido levantar dúvidas. Estavam prestes a passar no meio de um exército inimigo. Se fossem vistos, morreriam.
Apesar disso, Annabeth conseguiu sorrir. Seu objetivo estava à vista. Tinham um titã com uma vassoura e um gatinho muito barulhento ao seu lado. Isso devia servir para alguma coisa.
— Portas da Morte — disse ela — aí vamos nós.

Capítulo LVII - Jason

JASON NÃO SABIA BEM O que esperar: tempestade ou fogo.
Enquanto aguardava por sua audiência diária com o senhor do Vento Sul, tentou decidir qual das personalidades do deus, a romana ou a grega, era a pior. Mas após cinco dias no palácio, Jason estava certo de apenas uma coisa: era pouco provável que ele e sua tripulação saíssem vivos dali.
Encostou-se no guarda-corpo da varanda. O ar estava tão quente e seco que parecia sugar a umidade de seus pulmões. Durante a última semana, sua pele escurecera e o cabelo ficara branco como palha de milho. Sempre que se olhava no espelho, ele se assustava com seu olhar selvagem e vazio, como se tivesse ficado cego ao vagar a esmo em um deserto.
Trinta metros abaixo, o mar da baía brilhava junto à praia de areia vermelha. Estavam em algum lugar da costa norte da África. E essa foi a única informação que os espíritos do vento deram a ele.
De onde Jason estava, o palácio se estendia para ambos os lados, uma colmeia de salas, túneis, varandas, colunas e quartos cavernosos esculpidos nos penhascos de arenito, tudo projetado para que o vento soprasse através deles e fizesse o maior barulho possível. Os constantes sons de órgão lembraram a Jason o covil flutuante de Éolo, no Colorado, exceto que aqui os ventos pareciam não ter pressa.
O que era parte do problema.
Em seus melhores dias, os venti do sul eram lentos e preguiçosos. Nos piores, eram tempestuosos e raivosos. A princípio deram boas vindas ao Argo II, já que qualquer inimigo de Bóreas era amigo do Vento Sul, mas pareciam ter se esquecido de que os semideuses eram seus hóspedes. Os venti rapidamente perderam o interesse em ajudar a consertar o navio. E o humor de seu rei piorava a cada dia.
No cais, os amigos de Jason trabalhavam no Argo II. A vela principal fora reparada, o cordame, substituído. Naquele momento, eles remendavam os remos. Sem Leo, ninguém sabia como consertar as partes mais complicadas do navio, mesmo com a ajuda de Buford, a mesa, e Festus (que agora estava permanentemente ligado graças ao charme de Piper – e ninguém entendia isso). Mas continuavam tentando.
Hazel e Frank estavam ao leme, mexendo nos controles. Piper transmitia as ordens deles para o treinador Hedge, que estava pendurado na lateral do navio, martelando as mossas nos remos. Hedge era a pessoa certa para martelar coisas.
Não pareciam estar fazendo muito progresso, mas, considerando o que tinham passado, era um milagre que o navio ainda estivesse inteiro.
Jason estremeceu ao se lembrar do ataque de Quione. Ele ficara impotente – congelado não uma, mas duas vezes, enquanto Leo era lançado para o céu e Piper foi obrigada a salvar a todos sozinha.
Graças aos deuses eles tinham Piper. Ela se considerava um fracasso por não ter evitado a explosão da bomba de vento, mas a verdade é que salvara toda a tripulação de virar esculturas de gelo em Quebec. Ela também conseguiu direcionar a explosão da esfera de gelo, de modo que, embora o navio tivesse sido arremessado até o meio do Mediterrâneo, não sofrera grandes danos.
Lá do cais, Hedge gritou:
— Tentem agora!
Hazel e Frank puxaram algumas alavancas. Os remos a bombordo ficaram enlouquecidos, subindo e descendo como se estivesse fazendo uma ola. O treinador Hedge tentou se esquivar, mas um remo o atingiu no traseiro e o lançou para o alto. Ele caiu gritando nas águas da baía.
Jason suspirou. Naquele ritmo, jamais seriam capazes de navegar, mesmo que os venti do sul permitissem. Em algum lugar ao norte, Reyna estava voando para Épiro, supondo-se que ela tivesse encontrado seu bilhete no palácio de Diocleciano. Leo estava perdido e em perigo. Percy e Annabeth... bem, na melhor das hipóteses ainda estavam vivos, tentando chegar às Portas da Morte. Jason não podia deixá-los na mão.
Um farfalhar o fez se virar. Nico di Angelo estava à sombra da coluna mais próxima. Ele tirara a jaqueta. Agora vestia apenas uma camiseta e um jeans preto. Trazia sua espada e o cetro de Diocleciano pendurados no cinto.
Os vários dias sob o sol quente não bronzearam a pele dele. Se muito, parecia ainda mais pálida. O cabelo escuro caía em seus olhos. O rosto ainda estava magro, mas ele definitivamente parecia estar em melhor forma do que quando deixaram a Croácia. Nico recuperara peso suficiente para não parecer desnutrido. Os músculos de seus braços estavam surpreendentemente firmes, como se tivesse passado a semana anterior treinando com a espada.
Jason achava que ele vinha praticando escondido como invocar espíritos com o cetro de Diocleciano para, em seguida, lutar com eles. Após a expedição em Split, nada o surpreenderia.
— Alguma palavra do rei? — perguntou Nico.
Jason balançou a cabeça.
— A cada dia ele me recebe mais tarde.
— Precisamos ir embora — disse Nico — logo.
Jason tinha a mesma sensação, mas ouvir Nico dizendo aquilo o deixou ainda mais tenso.
— Está sentindo alguma coisa?
— Percy está perto das Portas — respondeu — ele precisará de nós para atravessá-las com vida.
Jason percebeu que ele não mencionara Annabeth, mas decidiu não comentar.
— Tudo bem. Mas se não conseguirmos consertar o navio...
— Prometi levá-los à Casa de Hades — disse Nico — de um jeito ou de outro, é o que farei.
— Você não pode viajar nas sombras com todos nós. E precisamos de todos nós para chegar às Portas da Morte.
A esfera no topo do cetro de Diocleciano brilhou na cor roxa. Na última semana, ela parecia estar sintonizada com o humor de Nico di Angelo. Jason não tinha certeza se aquilo era uma coisa boa.
— Então você precisa convencer o rei do Vento Sul a ajudar — a voz de Nico fervia de raiva — eu não vim até aqui e sofri tantas humilhações...
Jason teve que se forçar a não levar a mão à espada. Sempre que Nico ficava com raiva, todos os instintos de Jason berravam: Perigo!
— Veja, Nico, eu estou aqui se você quiser conversar sobre, você sabe, o que aconteceu na Croácia. Entendo como é difícil...
— Você não entende nada.
— Ninguém vai julgá-lo.
A boca de Nico se contorceu em um sorriso de escárnio.
— Sério? Seria uma novidade. Sou o filho de Hades, Jason. Pela forma como as pessoas me tratam, parece que ando por aí coberto de sangue ou água de esgoto. Não pertenço a lugar algum. Nem mesmo sou deste século. Mas parece que isso não é suficiente para me excluir. Preciso ser... ser...
— Cara, não é como se você tivesse escolha! É apenas quem você é.
— Apenas quem eu sou... — a varanda estremeceu. Padrões formaram-se no chão de pedra, como ossos subindo à superfície. — Para você é fácil dizer. O menino de ouro, o filho de Júpiter. A única pessoa que me aceitou foi Bianca, e ela morreu! Não escolhi nada disso. Meu pai, o que sinto...
Jason tentou pensar em algo para dizer. Ele queria ser amigo de Nico. Sabia que era a única maneira de ajudá-lo. Mas Nico não facilitava as coisas.
Ele ergueu as mãos em submissão.
— É, está bem. Mas, Nico, é você quem escolhe como viver a sua vida. Você quer confiar em alguém? Então arrisque acreditar que sou seu amigo de verdade e que vou aceitá-lo. É melhor do que se esconder.
O piso entre os dois rachou. A fenda sibilou. O ar ao redor de Nico tremulou com luz espectral.
— Esconder? — A voz de Nico soava mortalmente calma.
Os dedos de Jason coçavam para sacar a espada. Ele conhecera muitos semideuses assustadores, mas estava começando a perceber que Nico di Angelo – pálido e magro como era – podia ser mais poderoso do que imaginara.
Contudo, não desviou o olhar do de Nico.
— Sim, se esconder. Você fugiu dos dois acampamentos. Está com tanto medo de ser rejeitado que nem mesmo tenta. Talvez seja hora de parar de se esconder nas sombras.
No momento em que a tensão tornou-se insuportável, Nico desviou os olhos. A fissura se fechou no piso da varanda. A luz fantasmagórica desapareceu.
— Honrarei minha promessa — disse Nico, não mais alto do que um sussurro — vou levá-los a Épiro. Ajudarei vocês a fechar as Portas da Morte. E só. Então vou embora... para sempre.
Atrás deles, as portas da sala do trono se abriram com uma rajada de ar escaldante.
Uma voz sem corpo disse: O sr. Austro o receberá agora.
Por mais que temesse aquela audiência, Jason sentiu-se aliviado. Naquele momento, discutir com um deus do vento caduco parecia mais seguro do que fazer amizade com um filho de Hades furioso. Ele virou-se para se despedir de Nico, mas o outro já desaparecera – misturando-se novamente à escuridão.

Capítulo LVIII - Jason

ENTÃO ERA DIA DE TEMPESTADEAustro, a versão romana do Vento Sul, estava dando audiência.
Nos dois dias anteriores, Jason lidara com Noto. Embora a versão grega do deus fosse inflamada e ficasse com raiva rapidamente, ao menos era rápida. Austro... bem, nem tanto.
Colunas de mármore branco e vermelho contornavam a sala do trono. O piso áspero de arenito soltava fumaça sob os sapatos de Jason. Vapor pairava no ar, como nas termas do Acampamento Júpiter, só que elas normalmente não tinham tempestades estalando no teto, iluminando o ambiente com relâmpagos desorientadores.
Venti do sul rodopiavam pelo salão em nuvens de poeira vermelha e ar superaquecido. Jason teve o cuidado de não tocar em nenhum. Em seu primeiro dia ali, acidentalmente roçara a mão em um deles e ficara com tantas bolhas que seus dedos pareciam tentáculos.
Nos fundos da sala ficava o trono mais estranho que Jason já vira – feito de partes iguais de fogo e água. O estrado era uma fogueira. Chamas e fumaça se misturavam para formar o assento. O encosto era uma agitada nuvem de tempestade. Os braços do trono chiavam nos pontos em que a água se encontrava com o fogo. Não parecia muito confortável, mas Austro estava relaxado como se estivesse pronto para uma tarde tranquila assistindo a uma partida de futebol.
De pé, o deus teria cerca de três metros de altura. Uma coroa de vapor envolvia seu cabelo branco e desgrenhado. A barba era feita de nuvens que constantemente relampejavam e derramavam chuva no peito do deus, encharcando sua toga cor de areia. Jason se perguntou se era possível fazer uma barba de nuvem de tempestade. Imaginou que deveria ser irritante chover sobre si mesmo o tempo todo, mas Austro não parecia se importar. Lembrava a Jason um Papai Noel encharcado, embora mais preguiçoso do que alegre.
— Então — a voz do deus ribombou como uma frente fria se aproximando — o filho de Júpiter retorna.
Austro fez parecer que Jason estava atrasado. Jason sentiu-se tentado a lembrar àquele estúpido deus do vento que ele passara várias horas por dia lá fora esperando ser chamado, mas apenas fez uma reverência.
— Meu senhor, já recebeu alguma notícia de meu amigo? — perguntou.
— Amigo?
— Leo Valdez — Jason tentou ser paciente — aquele que foi levado pelos ventos.
— Ah... sim. Ou melhor, não. Não tivemos nenhuma notícia. Ele não foi levado por meus ventos. Sem dúvida, isso foi trabalho de Bóreas ou de suas crias.
— Hã, sim. Já sabíamos disso.
— Este é o único motivo de tê-los hospedado aqui, é claro. — As sobrancelhas de Austro ergueram-se em direção à coroa de vapor. — Bóreas deve ser combatido! Os ventos do norte devem ser repelidos!
— Sim, meu senhor. Mas, para combater Bóreas, precisamos tirar nosso navio do porto.
— Navio no porto! — O deus se inclinou para trás e riu, a chuva pingando de sua barba. — Sabe o que aconteceu na última vez que navios de mortais entraram no meu porto? Foi um rei da Líbia... Psilo. Ele culpava a mim pelos ventos escaldantes que queimavam suas plantações. Dá para acreditar?
Jason trincou os dentes. Ele sabia que Austro não devia ser apressado. Em sua forma de tempestade, ele era lento, quente e esporádico.
— E você queimou essas plantações, meu senhor?
— Óbvio! — Austro sorriu, bem-humorado. — Mas o que Psilo esperava com plantações no limiar do Saara? O idiota lançou toda a sua frota contra mim. Tinha a intenção de destruir minha fortaleza para que o vento sul nunca pudesse soprar outra vez. Eu destruí a frota, é claro.
— É claro.
Austro estreitou os olhos.
— Você não veio com Psilo, veio?
— Não, sr. Austro. Sou Jason Grace, filho de...
— Júpiter! Sim, claro. Eu gosto de filhos de Júpiter. Mas por que seu navio ainda está no meu porto?
Jason conteve um suspiro.
— Não temos sua permissão para partir, meu senhor. Além disso, o navio está danificado. Precisamos de nosso mecânico, Leo Valdez, para consertar o motor, a menos que o senhor conheça outra maneira.
— Hum... — Austro ergueu os dedos e um redemoinho de poeira se formou entre eles, como uma batuta. — Sabe, as pessoas me acusam de ser inconstante. Às vezes, sou um vento escaldante, destruidor de plantações, o siroco da África! Em outras, sou calmo, anunciando as chuvas quentes de verão e os frescos nevoeiros do sul do Mediterrâneo. E fora de temporada, tenho um lugar encantador em Cancún! De qualquer forma, nos tempos antigos, os mortais tanto me temiam quanto me amavam. Para um deus, a imprevisibilidade pode ser uma força.
— Então o senhor deve ser muito forte — disse Jason.
— Obrigado! Sim! Mas o mesmo não se aplica aos semideuses. — Austro se inclinou para a frente, perto o suficiente para que Jason pudesse sentir o cheiro de terra molhada e praias de areia quente. — Você me lembra de meus próprios filhos, Jason Grace. Sempre vagando de um lugar a outro. Indeciso. Mudando a cada dia. Se pudesse escolher a direção do vento, para onde sopraria?
O suor escorria pelas costas de Jason.
— Perdão?
— Você diz que precisa de um navegador. Que precisa da minha permissão. Eu digo que você não precisa de nada disso. É hora de tomar uma decisão. Um vento que sopra à toa não serve para nada.
— Eu não... Eu não estou entendendo.
Mas enquanto dizia isso, ele entendeu. Nico falara sobre não pertencer a lugar algum. Ao menos Nico estava livre de vínculos. Ele poderia ir para onde quisesse.
Jason estava tentando decidir a qual lugar pertencia durante meses. Ele sempre se irritara com as tradições do Acampamento Júpiter, os jogos de poder e a luta interna. Mas Reyna era uma boa pessoa. Ela precisava de sua ajuda. Se ele desse as costas para ela... alguém como Octavian poderia assumir e destruir tudo o que Jason amava em Nova Roma. Poderia ser tão egoísta a ponto de partir? Só de pensar nisso sentia-se esmagado pela culpa.
Contudo, no fundo de seu coração, ele queria ficar no Acampamento Meio-Sangue. Os meses que passara ali com Piper e Leo lhe pareceram mais gratificantes, melhores do que todos os anos no Acampamento Júpiter. Além disso, no Acampamento Meio-Sangue havia ao menos uma chance de ele finalmente conhecer o pai. Os deuses quase nunca apareciam no Acampamento Júpiter para dar um oi.
Jason inspirou profundamente.
— Sim. Sei qual direção desejo seguir.
— Ótimo! E o que mais?
— Hã, ainda precisamos consertar o navio. Existe alguma...?
Austro ergueu o dedo indicador.
— Ainda esperando a orientação dos senhores do vento? Um filho de Júpiter deveria ser mais esperto.
Jason hesitou.
— Iremos embora, sr. Austro. Hoje.
O deus do vento sorriu e abriu os braços.
— Finalmente anunciou seu propósito! Então têm minha permissão para partir, embora não precisem dela. Como navegarão sem o seu mecânico, sem os motores consertados?
Jason sentiu os ventos do sul sibilando ao seu redor, relinchando em desafio como garanhões teimosos testando sua vontade.
Durante toda a semana ele esperara que Austro decidisse ajudá-los. Durante meses se preocupara com suas obrigações com o Acampamento Júpiter, esperando que seu caminho se tornasse mais claro. Agora percebia que devia simplesmente fazer o que quisesse. Ele tinha que controlar os ventos, e não o contrário.
— Você vai nos ajudar — disse Jason — seus venti podem assumir a forma de cavalos. Você nos dará uma tropa para puxar o Argo II. Eles nos levarão até Leo.
— Maravilhoso! — exclamou Austro, sua barba carregada de eletricidade. — Agora... você pode cumprir o que suas palavras corajosas prometem? Pode controlar o que deseja, ou será feito em pedacinhos?
O deus bateu palmas. Os ventos rodopiaram ao redor de seu trono e assumiram a forma de cavalos. Não eram escuros e frios como o amigo de Jason, Tempestade. Os cavalos do Vento Sul eram feitos de fogo, areia e água fervente. Quatro passaram perto do garoto, o calor chamuscando os pelos de seus braços. Galoparam em torno das colunas de mármore, cuspindo chamas, relinchando com o som das tempestades de areia. Quanto mais corriam, mais selvagens se tornavam. Eles começaram a encarar Jason.
Austro coçou a barba chuvosa.
— Você sabe por que os venti podem aparecer como cavalos, meu rapaz? De vez em quando nós, deuses do vento, viajamos pela terra na forma de equinos. Em algumas ocasiões, já fomos conhecidos por termos gerado os cavalos mais rápidos de todos.
— Obrigado — murmurou Jason, embora seus dentes batessem de medo. — Muita informação.
Um dos venti atacou Jason. Ele desviou para o lado, suas roupas fumegando com a proximidade do cavalo.
— Às vezes — continuou Austro alegremente — mortais reconhecem nosso sangue divino. Dizem: Este cavalo corre como o vento. E por um bom motivo. Assim como os garanhões mais rápidos, os venti são nossos filhos!
Os cavalos de vento começaram a circular Jason.
— Como meu amigo, Tempestade — arriscou ele.
— Ah, bem... — Austro fez uma careta. — Infelizmente ele é um filho de Bóreas. Como você conseguiu domá-lo, jamais saberei. Mas estes são meus filhos, uma bela tropa de ventos do sul. Controle-os, Jason Grace, e eles tirarão seu navio do porto.
Controlá-los, pensou Jason. Sei.
Os venti corriam para todos os lados, frenéticos. Como seu mestre, o Vento Sul, estavam em conflito – metade um siroco quente e seco, metade um tempestuoso cúmulo nimbus.
Preciso de velocidade, pensou Jason, preciso de propósito.
Ele se concentrou em Noto, a versão grega do Vento Sul – escaldante, mas muito rápido. Naquele momento, ele escolheu o grego. Apostou no Acampamento Meio-Sangue, e os cavalos mudaram. As nuvens de tempestade dentro deles se dissiparam, restando apenas poeira vermelha e ondas de vapor, como miragens no Saara.
— Muito bem — disse o deus.
Noto estava sentado no trono agora, um velho de pele bronzeada usando uma chiton grega de fogo e uma coroa de cevada seca e fumegante na cabeça.
— O que está esperando? — perguntou.
Jason voltou-se para os cavalos de vento e fogo. Subitamente, não tinha mais medo deles. Estendeu a mão. Um redemoinho de poeira disparou em direção ao cavalo mais próximo. Um laço – uma corda de vento, mais poderosa do que qualquer tornado – enrolou-se em torno do pescoço do animal. O vento formou um arreio e o cavalo parou.
Jason invocou outra corda de vento. Ele laçou um segundo cavalo, submetendo-o à sua vontade. Em menos de um minuto, tinha amarrado os quatro venti. Ele os refreou. Ainda relinchavam e resistiam, mas não podiam romper as cordas. O garoto parecia estar empinando quatro pipas em um dia de vento forte – difícil, sim, mas não impossível.
— Muito bem, Jason Grace — disse Noto — você é um filho de Júpiter, mas mesmo assim escolheu o próprio caminho, como todos os grandes semideuses fizeram antes de você. Não pode controlar a sua ascendência, mas pode escolher sua herança. Agora vá. Amarre seus cavalos à proa e direcione-os para Malta.
— Malta? — Jason tentou se concentrar, mas o calor dos cavalos o estava deixando tonto.
Ele não sabia nada sobre Malta, apenas uma vaga história sobre um falcão maltês. Será que o malte foi inventado lá?
— Assim que chegarem à cidade de Valetta — disse Noto — não precisarão mais destes cavalos.
— Quer dizer que... vamos encontrar Leo?
O deus tremulou, lentamente se dissipando em ondas de calor.
— Seu destino está mais claro, Jason Grace. Quando tiver que escolher novamente entre tempestade ou fogo, lembre-se de mim. E não entre em pânico.
As portas da sala do trono se abriram. Ao sentirem o cheiro da liberdade, os cavalos dispararam em direção à saída.

Capítulo LIX - Jason

AOS DEZESSEIS ANOS, A MAIORIA dos jovens se preocupa com a prova de baliza, tirar a carteira de motorista e ter dinheiro para comprar um carro.
Jason se preocupava em controlar uma tropa de cavalos de fogo com cordas de vento.
Depois de se certificar que seus amigos estavam a bordo e em segurança sob o convés, ele atou os venti à proa do Argo II (coisa que Festus não gostou nem um pouco), montou na figura de proa e gritou:
— Upa, lelê!
Os venti dispararam pelas ondas. Não galopavam tão rápido quanto o cavalo de Hazel, Arion, mas eram muito mais quentes. Levantavam uma nuvem de vapor que tornava quase impossível que ele enxergasse para onde iam. O navio disparou para fora da baía. Em pouco tempo, a África era apenas uma linha nebulosa no horizonte atrás deles.
Manter as cordas de vento exigia toda a concentração de Jason. Os cavalos faziam força para se libertarem. Apenas a determinação dele os mantinha sob controle.
Malta, ordenou. Para Malta.
Quando finalmente viu terra ao longe – uma ilha montanhosa coberta de pequenas construções de pedra – Jason estava encharcado de suor. Seus braços pareciam feitos de borracha, como se tivesse sustentado um haltere sem dobrar o cotovelo por muito tempo.
Ele esperava que tivessem chegado ao lugar certo porque não conseguiria manter aqueles cavalos juntos por mais tempo. Jason soltou as rédeas de vento. Os venti se dissolveram em partículas de areia e vapor.
Exausto, ele desceu da proa e se apoiou no pescoço de Festus. O dragão virou-se e recostou a cabeça no ombro dele.
— Obrigado, cara — disse Jason — dia difícil, hein?
Atrás dele, as tábuas do convés rangeram.
— Jason — chamou Piper — ah, deuses, seus braços...
Ele não percebera, mas sua pele estava repleta de bolhas.
Piper pegou um pedaço de ambrosia.
— Coma isso.
Ele mastigou. Sua boca se encheu com o sabor de brownies recém-assados – seu doce favorito nas padarias de Nova Roma. As bolhas desapareceram de seus braços. Sua força voltou, mas o brownie de ambrosia parecia mais amargo do que o habitual, como se soubesse de alguma forma que Jason estava dando as costas para o Acampamento Júpiter. Aquele gosto não o fazia mais se lembrar de casa.
— Obrigado, Pipes — murmurou ele — por quanto tempo estive...?
— Umas seis horas.
Uau, pensou Jason. Não é de se admirar que estivesse dolorido e com fome.
— E os outros?
— Estão bem. Cansados de ficarem parados. Posso dizer que é seguro subir ao convés?
Jason lambeu os lábios secos. Apesar da ambrosia, sentia-se trêmulo. Ele não queria que os outros o vissem assim.
— Me dê um segundo para recuperar o fôlego.
Piper se encostou ao lado dele. Estava usando uma regata verde, short bege e botas de caminhada, parecia pronta para escalar uma montanha e então encarar um exército quando chegasse lá em cima. Trazia sua adaga presa ao cinto e a cornucópia pendurada no ombro. Ela tinha decidido ficar com a espada dentada de bronze que tirara de Zetes, o boréada, que era apenas um pouco menos intimidadora do que um rifle.
Durante o tempo em que ficara no palácio de Austro, Jason observara Piper e Hazel treinando com as espadas durante horas, algo por que Piper jamais se interessara anteriormente. Desde seu encontro com Quione, ela parecia mais nervosa, tensa como uma catapulta armada, como se estivesse determinada a nunca mais ser pega de surpresa.
Jason entendia o sentimento, mas tinha medo de que ela estivesse sendo muito severa consigo mesma. Ninguém podia estar pronto para qualquer situação o tempo todo. Ele devia saber: passara a última batalha como um tapete congelado no chão.
Jason devia estar encarando Piper, porque ela acabou lançando-lhe um sorriso compreensivo.
— Ei, eu estou bem. Nós estamos bem.
Ela ficou na ponta dos pés e o beijou, e foi tão bom quanto a ambrosia. Seus olhos tinham tantas tonalidades que Jason poderia ficar olhando para eles o dia inteiro, da mesma forma que as pessoas assistem às auroras boreais.
— Eu tenho sorte de ter você — disse ele.
— Sim, você tem — ela empurrou seu peito com delicadeza — agora, como é que vamos levar este navio até o cais?
Jason franziu a testa e olhou para a ilha. Ainda estavam a cerca de um quilômetro de distância. Ele não fazia ideia se conseguiriam ligar os motores ou içar as velas...
Felizmente, Festus estava ouvindo. Ele olhou para a frente e cuspiu fogo. O motor do navio roncou e vibrou. Parecia uma enorme motocicleta com a corrente partida, mas o barco começou a se mover. Lentamente, o Argo II seguia em direção ao litoral.
Piper deu um tapinha no pescoço de Festus.
— Bom menino.
Os olhos de rubi do dragão brilharam como se ele estivesse satisfeito consigo mesmo.
— Festus parece diferente depois que você o ligou — disse Jason — mais... vivo.
— Do modo como ele deveria ser — Piper sorriu — acho que todos nós precisamos ser despertados por alguém que nos ama de vez em quando.
Perto dela, Jason se sentia tão bem que quase podia imaginar seu futuro juntos no Acampamento Meio-Sangue quando a guerra terminasse – supondo-se que fossem sobreviver e que ainda houvesse um acampamento para onde voltar.
Quando tiver que escolher novamente entre tempestade ou fogo, dissera Noto, lembre-se de mim. E não entre em pânico.
Quanto mais se aproximavam da Grécia, mais nervoso Jason ficava. Estava começando a pensar que Piper estava certa sobre o trecho da tempestade ou fogo da profecia: um deles, Jason ou Leo, não voltaria vivo daquela viagem.
E era por isso que tinham que encontrar Leo. Por mais que desejasse viver, Jason não poderia deixar seu amigo morrer por causa dele. Não poderia viver com a culpa. É claro que esperava estar enganado. Ele queria que ambos saíssem daquela missão inteiros. Mas tinha que estar preparado. Ele protegeria seus amigos e deteria Gaia – a qualquer custo.
Não entre em pânico. Sim. Fácil para um deus do vento imortal falar.
À medida que a ilha se aproximava, Jason viu as docas repletas de barcos. Da costa rochosa elevavam-se paredões de uns quinze metros de altura parecidos com fortalezas. Acima deles, erguia-se uma cidade de aparência medieval com torres de igreja, domos e prédios amontoados, todos feitos da mesma pedra dourada. De onde Jason estava, parecia que a cidade cobria cada centímetro da ilha.
Ele examinou os barcos no porto. Cem metros à frente, amarrado na ponta da maior doca, havia uma jangada improvisada, com um mastro e uma simples vela quadrada de lona. Na proa, o leme estava ligado a algum tipo de máquina. Mesmo a distância, podia ver o brilho do bronze celestial.
Ele sorriu. Somente um semideus faria um barco como aquele e atracaria o mais perto possível do porto, onde o Argo II não poderia deixar de notá-lo.
— Chame os outros — disse Jason para Piper — Leo está aqui.

Capítulo LX - Jason

ENCONTRARAM LEO NO TOPO DAS fortificações da cidade. Ele estava sentado em uma cafeteria ao ar livre, com vista para o mar, bebendo café e vestindo... uau. Déjà-vu. A roupa de Leo era idêntica à que ele usava no dia de sua chegada ao Acampamento Meio-Sangue: calça jeans, camisa branca e uma velha jaqueta militar. Só que aquela jaqueta havia sido queimada meses antes.
Piper quase o derrubou da cadeira com um abraço.
— Leo! Deuses, onde você esteve?
— Valdez! — O treinador Hedge sorriu. Então, pareceu se lembrar de que tinha uma reputação a zelar e forçou uma carranca. — Se você voltar a desaparecer assim, seu moleque, vou espancá-lo!
Frank deu um tapa tão forte nas costas dele que Leo fez uma careta de dor. Até mesmo Nico apertou-lhe a mão.
Hazel beijou-o na bochecha.
— Pensamos que você estivesse morto!
Leo conseguiu esboçar um leve sorriso.
— Oi, galera. Que isso, estou bem.
Jason podia perceber que ele não estava bem. Leo não os olhava nos olhos. As mãos dele estavam perfeitamente imóveis sobre a mesa. As mãos de Leo nunca ficavam paradas. Toda a energia parecia ter sido drenada de seu corpo e substituída por uma espécie de tristeza melancólica.
Jason se perguntou por que sua expressão lhe parecia familiar. Então percebeu que Nico di Angelo ficara da mesma forma após confrontar Cupido nas ruínas de Salona. Leo estava com dor de cotovelo.
Enquanto os outros foram puxar cadeiras das mesas próximas, Jason se inclinou e apertou o ombro do amigo.
— Ei, cara, o que aconteceu? — perguntou.
Os olhos de Leo se voltaram para o grupo. A mensagem era clara: Aqui não. Não na frente de todos.
— Virei um náufrago — disse Leo — é uma longa história. E quanto a vocês? O que aconteceu com Quione?
O treinador Hedge riu com desdém.
— O que aconteceu? Piper aconteceu! Estou lhe dizendo, esta garota tem talento!
— Treinador... — protestou Piper.
Hedge começou a contar a história, mas na versão dele Piper era uma assassina lutadora de kung fu e havia muito mais boréadas.
Enquanto o treinador falava, Jason observou Leo com preocupação. Aquela cafeteria tinha uma vista perfeita para o porto. Leo deve ter visto o Argo II chegar à costa. No entanto, ficara ali bebendo café – algo de que ele nem mesmo gostava – esperando que eles o encontrassem.
Leo não era assim. O navio era a coisa mais importante de sua vida. Quando viu que tinham ido resgatá-lo, Leo deveria ter corrido até as docas, gritando com toda a força em comemoração.
O treinador estava descrevendo como Piper derrotara Quione com um chute à Chuck Norris quando ela o interrompeu:
— Treinador! Não foi nada disso que aconteceu. Não poderia ter feito nada sem Festus.
Leo ergueu as sobrancelhas.
— Mas Festus está desligado.
— Hum, então — disse Piper — eu meio que o ativei.
Piper explicou sua versão dos acontecimentos – como ela reiniciara o dragão de metal com o charme.
Leo tamborilou os dedos na mesa, como se um pouco de sua antiga energia estivesse retornando.
— Não deveria ser possível — murmurou ele — a menos que as atualizações permitam que ele responda a comandos de voz. Mas se agora ele está permanentemente ligado, isso significa que o sistema de navegação e o cristal...
— Cristal? — perguntou Jason.
Leo fez uma careta.
— Hum, esquece. De qualquer forma, o que aconteceu depois que a bomba de vento explodiu?
Hazel continuou a história. Uma garçonete se aproximou e ofereceu os cardápios. Logo estavam mastigando sanduíches, bebendo refrigerantes e aproveitando o dia ensolarado quase como um grupo de adolescentes normais.
Frank pegou um panfleto turístico, preso sob o suporte de guardanapos, e começou a lê-lo. Piper deu um tapinha no braço de Leo, como se não pudesse acreditar que ele estivesse realmente ali. Nico estava na ponta da mesa, observando os pedestres em busca de possíveis inimigos. O treinador Hedge mastigava os saleiros e pimenteiros.
Apesar da reunião feliz, todos pareciam mais abatidos – como se estivessem refletindo o humor de Leo. Jason nunca percebera de fato quão importante era o senso de humor dele para o grupo. Mesmo quando as coisas estavam superdifíceis, sempre podiam contar com Leo para alegrar o ambiente. Agora, parecia que toda a equipe perdera o ânimo.
— Então Jason domou os venti — terminou Hazel. — E aqui estamos.
Leo assobiou.
— Cavalos de ar quente? Caramba, Jason. Então, basicamente, você acumulou um bocado de gás até chegar a Malta, e então soltou.
Jason franziu a testa.
— Sabe, não soa tão heroico quando você fala desse jeito.
— Sim, bem. Quando dou o ar da minha graça, pode ter certeza de que ele vai ser quente. E ainda estou me perguntando, por que Malta? Eu meio que cheguei aqui na jangada, mas isso foi uma coisa aleatória, ou...
— Talvez por causa disto — Frank bateu no panfleto — diz aqui que Calipso morou em Malta.
Leo ficou pálido.
— O-o quê?
Frank deu de ombros.
— De acordo com isto, ela morava na ilha de Gozo, ao norte daqui. Calipso é um mito dos gregos, não é?
— Ah, um mito dos gregos! — O treinador Hedge esfregou as mãos. — Talvez tenhamos que lutar com ela! Temos que lutar com ela? Porque eu estou pronto.
— Não — murmurou Leo — não temos que lutar com ela, treinador.
Piper franziu a testa.
— Leo, o que há de errado? Você parece...
— Não há nada de errado! — Leo se levantou. — Ei, precisamos ir. Temos trabalho a fazer!
— Mas... onde você esteve? — perguntou Hazel. — De onde você tirou essas roupas? Como...
— Caramba, moças! — exclamou Leo. — Agradeço a preocupação, mas não preciso de duas mães extras!
Piper sorriu, hesitante.
— Tudo bem, mas...
— Temos navios para consertar! — disse Leo. — Festus para regular! Deusas da terra para ganhar socos na cara! O que estamos esperando? Leo está de volta!
Ele abriu os braços e sorriu.
Leo estava fazendo uma tentativa corajosa, mas Jason podia ver resquícios de tristeza em seus olhos. Algo acontecera com ele... algo relacionado a Calipso.
Jason tentou se lembrar da história. Ela era um tipo de feiticeira, talvez como Medeia ou Circe. Mas se Leo escapara do covil de uma feiticeira malvada, por que parecia tão triste? Jason teria que conversar com ele mais tarde para se assegurar de que seu amigo estava bem. Por enquanto Leo claramente não queria ser interrogado.
Jason se levantou e colocou a mão no ombro dele.
— Leo está certo. Devemos ir.
Todos entenderam a deixa e começaram a embrulhar a comida e a terminar as bebidas. Subitamente, Hazel ofegou.
— Pessoal...
Ela apontou para o nordeste. A princípio, Jason não viu nada além do mar. Então, um risco de escuridão cortou o ar como um raio negro – como se noite cerrada tivesse rompido através do dia.
— Não vejo nada — resmungou o treinador Hedge.
— Também não — disse Piper.
Jason olhou para o rosto dos amigos. A maioria estava confusa. Nico era o único que parecia ter notado o raio negro.
— Não pode ser... — murmurou Nico — a Grécia ainda está a centenas de quilômetros de distância.
A escuridão apareceu de novo, momentaneamente desbotando as cores do horizonte.
— Você acha que é Épiro?
Todo o corpo de Jason formigava como quando tomou um choque de mil volts. Ele não sabia por que conseguia ver os raios de escuridão. Não era um filho do Mundo Inferior. Mas estava com uma sensação muito ruim.
Nico assentiu.
— A Casa de Hades está aberta para negócios.
Poucos segundos depois, um ruído estrondoso chegou até eles, como tiros distantes.
— Já começou — disse Hazel.
— O quê? — perguntou Leo.
Quando o raio seguinte apareceu, os olhos dourados de Hazel escureceram como uma folha no fogo.
— O esforço final de Gaia — respondeu ela — as Portas da Morte estão trabalhando a todo vapor. O exército de Gaia está entrando no mundo mortal em massa.
— Nunca conseguiremos — disse Nico — até chegarmos lá, já haverá muitos monstros.
Jason estava determinado.
— Podemos vencê-los. Nós viajaremos rápido. Encontramos Leo, ele nos dará a velocidade de que precisamos — Jason olhou para o amigo — ou você só apareceu para dar o ar da sua graça?
Leo deu um sorriso torto. Seus olhos pareciam dizer: Obrigado.
— Hora de voar, crianças — disse ele. — Tio Leo ainda tem alguns truques na manga!

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