quarta-feira, 16 de abril de 2014

A casa de Hades 21 ao 30

Capítulo XXI - Annabeth

ANNABETH CONCLUIU QUE OS MONSTROS não iam matá-la. Nem a atmosfera venenosa, nem a paisagem traiçoeira com seus poços, precipícios e rochas afiadas.
Não. O motivo de sua morte seria, muito provavelmente, a overdose de bizarrices que faria seu cérebro explodir.
Primeiro, ela e Percy tiveram que beber fogo para se manterem vivos. Depois, foram atacados por um bando de vampiras, comandado por uma líder de torcida que Annabeth matara dois anos antes. Por fim, foram resgatados por um titã zelador chamado Bob, que tinha cabelos de Einstein, olhos de prata e técnicas mortíferas de luta com vassoura.
Claro. Por que não?
Seguiram Bob pela paisagem estéril e acompanharam o Flegetonte até se aproximarem da tempestade de trevas. De vez em quando, paravam para beber o fogo líquido, o que os mantinha vivos, mas Annabeth não estava nada feliz. Era como se estivesse o tempo todo fazendo gargarejo com ácido de bateria.
Seu único conforto era Percy. De vez em quando, ele a olhava e sorria ou apertava sua mão. Devia estar tão apavorado e arrasado quanto ela, mas Annabeth o amava por tentar fazê-la se sentir melhor.
— Bob sabe o que está fazendo — assegurou Percy.
— Você tem amigos interessantes — murmurou Annabeth.
— Bob é interessante! — O titã se virou e deu um sorriso. — É, obrigado!
A audição do grandalhão era bem aguçada. Annabeth não podia se esquecer disso.
— Então, Bob... — Ela tentou soar despreocupada e simpática, o que não era fácil com a garganta ardendo por causa do fogo líquido. — Como você chegou ao Tártaro?
— Eu pulei — disse ele como se fosse óbvio.
— Você pulou no Tártaro porque Percy disse seu nome?
— Ele precisava de mim. — Seus olhos prateados brilharam em meio à escuridão. — Não tem problema. Estava cansado de varrer o palácio. Venham, estamos quase chegando a um abrigo.
Abrigo.
Annabeth não conseguia imaginar o que aquela palavra significava no Tártaro. Lembrou-se de quando ela, Luke e Thalia eram semideuses sem-teto lutando pela sobrevivência e dependiam dos abrigos que encontravam em sua jornada.
Esperava que, aonde quer que Bob os estivesse levando, houvesse banheiros limpos e uma máquina que vendesse salgadinhos. Conteve o riso. É, estava mesmo ficando maluca.
Annabeth continuou a mancar, tentando ignorar o estômago, que roncava. Observou as costas de Bob enquanto ele os conduzia na direção da muralha de escuridão, agora a apenas algumas centenas de metros de distância. O uniforme azul de zelador tinha um grande rasgo entre as omoplatas, como se alguém houvesse tentado esfaqueá-lo. Havia panos de limpeza saindo de seu bolso. Trazia no cinto uma garrafa plástica, e o líquido azul em seu interior balançava de modo hipnótico.
Annabeth se lembrou da história de Percy sobre como conhecera o titã. Thalia Grace, Nico di Angelo e Percy tinham se unido para derrotar Bob às margens do Lete. Depois de apagar sua memória, não tiveram coragem de matá-lo. O titã se tornou tão gentil, simpático e prestativo que os semideuses o deixaram no palácio de Hades, onde Perséfone prometeu que cuidariam dele. Aparentemente, o rei e a rainha do Mundo Inferior entendiam que “cuidar” de alguém era dar à pessoa uma vassoura e mandá-la limpar sua sujeira. Annabeth achou muita insensibilidade, até mesmo para Hades. Jamais sentira pena de um titã antes, mas não parecia certo pegar um imortal que teve a memória apagada e transformá-lo em um zelador que não recebia salário.
Ele não é seu amigo, lembrou a si mesma.
Morria de medo de que, de repente, Bob se lembrasse de quem era. O Tártaro era o lugar para onde os monstros iam se regenerar. E se ele recuperasse a memória e voltasse a ser Jápeto?
Bem, ela o vira dar cabo daquelas empousai. Annabeth estava desarmada. Ela e Percy não estavam em condições de enfrentar um titã. Olhava nervosamente para o cabo da vassoura de Bob, perguntando-se em quanto tempo aquela lança oculta se projetaria para fora e apontaria para ela.
Seguir Bob pelo Tártaro era um risco absurdo. Infelizmente, não podia pensar em plano melhor.
Seguiam pelas terras desoladas e cinzentas quando um relâmpago vermelho reluziu nas nuvens tóxicas. Apenas mais um dia agradável nas masmorras da criação. Annabeth não podia ver muito longe no ar enevoado, entretanto, quanto mais caminhavam, mais certeza tinha de que estavam descendo.
Ela ouvira descrições conflitantes do Tártaro. Era um poço sem fundo. Uma fortaleza cercada por paredes de metal. Não era nada além de um vazio infinito.
Uma história o descrevia como o contrário do céu, o interior oco de um enorme domo de rocha invertido. Essa parecia a descrição mais precisa, porém, se o Tártaro fosse um domo, Annabeth achava que era como o do céu: sem um fundo de verdade, mas composto por várias camadas, cada uma mais escura e menos acolhedora que a anterior.
E nem isso contava toda a horrível verdade...
Passaram por uma bolha que brotava do chão. Era translúcida e do tamanho de uma minivan. Em seu interior estava o corpo semiformado de um drakon. Bob perfurou-a com a lança sem pensar duas vezes. Ela explodiu em um gêiser de gosma amarela e fumegante, e o drakon se desintegrou.
Bob continuou em frente.
Monstros são espinhas na pele do Tártaro, pensou Annabeth. E estremeceu. Às vezes desejava não ter uma imaginação tão fértil, porque agora estava certa de que caminhavam por algo vivo. Toda aquela paisagem bizarra, o domo, poço ou fosse qual fosse seu nome, era o corpo do deus Tártaro, a mais antiga encarnação do mal. Assim como Gaia habitava a superfície da Terra, Tártaro habitava as profundezas.
Se aquele deus os notasse caminhando por sua pele, como pulgas em um cachorro... Chega. Chega de pensar nisso.
— Aqui — disse Bob.
Pararam no topo de uma elevação. Abaixo deles, em uma depressão parecida com uma cratera lunar, havia um círculo de colunas de mármore em ruínas cercando um altar de rocha negra.
— Um santuário de Hermes — explicou Bob.
Percy franziu a testa.
— Um santuário de Hermes no Tártaro?
Bob riu com prazer.
— É. Caiu de algum lugar há muito tempo. Talvez do mundo mortal. Talvez do Olimpo. Enfim, os monstros não chegam perto dali. A maioria.
— Como sabia que isso estava aqui? — perguntou Annabeth.
O sorriso de Bob desapareceu. Seu rosto ficou sem expressão.
— Não lembro.
— Tudo bem — apressou-se em dizer Percy.
Annabeth ficou furiosa consigo mesma. Antes de Bob virar Bob, ele era Jápeto, o titã. Como todos os seus irmãos, tinha sido prisioneiro no Tártaro por eras. É claro que conhecia bem o lugar. Mas se ele se recordava desse santuário, podia começar a lembrar de outros detalhes de sua velha prisão e de sua velha vida. Isso não seria nada bom.
Penetraram na cratera e entraram o círculo de colunas. Annabeth desabou em uma placa rachada de mármore, exausta demais para dar um passo que fosse. Percy ficou de pé ao seu lado, em uma postura protetora, examinando os arredores. A enorme tempestade negra agora estava a menos de trinta metros, ocultando tudo o que havia adiante. A borda da cratera impedia a visão da terra estéril por onde tinham vindo. Ficariam bem escondidos ali, mas, caso algum monstro se deparasse com eles, seriam pegos de surpresa.
— Você disse que havia alguém atrás da gente — lembrou Annabeth. — Quem?
Bob limpava a base do altar com sua vassoura, agachando-se de vez em quando para examinar o chão, como se estivesse à procura de algo.
— É, vocês estão sendo seguidos. Eles sabem que vocês estão aqui. Gigantes e titãs. Os derrotados. Eles sabem.
Os derrotados...
Annabeth tentou controlar o medo. Quantos titãs e gigantes ela e Percy tinham enfrentado ao longo dos anos? Cada um dos inimigos parecera um desafio impossível. Se todos estivessem ali embaixo no Tártaro, caçando Percy e Annabeth...
— Então por que estamos parando? Devíamos seguir em frente.
— Daqui a pouco — disse Bob. — Mortais precisam de descanso. Aqui é um bom lugar. É o melhor lugar... por perto. Vou proteger vocês.
Annabeth olhou para Percy transmitindo silenciosamente a seguinte mensagem: Ah, não. Andar por aí com um titã já era ruim o bastante. Dormir sob a guarda do titã... não era preciso ser filha de Atena para saber que aquilo era maluquice.
— Por enquanto você dorme — disse Percy — eu e Bob ficamos de vigia.
Bob concordou.
— Isso, boa. Quando você acordar, a comida deve ter chegado!
O estômago de Annabeth roncou à menção de comida. Não imaginava como Bob faria surgir alimento no meio do Tártaro. Talvez também fosse cozinheiro além de zelador. Não queria dormir, mas foi traída por seu corpo. Suas pálpebras viraram chumbo.
— Percy, me acorde para o segundo turno. Não dê uma de herói.
Ele deu aquele sorriso sarcástico que ela aprendera a amar.
— Quem, eu?
Ele a beijou com lábios febris e ressecados.
— Durma.
Annabeth se sentiu como se estivesse de volta ao chalé de Hipnos, no Acampamento Meio-Sangue, caindo de sono. Encolheu-se no chão duro e fechou os olhos.

Capítulo XXII - Annabeth

MAIS TARDE, ELA TOMOU UMA decisão. Nunca, jamais dormir no Tártaro.
Os sonhos dos semideuses eram sempre ruins. Mesmo na segurança de seu beliche no acampamento, tinha pesadelos horrorosos. No Tártaro, eles pareciam mil vezes mais reais.
Primeiro, era novamente uma garotinha que não conseguia subir a Colina Meio-Sangue. Luke Castellan segurava sua mão, ajudando-a. Grover Underwood, seu guia sátiro, esperava inquieto no topo, gritando: “Corram! Corram!”
Thalia Grace ficara um pouco para trás, contendo um exército de cães infernais com seu escudo que invocava o terror, Aegis. Do alto do morro, Annabeth podia ver o acampamento no vale – as luzes cálidas dos chalés, a possibilidade de refúgio. Tropeçou e torceu o tornozelo, e Luke a carregou nos braços.
Quando olharam para trás, os monstros estavam a apenas alguns metros de distância. Havia dezenas deles cercando Thalia.
— Podem ir! — gritou ela. — Vou segurá-los.
Ela brandiu sua lança e raios bifurcados varreram as fileiras de monstros; porém, à medida que os cães infernais morriam, outros tomavam seus lugares.
— Corram! — gritou Grover.
Ele os conduziu até o acampamento. Luke o seguiu, enquanto Annabeth chorava, debatendo-se em seus braços e gritando que não podiam deixar Thalia sozinha. Mas era tarde demais.
A cena mudou.
Annabeth, mais velha, subia até o topo da Colina Meio-Sangue. No local da batalha final de Thalia agora erguia-se um pinheiro alto. O céu estava tomado por uma forte tempestade. Os trovões faziam o vale tremer. Um raio caiu na árvore, abrindo uma fenda fumegante que ia até as raízes. No pé da colina, Reyna, pretora de Nova Roma, estava parada na escuridão. Sua capa era da cor de sangue recém-derramado. Sua armadura dourada reluzia. A jovem olhava para cima, com expressão altiva e distante, e suas palavras ecoavam diretamente nos pensamentos de Annabeth.
Você agiu bem, disse Reyna, mas a voz era de Atena. O resto de minha jornada deve ser nas asas de Roma.
Os olhos escuros da pretora ficaram cinzentos como as nuvens da tempestade.
Preciso ficar aqui, disse Reyna. Os romanos devem me trazer.
A colina estremeceu. O chão se moveu em ondas; a grama se transformou nas dobras de seda do vestido de uma deusa enorme. Gaia ergueu-se diante do Acampamento Meio-Sangue.
Seu rosto adormecido era do tamanho de uma montanha. Cães infernais chegavam em bandos pelas colinas. Gigantes de seis braços nascidos da terra e ciclopes selvagens atacavam da praia. Destruíram o refeitório e incendiaram os chalés e a Casa Grande.
Depressa, disse a voz de Atena. A mensagem precisa ser enviada.
O chão se rompeu aos pés de Annabeth e ela caiu na escuridão.
Seus olhos se abriram de repente. Ela gritou e agarrou os braços de Percy. Ainda estava no Tártaro, no Santuário de Hermes.
— Está tudo bem — disse Percy, tranquilizando-a — pesadelos?
Seu corpo formigava de medo.
— Já é... é meu turno de vigia?
— Não, não. Estamos bem. Pode dormir.
— Percy!
— Ei, está tudo bem. Além disso, estava empolgado demais para dormir. Veja.
Bob, o titã, estava sentado de pernas cruzadas ao lado do altar, devorando alegremente uma fatia de pizza.
Annabeth esfregou os olhos, achando que ainda estava sonhando.
— Isso é... pepperoni?
— Oferendas queimadas — explicou Percy. — Sacrifícios do mundo mortal para Hermes, acho. Surgiram em uma nuvem de fumaça. Temos meio cachorro-quente, algumas uvas, um prato de rosbife e um saquinho de M&MS de amendoim.
— M&MS para Bob! — disse o titã, contente. — Hã, tudo bem?
Annabeth não protestou. Percy levou até ela a travessa de rosbife, e ela os devorou com a voracidade de um lobo. Nunca comera algo tão bom. A carne ainda estava quente, com uma crosta doce e apimentada exatamente como a do churrasco do Acampamento Meio-Sangue.
— Eu sei — disse Percy, lendo sua expressão — acho que veio mesmo do Acampamento Meio-Sangue.
A ideia deixou Annabeth morta de saudades de casa. Em todas as refeições, os membros do acampamento queimavam parte da comida em honra a seus pais divinos. A fumaça supostamente agradava aos deuses, mas Annabeth nunca tinha pensado para onde aquela comida ia depois de queimada. Talvez as oferendas reaparecessem nos altares dos deuses no Olimpo... ou mesmo ali, no meio do Tártaro.
— M&MS de amendoim — disse Annabeth. — Connor Stoll sempre queimava um pacote para o pai no jantar.
Lembrou-se de quando se sentava no refeitório e observava o sol se pôr no estreito de Long Island. Aquele foi o lugar em que ela e Percy se beijaram de verdade pela primeira vez. Seus olhos ficaram marejados.
Percy pôs a mão em seu ombro.
— Ei, isso é bom. Comida de verdade, de casa, certo?
Ela assentiu. Terminaram de comer em silêncio.
Bob engoliu seus últimos M&MS.
— A gente tem que ir agora. Eles vão chegar em alguns minutos.
— Alguns minutos?
Annabeth ia tentar sacar sua faca quando lembrou que não estava mais com ela.
— É... bem, eu acho que são alguns minutos... — Bob coçou os cabelos prateados. — O tempo é uma coisa meio complicada no Tártaro. Não é igual.
Percy subiu com cautela até a borda da cratera e olhou na direção de onde tinham vindo.
— Não estou vendo nada, mas isso não quer dizer muito. Bob, de quais gigantes estamos falando? Quais titãs?
Bob resmungou.
— Não sei os nomes. Devem ser seis, talvez sete. Posso senti-los.
— Seis ou sete? — Annabeth achou que ia pôr a comida toda para fora. — E eles podem sentir você?
— Não sei — Bob sorriu — Bob é diferente! Mas eles com certeza podem farejar semideuses. Vocês dois têm um cheiro muito forte! Bom e forte. Como... humm. Como pão com manteiga derretida.
— Pão com manteiga. Nossa, que ótimo — disse Annabeth.
Percy voltou para perto do altar.
— É possível matar um gigante no Tártaro? Quer dizer, já que não temos um deus para nos ajudar?
Olhou para Annabeth como se ela soubesse a resposta.
— Percy, não sei. Viajar pelo Tártaro, lutar contra os monstros aqui... é a primeira vez que alguém faz isso. Será que Bob poderia nos ajudar a matar um gigante? Será que um titã conta como deus? Simplesmente não sei.
— É... — disse Percy. — O.k.
Annabeth podia ver a preocupação nos olhos dele. Por anos Percy contara com ela para encontrar respostas. Agora, quando ele mais precisava, Annabeth não conseguia ajudá-lo. Odiava estar tão perdida, mas nada do que aprendera no Acampamento Meio-Sangue a havia preparado para o Tártaro. Só tinha certeza de uma coisa: precisavam seguir em frente. Não podiam ser pegos por seis ou sete imortais hostis.
Ela se levantou, ainda desorientada por conta dos pesadelos. Bob começou a arrumar tudo, juntou o lixo em uma pequena pilha e borrifou o líquido da garrafa de seu cinto no altar, limpando-o com um pano.
— Vamos para onde, agora? — perguntou Annabeth.
Percy apontou para a muralha de trevas e tempestade.
— Bob diz que é para lá. Aparentemente, as Portas da Morte...
— Você contou a ele? — exclamou Annabeth. Não teve a intenção de ser dura, mas Percy estremeceu.
— Enquanto você estava dormindo — admitiu Percy. — Annabeth, Bob pode nos ajudar. Precisamos de um guia.
— Bob ajuda! — concordou o titã. — Vamos para as Terras Sombrias. As Portas da Morte... Humm, ir andando direto até elas seria ruim. Lá há muitos monstros. Nem Bob pode varrer tantos assim. Eles matariam Percy e Annabeth em dois segundos — o titã franziu a testa — acho que são segundos, o tempo é complicado no Tártaro.
— Está bem — resmungou Annabeth. — Mas tem outro jeito?
— Escondidos — disse Bob. — A Névoa da Morte pode ocultar vocês.
— Ah... — Annabeth de repente se sentiu muito pequena à sombra do titã. — Hã... O que é essa Névoa da Morte?
— Ela é perigosa — advertiu Bob — mas se a senhora lhes der a Névoa da Morte, talvez vocês consigam se esconder. Se pudermos evitar a Noite. A senhora é muito ligada à Noite. Isso não é bom.
— A Senhora — repetiu Percy.
— É. — Bob apontou para a escuridão absoluta à frente deles. — É melhor irmos.
Percy olhou para Annabeth, obviamente em busca de alguma orientação, mas ela não tinha nada a oferecer. Estava pensando em seu pesadelo, na árvore de Thalia rachada por um raio, em Gaia se erguendo na encosta e lançando seus monstros contra o Acampamento Meio-Sangue.
— Então está decidido — disse Percy — acho que vamos ver uma senhora para falar sobre uma Névoa da Morte.
— Esperem — disse Annabeth.
Sua mente passou por um turbilhão. Ela pensou no sonho com Luke e Thalia. Lembrou-se das histórias que Luke contara sobre o pai dele, Hermes, o deus dos viajantes, guia dos espíritos dos mortos, deus da comunicação.
Ficou algum tempo olhando para o altar negro.
— Annabeth? — Percy parecia preocupado.
Ela caminhou até a pilha de lixo e pegou um guardanapo razoavelmente limpo. Lembrou-se da visão de Reyna parada sob os restos fumegantes do pinheiro de Thalia, falando com a voz de Atena.
Preciso ficar aqui. Os romanos devem me trazer. Depressa. A mensagem deve ser enviada.
— Bob — disse ela. — As oferendas queimadas no mundo mortal aparecem neste altar, certo?
Bob, aparentando desconforto, franziu a testa, como se fosse um aluno que não se preparou para um teste surpresa.
— Sim?
— E o que acontece se eu queimar algo aqui no altar?
— Hã...
— Tudo bem — disse Annabeth. — Você não sabe. Ninguém sabe porque isso nunca foi feito.
Havia uma chance, pensou ela, uma ínfima chance de que uma oferenda queimada naquele altar aparecesse no Acampamento Meio-Sangue.
Não dava para ter certeza, mas se funcionasse...
— Annabeth? — Percy tornou a dizer. — Você está planejando alguma coisa. Está com aquela cara de estou planejando alguma coisa.
— Não tenho uma cara de estou planejando alguma coisa.
— Tem, tem sim. Você franze a testa e aperta os lábios, e...
— Tem uma caneta? — perguntou ela.
— Está brincando, certo? — Ele sacou a Contracorrente.
— É, mas você consegue usá-la para escrever?
— Eu... eu não sei — admitiu ele. — Nunca tentei.
Ele destampou a caneta. Como sempre, ela se transformou em uma grande espada.
Annabeth o havia visto fazer aquilo centenas de vezes. Percy costumava simplesmente descartar a tampa quando ia lutar. Ela sempre reaparecia mais tarde em seu bolso. E quando a encostava na ponta da espada, a lâmina voltava à forma de uma caneta esferográfica.
— E se você colocar a tampa na outra ponta da espada? — perguntou Annabeth. — Como faria se fosse realmente escrever alguma coisa.
— Hã... — Percy pareceu ter ficado em dúvida, mas pôs a tampa no cabo da espada.
Contracorrente se transformou de novo em uma caneta esferográfica, e agora a ponta de escrever estava exposta.
— Posso? — Annabeth tirou-a da mão dele.
Então apoiou o guardanapo no altar e começou a escrever. A tinta da Contracorrente reluzia com cor de bronze celestial.
— O que está fazendo? — perguntou Percy.
— Enviando uma mensagem. Só espero que Rachel a receba.
— Rachel? Está falando da nossa Rachel? A Rachel do Oráculo de Delfos?
— Ela mesma — confirmou, contendo um sorriso.
Sempre que Annabeth mencionava o nome de Rachel, Percy ficava nervoso. Houve uma época em que Rachel estivera a fim de Percy. Mas já fazia muito tempo. As duas garotas tinham se tornado amigas. Annabeth, porém, não se importava em deixar Percy um pouco desconfortável. É sempre bom manter o namorado esperto.
Annabeth terminou o bilhete e dobrou o guardanapo. Na parte externa, escreveu:

Connor,
Entregue isto a Rachel. Não é uma brincadeira. Não seja idiota.
Beijos,
Annabeth

Respirou fundo. Estava pedindo a Rachel Dare que fizesse algo absurdamente perigoso, mas era a única maneira que conseguia imaginar de se comunicar com os romanos, a única forma de evitar o derramamento de sangue.
— Agora só preciso queimar isso. Alguém tem fósforo?
Do cabo de vassoura de Bob surgiu a ponta de uma lança. Ela soltou faíscas ao bater no altar e irrompeu em chamas prateadas.
— Ah, obrigada.
Annabeth pôs fogo no guardanapo e o deixou no altar. Ela o observou virar cinzas e se perguntou se estaria louca. Será que a fumaça conseguiria sair do Tártaro?
— Temos que ir agora — aconselhou Bob — temos mesmo que ir. Antes que matem a gente.
Annabeth encarou a parede de trevas à frente deles. Em algum lugar lá atrás havia uma senhora que fornecia uma Névoa da Morte que talvez conseguisse ocultá-los dos monstros, um plano concebido por um titã, um de seus piores inimigos. Outra dose de bizarrice para fundir seu cérebro de vez.
— Tudo bem — disse ela. — Estou pronta.

Capítulo XXIII - Annabeth

ANNABETH LITERALMENTE tropeçou no segundo titã.
Depois de entrarem na tempestade, avançaram com dificuldade durante o que pareceram horas, contando com a claridade da lâmina de bronze celestial de Percy e com Bob, que brilhava levemente no escuro, como uma espécie de anjo zelador esquisito.
Annabeth só conseguia ver pouco mais de um metro a frente. É estranho, mas as Terras Sombrias a faziam lembrar de São Francisco, onde o pai dela morava, quando as tardes de verão tinham uma névoa úmida e fria que engolia Pacific Heights. Só que ali no Tártaro a névoa era feita de nanquim.
Rochas gigantescas surgiam do nada. Poços apareciam de repente diante de seus pés, e por pouco Annabeth não caiu. Rugidos monstruosos ecoavam nas trevas, mas ela não sabia de onde vinham. Só o que podia dizer com certeza era que o terreno continuava em declive.
Para baixo. Essa parecia ser a única direção no Tártaro. Se Annabeth recuasse um passo sequer, sentia-se cansada e pesada, como se a gravidade aumentasse para desencorajá-la.
Supondo que todo aquele lugar era o corpo de Tártaro, Annabeth tinha a péssima sensação de que estavam descendo direto pela garganta.
Estava tão distraída com essa preocupação que não percebeu a saliência de rocha até ser tarde demais.
— Ei! — gritou Percy.
Ele tentou agarrar seu braço, mas ela já estava caindo.
Felizmente, o buraco era raso. A maior parte dele estava ocupada por uma bolha de monstro. Aterrissou em uma superfície quente e macia e estava se sentindo com sorte. Até que abriu os olhos e se viu encarando, através de uma membrana dourada e reluzente, outro rosto, muito maior.
Ela gritou, perdeu o equilíbrio e caiu ao lado da depressão. Seu coração quase saiu pela boca.
Percy a ajudou a se levantar.
— Você está bem?
Não se julgava em condições de responder. Se abrisse a boca, podia gritar de novo, o que não seria uma atitude digna. Ela era filha de Atena, não uma personagem histérica de filme de terror.
Mas, deuses do Olimpo... Encolhido dentro da membrana da bolha diante dela havia um titã completamente formado, com armadura dourada e pele cor de bronze polido. Estava de olhos fechados, mas sua expressão era tão furiosa que ele parecia prestes a soltar um apavorante grito de guerra. Mesmo através da bolha, Annabeth podia sentir o calor que irradiava de seu corpo.
— Hiperíon — disse Percy. — Odeio esse cara.
De repente, um antigo ferimento no ombro de Annabeth começou a latejar. Durante a Batalha de Manhattan, Percy tinha enfrentado aquele titã no reservatório, água contra fogo. Foi a primeira vez que Percy invocou um furacão, algo que Annabeth jamais esqueceria.
— Achei que Grover tinha transformado esse sujeito em uma árvore.
— Pois é — concordou Percy. — Talvez a árvore tenha morrido e ele acabou aqui outra vez.
Annabeth se lembrava das explosões causticantes provocadas por Hiperíon e de quantos sátiros e ninfas ele matara antes que Percy e Grover conseguissem detê-lo. Estava prestes a sugerir que estourassem a bolha de Hiperíon antes que ele despertasse. O titã parecia pronto para se libertar a qualquer momento e começar a carbonizar tudo em seu caminho.
Então ela olhou para Bob. O titã prateado observava Hiperíon com uma expressão de concentração, talvez identificando-se com ele. Os dois eram muito parecidos.
Annabeth conteve um palavrão. É claro que eles se pareciam. Aquele era seu irmão.
Hiperíon era o titã Senhor do Leste. Jápeto, Bob, era o Senhor do Oeste. Se substituíssem o uniforme e a vassoura de zelador por uma armadura, cortassem seus cabelos e trocassem o visual prata pelo dourado, seria praticamente impossível distinguir os dois.
— Bob — chamou ela — temos que ir.
— Ouro, não prata — murmurou Bob — mas ele parece comigo.
— Bob — chamou Percy — ei, parceiro, aqui.
O titã se virou, relutante.
— Sou seu amigo? — perguntou Percy.
— É — Bob pareceu perigosamente confuso — somos amigos.
— Você sabe que alguns monstros são bons. E outros são maus.
— Humm. Tipo... aqueles lindos espíritos de mulheres que servem Perséfone são bons. E zumbis que explodem são maus.
— Isso — disse Percy — e alguns mortais são bons, e outros, maus. Com os titãs também é assim.
— Titãs...
Bob, imenso, estava parado diante deles, brilhando. Annabeth tinha certeza de que seu namorado havia acabado de cometer um grande erro.
— É isso o que você é — disse calmamente Percy — bob, o titã. Você é bom. É incrível, na verdade. Mas alguns titãs não são assim. Esse cara aí, Hiperíon, é totalmente do mal. Ele tentou me matar... tentou matar um monte de gente.
Bob piscou os olhos prateados.
— Mas ele parece... Seu rosto é tão...
— Vocês se parecem — concordou Percy. — Ele também é um titã. Mas não é bom como você.
— Bob é bom — os dedos dele apertaram o cabo da vassoura — é. Sempre existe pelo menos um que é bom... Monstros, titãs, gigantes.
— Hã... — Percy fez uma careta — bem, não tenho tanta certeza sobre gigantes.
— Ah, sim — Bob balançava a cabeça gravemente.
Annabeth sentia que já tinham ficado tempo demais naquele lugar. Seus perseguidores deviam estar se aproximando.
— Precisamos ir — insistiu ela — o que fazemos em relação a...?
— Bob — disse Percy — você decide. Hiperíon é da sua espécie. Nós podemos deixá-lo em paz, mas se ele despertar...
A vassoura-lança de Bob passou em um movimento rápido. Se o titã quisesse atingir Annabeth ou Percy, eles teriam sido cortados ao meio. Em vez disso, Bob furou a bolha, que explodiu em um gêiser de lama quente e dourada.
Annabeth limpou a gosma de titã dos olhos. No lugar onde Hiperíon estivera não havia mais nada, apenas uma cratera fumegante.
— Hiperíon é um titã mau — anunciou Bob, com expressão séria — agora não pode mais machucar meus amigos. Ele vai ter que se refazer em outro lugar do Tártaro. Tomara que demore bastante.
Os olhos do titã pareciam brilhar mais que o normal, como se ele estivesse prestes a chorar mercúrio.
— Obrigado, Bob — disse Percy.
Como ele conseguia se manter tão calmo? O modo como conversara com Bob deixou Annabeth pasma... e talvez um pouco desconfortável. Se Percy falara sério sobre deixarem a decisão com Bob, o fato de ele confiar tanto no titã não a agradava. E se manipulara Bob para fazer a escolha que eles queriam... Bem, ela ficaria surpresa por ele agir de modo tão calculista.
Os olhares dos dois se cruzaram, mas ela não conseguiu ler sua expressão. O que também a incomodou.
— É melhor irmos andando — sugeriu ele.
Percy e ela seguiram Bob, e os respingos da explosão da bolha de Hiperíon brilhavam em seu uniforme de zelador.

Capítulo XXIV - Annabeth

DEPOIS DE ALGUM TEMPO, ANNABETH estava com a impressão de que seus pés tinham virado purê de titã. Continuava a seguir Bob, ouvindo o ruído monótono do líquido dentro de sua garrafa de limpeza balançar.
Fique alerta, disse para si mesma, mas era difícil. Sua mente estava tão dormente quanto as pernas. De vez em quando, Percy segurava sua mão ou fazia algum comentário encorajador, mas dava para perceber que a paisagem sombria também o estava afetando. Seus olhos pareciam mais apagados, como se seu ânimo aos poucos estivesse se extinguindo. Ele se jogou no Tártaro para estar com você, disse uma voz na cabeça dela. Se ele morrer, vai ser sua culpa.
— Pare com isso — disse em voz alta.
Percy franziu a testa.
— O quê?
— Não, você não — ela tentou dar um sorriso reconfortante, mas falhou — preciso parar de falar comigo mesma. Este lugar... está mexendo com a minha cabeça. Me faz ter pensamentos sombrios.
As linhas de preocupação em torno dos olhos verde-mar de Percy se acentuaram.
— Ei, Bob, para onde exatamente estamos indo?
— Ver a Senhora — respondeu o titã. — Névoa da Morte.
Annabeth tentou conter a irritação.
— Mas o que isso significa? Quem é essa Senhora?
— Dizer o nome dela? — Bob olhou por cima do ombro. — Não é uma boa ideia.
Annabeth deu um suspiro. O titã tinha razão. Nomes tinham poder, e dizê-los ali no Tártaro era provavelmente muito perigoso.
— Sabe pelo menos dizer se estamos muito longe? — perguntou ela.
— Não sei — admitiu Bob — só posso sentir. Vamos esperar a escuridão ficar mais escura, aí fazemos um desvio pelo lado.
— Pelo lado — murmurou Annabeth — é claro.
Estava tentada a pedir para descansarem, mas não queria parar. Não ali naquele lugar escuro e frio. A névoa negra penetrava em seus ossos, transformando-os em isopor úmido. Ela se perguntou se Rachel Dare receberia sua mensagem. Se Rachel pudesse de algum modo levar sua proposta para Reyna sem ser morta...
Uma esperança ridícula, disse a voz em sua cabeça. Você só pôs Rachel em perigo. Mesmo que ela encontre os romanos, por que Reyna confiaria em você depois de tudo o que aconteceu?
Annabeth teve vontade de responder à voz aos gritos, mas se controlou. Mesmo que estivesse enlouquecendo, não queria parecer que estava enlouquecendo.
Precisava desesperadamente de algo para animá-la. Um gole de água de verdade. Um momento à luz do sol. Uma cama quente. Uma palavra doce de sua mãe.
De repente, Bob parou e ergueu a mão: Esperem.
— O que foi? — sussurrou Percy.
— Shhh — alertou Bob — ali na frente. Tem algo se movendo.
Annabeth apurou os ouvidos. De algum lugar na neblina vinha um ronco contínuo, como o giro lento do motor de um grande trator. Ela podia sentir as vibrações em seus sapatos.
— Vamos cercá-lo — murmurou Bob — cada um de vocês vá por um lado.
Pela milionésima vez, Annabeth desejou ter sua faca. Pegou um pedaço de obsidiana negra afiada e seguiu pela esquerda. Percy foi pela direita, com a espada na mão.
Bob foi pelo centro com a ponta de sua lança brilhando em meio ao nevoeiro. O ronco ficou mais alto e começou a sacudir o cascalho sob os pés de Annabeth. O barulho parecia vir de um ponto diretamente à frente deles.
— Prontos? — murmurou Bob.
Annabeth se encolheu, se preparando para saltar.
— No três?
— Um — murmurou Percy. — Dois...
Uma figura surgiu na névoa. Bob ergueu a lança.
— Esperem! — gritou Annabeth.
Bob se deteve bem a tempo. A ponta de sua lança parou a poucos centímetros da cabeça de um pequeno filhote de gato de pelagem bege, laranja e preta.
— Rrrrrriauuuu? — fez o filhote, obviamente nada impressionado com o plano de ataque deles.
O animalzinho esfregou a cabeça no pé de Bob e ronronou alto.
Parecia impossível, mas o ronco grave e vibrante vinha do filhote. Quando ronronava, o chão tremia e os seixos dançavam. O gatinho fixou seus olhos amarelos como lâmpadas em uma rocha bem entre os pés de Annabeth e saltou até lá.
O gato podia ser um demônio ou um horrível monstro do Mundo Inferior disfarçado. Mas Annabeth não conseguiu resistir. Ela o pegou e aninhou no colo. O bichinho estava muito magro, mas, fora isso, parecia perfeitamente normal.
— Como ele...? — Ela nem conseguia formular a pergunta direito. — O que um gatinho desses está fazendo...?
O gato foi ficando impaciente e se desvencilhou de seus braços. Caiu no chão com um baque surdo, foi até Bob e começou a ronronar enquanto se esfregava nas botas do titã.
Percy riu.
— Alguém gostou de você, Bob.
— Deve ser um monstro bom. — Bob ergueu os olhos, preocupado. — Não é?
Annabeth sentiu um nó na garganta. Ao ver o titã enorme e aquele gatinho minúsculo lado a lado, de repente, sentiu-se insignificante em comparação à vastidão do Tártaro. Aquele lugar não tinha respeito por nada, bom ou mau, pequeno ou grande, inteligente ou não. O Tártaro engolia titãs, semideuses e gatinhos indiscriminadamente.
Bob se ajoelhou e pegou o filhote. Ele cabia perfeitamente na palma de sua mão, mas queria explorar. Escalou o braço do titã, aninhou-se em seu ombro, fechou os olhos e começou a ronronar como um trator. De repente, seu pelo brilhou. Com um clarão repentino, o gatinho se transformou em um esqueleto fantasmagórico, como se estivesse sendo visto por uma máquina de raios-X. Depois virou um gatinho normal outra vez.
Annabeth piscou.
— Vocês viram...?
— Vi — Percy franziu a testa — ah, cara... Eu conheço esse gatinho. É um daqueles do Smithsonian.
Annabeth tentou entender do que Percy estava falando. Ela nunca tinha ido ao Smithsonian com ele... Então se lembrou de quando tinha sido capturada pelo titã Atlas vários anos antes. Percy e Thalia lideraram uma expedição para resgatá-la. Pelo caminho, viram Atlas conjurar esqueletos guerreiros de dentes de dragão no Museu Smithsonian. Segundo Percy, a primeira tentativa do titã não deu certo. Ele plantou por engano dentes de tigres-dentes-de-sabre, invocando um bando de gatinhos esqueletos.
— Esse é um deles? — perguntou Annabeth. — Como chegou aqui?
Percy estendeu as mãos sem saber o que dizer.
— Atlas disse a seus servos que se livrassem dos filhotes. Talvez tenham destruído os gatos e eles renasceram no Tártaro. Não sei.
— É bonitinho — disse Bob enquanto o gatinho cheirava sua orelha.
— Mas não será perigoso? — perguntou Annabeth.
O titã coçou o pescoço do bichinho. Annabeth não sabia se era uma boa ideia sair por aí com um gato criado a partir de um dente pré-histórico, mas isso agora obviamente não importava. O titã e o gato tinham ficado amigos.
— Vou chamá-lo de Bob Pequeno — disse Bob. — Ele é um monstro legal.
Fim de papo. O titã pegou sua lança, e eles continuaram a caminhar para o interior da escuridão.

* * *

Annabeth andava quase em transe, tentando não pensar em pizza. Para se manter distraída, observava Bob Pequeno, o gatinho, que andava e ronronava nos ombros de Bob, transformando-se de vez em quando em um esqueleto brilhante de gatinho e em seguida voltando a ser a bola de pelo tricolor.
— Aqui — anunciou Bob.
Ele parou tão de repente que Annabeth quase esbarrou em suas costas.
Bob olhou para a esquerda, como se estivesse mergulhado em pensamentos.
— É aqui? — perguntou Annabeth. — Onde nós desviamos?
— É — concordou Bob. — Mais escuro, então desviamos para o lado.
Annabeth não sabia dizer se estava realmente mais escuro, mas o ar parecia mais frio e denso, como se tivessem entrado em um microclima diferente. Mais uma vez se lembrou de São Francisco, onde era possível ir de um bairro ao outro e sentir a temperatura cair dez graus.
Perguntou-se se os titãs teriam construído seu palácio no Monte Tamalpais porque a região da Baía de São Francisco os lembrava do Tártaro.
Que pensamento deprimente. Só titãs veriam um lugar tão bonito como um potencial posto avançado do Mundo Inferior, um lar infernal longe de casa.
Bob seguiu para a esquerda. Eles foram atrás. O ar definitivamente ficou mais frio. Annabeth se encostou em Percy para se aquecer. O namorado a envolveu com um braço. Era uma sensação boa estar perto dele, mas ela não conseguia relaxar.
Entraram em uma espécie de floresta. Árvores negras muito altas se erguiam na escuridão, perfeitamente redondas e sem galhos, como monstruosos folículos capilares. O chão era liso e claro.Com a nossa sorte, pensou Annabeth, estamos andando pelo sovaco do Tártaro.
De repente, ela ficou completamente alerta, como se alguém houvesse soltado o elástico do estilingue em sua nuca. Encostou a mão no tronco da árvore mais próxima.
— O que é isso? — perguntou Percy, erguendo a espada.
Bob se virou e olhou para trás, confuso.
— Vamos parar?
Annabeth ergueu a mão para pedir silêncio. Não sabia o que a alertara. Nada parecia diferente. Então se deu conta de que o tronco estava oscilando. Perguntou-se por um instante se era o ronronar do gato. Mas Bob Pequeno continuava adormecido no ombro do Bob Grande.
A alguns metros de distância, outra árvore estremeceu.
— Há algo se movendo acima da gente — murmurou Annabeth. — Vamos ficar juntos.
Bob e Percy se aproximaram, e os três ficaram de costas uns para os outros.
Annabeth forçou a vista para tentar ver acima deles na escuridão, mas nada se moveu. Tinha quase chegado à conclusão de que estava paranoica quando o primeiro monstro caiu no chão a menos de dois metros de distância.
A primeira coisa que lhe ocorreu foi: as Fúrias.
A aparência era praticamente a mesma: uma velha enrugada com asas de morcego, esporões de metal e olhos vermelhos reluzentes. Usava um vestido de seda preta esfarrapado, e seu rosto estava distorcido e com aparência faminta, como uma avó demoníaca pronta para matar.
Bob grunhiu quando outra caiu diante dele, e em seguida mais uma na frente de Percy. Em pouco tempo estavam cercados por meia dúzia das criaturas, e outras mais sibilavam nas árvores acima.
Então não podiam ser fúrias. Só havia três delas, e aquelas bruxas aladas não tinham chicotes. Isso não tranquilizou Annabeth. Os esporões dos monstros pareciam perigosos o suficiente.
— O que são vocês? — indagou ela.
As arai, sibilou uma voz. As maldições!
Annabeth tentou localizar quem havia falado, mas nenhum dos demônios tinha mexido a boca. Seus olhos pareciam mortos; as expressões, imóveis, como a de um fantoche. A voz simplesmente se propagou no ar como a de um narrador de um filme, como se uma única mente controlasse todas as criaturas.
— O que... o que vocês querem? — perguntou Annabeth, tentando manter um tom confiante.
A voz soltou uma gargalhada maligna. Amaldiçoá-los, é claro! Destruí-los mil vezes em nome da Mãe Noite!
— Só mil vezes? — murmurou Percy. — Ah, ainda bem... achei que estávamos com problemas.
O círculo de mulheres demoníacas se fechou.

Capítulo XXV - Hazel

TUDO CHEIRAVA A VENENO. Dois dias depois de sair de Veneza, Hazel ainda não conseguira deixar de sentir o fedor tóxico de colônia de monstro bovino.
O enjoo marítimo não ajudava. O Argo II navegava pelo Adriático, uma bela imensidão azul brilhante, mas Hazel não conseguia apreciá-la devido ao constante oscilar do navio. No convés, tentava manter os olhos fixos no horizonte, mirando os penhascos brancos que pareciam estar sempre a apenas alguns quilômetros a leste. Que país seria aquele? A Croácia? Não tinha certeza. Hazel só queria voltar a pisar em terra firme.
Mas o que mais lhe provocava náuseas era a doninha.
Na noite anterior, o animal de estimação de Hécate, Gale, aparecera em sua cabine. Hazel acordou de um pesadelo pensando “Que cheiro é esse?” e encontrou o animal peludo em seu peito, observando-a com os olhos negros e redondos.
Nada como acordar gritando, chutar as próprias cobertas e sair pulando pela cabine enquanto uma doninha corre por entre seus pés, chiando e peidando. Os amigos correram até lá para ver se ela estava bem. Foi difícil explicar a presença da doninha. Hazel sabia que Leo estava se esforçando muito para não fazer uma piada.
Pela manhã, quando tudo se acalmou, Hazel decidiu visitar o treinador Hedge, já que ele podia falar com animais.
Ela encontrou a porta de sua cabine entreaberta e ouviu o treinador lá dentro, falando como se estivesse ao telefone, embora não houvesse aparelhos a bordo. Talvez estivesse mandando uma mensagem mágica de Íris. Hazel ouvira dizer que os gregos as usavam bastante.
— Claro, querida — dizia Hedge. — Sim, eu sei, amor. Não, é uma ótima notícia, mas... — Sua voz falhou de emoção.
De repente, Hazel se sentiu horrível por estar espionando. Teria dado meia-volta, mas Gale chiou em seus calcanhares. Hazel bateu à porta do treinador.
Hedge pôs a cabeça para fora, fazendo cara feia como de costume, mas seus olhos estavam vermelhos.
— O que foi? — resmungou.
— Hum... desculpe — disse Hazel. — Está tudo bem?
O treinador deu uma curta risada amarga e abriu a porta.
— Que raio de pergunta é essa?
Não havia mais ninguém na cabine.
— Eu... — Hazel tentou lembrar por que estava lá. — Gostaria de saber se você poderia falar com a minha doninha.
O treinador a olhou com desconfiança. Então baixou a voz:
— Estamos falando em código? Há um intruso a bordo?
— Bem, mais ou menos.
Gale apareceu entre os pés de Hazel e começou a tagarelar.
O treinador pareceu ofendido. Respondeu à doninha e ambos mantiveram o que pareceu ser uma discussão bastante acalorada.
— O que ela falou? — perguntou Hazel.
— Um bocado de grosserias — resmungou o sátiro. — Resumindo: ela está aqui para ver como será.
— Como será o quê?
O treinador Hedge bateu o casco no chão.
— Como vou saber? Ela é uma doninha! Elas nunca dão respostas diretas. Agora, se me dá licença, tenho, hã, coisas...
E fechou a porta na cara dela.

* * *

Após o café da manhã, Hazel ficou parada na amurada de bombordo, tentando acalmar o estômago. Ao lado dela, Gale corria para cima e para baixo da amurada, soltando puns, mas o forte vento do Adriático ajudava a afastar o cheiro.
Hazel se perguntou o que tinha acontecido com o treinador Hedge. Ele devia estar mandando uma mensagem de Íris para alguém, mas se recebera boas notícias, por que parecia tão arrasado? Ela nunca o vira tão abalado. Infelizmente, Hazel duvidava que o treinador pedisse ajuda caso precisasse. Não era exatamente do tipo caloroso e aberto.
A garota olhou para a cordilheira branca ao longe e se perguntou por que Hécate enviara a doninha Gale.
Ela está aqui para ver como será.
Algo estava prestes a acontecer. Hazel passaria por um teste.
Não entendia como poderia aprender magia sem qualquer treinamento. Hécate esperava que ela derrotasse uma feiticeira super poderosa, a senhora do vestido de ouro que Leo vira em seu sonho. Mas como?
Hazel passava todo o seu tempo livre tentando descobrir isso. Olhava para sua espata, tentando fazê-la tomar a forma de uma bengala. Tentava invocar uma nuvem para ocultar a lua cheia. Concentrava-se até seus olhos ficarem vesgos e seus ouvidos estalarem, mas nada acontecia. Não era capaz de manipular a Névoa.
Nas últimas noites, seus sonhos pioraram. Via-se de volta ao Campo de Asfódelos, vagando sem rumo entre fantasmas. Em seguida, estava na caverna de Gaia, no Alasca, onde Hazel e sua mãe morreram com o desabamento do teto, e a voz da deusa da terra uivou de ódio. Via-se na escada do apartamento da mãe em Nova Orleans, cara a cara com o pai. Os dedos frios de Plutão agarravam o seu braço. O tecido de seu terno de lã preta se retorcia de almas aprisionadas. Ele a encarou com olhos escuros e furiosos e disse: Os mortos veem o que acreditam que verão. Os vivos também. Esse é o segredo.
Ele nunca dissera aquilo na vida real. Hazel não tinha ideia do que significava.
Os piores pesadelos pareciam vislumbres do futuro. Hazel se via tropeçando por um túnel escuro enquanto a risada de uma mulher ecoava ao seu redor.
Domine isso se puder, filha de Plutão, provocou a mulher.
E sempre sonhava com as imagens que vira na encruzilhada de Hécate: Leo caindo do céu; Percy e Annabeth deitados e inconscientes, possivelmente mortos, diante de portas de metal negro, e uma figura amortalhada diante deles, o gigante Clítio envolto em escuridão.
Ao seu lado, parada na amurada, Gale, a doninha, chiava, impaciente. Hazel sentiu-se tentada a empurrar aquele bicho estúpido no mar.
Não consigo nem controlar os meus próprios sonhos, quis gritar. Como posso controlar a Névoa?
Sentia-se tão arrasada que não notou a aproximação de Frank até ele estar ao seu lado.
— Está se sentindo melhor?
Frank segurou sua mão, com os dedos cobrindo completamente os dela. Era inacreditável como o namorado crescera. Ele se transformava em tantos animais que Hazel não entendia por que tinha ficado tão surpresa com mais uma transformação... mas de repente Frank crescera até ficar com uma estatura compatível com o próprio peso. Ninguém mais poderia chamá-lo de gordinho ou fofinho. Parecia um jogador de futebol musculoso com um novo centro de gravidade. Os ombros estavam mais largos. Caminhava com mais segurança.
O que Frank fizera naquela ponte em Veneza... Hazel ainda estava pasma. Nenhum deles testemunhara a batalha, mas ninguém duvidava. Frank estava completamente mudado. Até mesmo Leo parara de fazer piadas às suas custas.
— Eu estou... estou bem. — Hazel conseguiu dizer. — E você?
Ele sorriu, enrugando os cantos dos olhos.
— Eu, hã, estou mais alto. Fora isso, tudo bem. Sabe, realmente não mudei por dentro...
Seu tom trazia um pouco de sua antiga insegurança e falta de jeito – era a voz do seu Frank, que sempre tinha medo de ser um desastrado e estragar tudo.
Hazel sentiu-se aliviada. Gostava dessa parte dele. A princípio, sua nova aparência a chocara. Ficou com medo que sua personalidade também tivesse mudado. Agora, Hazel estava começando a relaxar quanto a isso. Apesar de toda a sua força, Frank era o mesmo sujeito adorável de sempre. Ainda era vulnerável. Ainda lhe confiava sua maior fraqueza: o pedaço de madeira mágica que ela carregava no bolso do casaco, junto ao coração.
— Eu sei, e estou feliz com isso — ela apertou a mão dele — não... não é exatamente com você que estou preocupada.
— Como vai Nico? — resmungou Frank.
Hazel estava pensando em si mesma, mas seguiu o olhar de Frank até o topo do mastro, onde Nico estava empoleirado em uma verga.
O garoto dissera que gostava de vigiar porque tinha uma boa visão. Hazel sabia que não era esse o motivo. O topo do mastro era um dos poucos lugares a bordo onde Nico podia ficar sozinho. Os outros lhe ofereceram a cabine de Percy, uma vez que o amigo estava... bem, ausente. Mas Nico se recusou terminantemente. Passava a maior parte do tempo no cordame, onde não precisava conversar com o resto da tripulação.
Desde que fora transformado em um pé de milho em Veneza, tornara-se ainda mais recluso e taciturno.
— Não sei — admitiu Hazel — Nico passou por muita coisa. Foi capturado no Tártaro, aprisionado naquele jarro de bronze, viu a queda de Percy e Annabeth...
— E prometeu nos levar a Épiro — Frank assentiu — tenho a sensação de que ele não gosta de trabalhar em equipe.
Frank se aprumou. Usava uma camiseta bege com a figura de um cavalo e as palavras: PALIO DI SIENA. Ele a comprara havia alguns dias, mas agora estava muito pequena. Quando se espreguiçou, sua barriga apareceu.
Hazel percebeu que estava olhando fixamente. Ela logo desviou o olhar, enrubescida.
— Nico é meu único parente. Não é fácil gostar dele, mas... obrigada por ser gentil com ele.
Frank sorriu.
— Ei, você aguentou minha avó, em Vancouver. Não precisa nem falar em não ser fácil de gostar.
— Eu adorei a sua avó!
Gale, a doninha, correu até eles, peidou e fugiu.
— Eca — Frank balançou a mão para afastar o cheiro — por que esse bicho está aqui, afinal?
Hazel ficou quase feliz por não estarem em terra. Sua agitação era tão grande que com certeza teria ouro e pedras preciosas brotando ao seu redor.
— Hécate enviou Gale para observar.
— Observar o quê?
Hazel tentou tirar forças da presença de Frank, com sua nova aura de solidez e força.
— Não sei — admitiu ela, afinal — algum tipo de teste.

Capítulo XXVI - Hazel

HAZEL E FRANK TROPEÇARAM UM no outro. Ela acidentalmente bateu com o punho da espada no peito e ficou encolhida no convés, gemendo e tossindo com gosto de veneno de catóblepa na boca. Através de uma névoa de dor, ouviu a figura de proa do navio, Festus, o dragão de bronze, ranger em sinal de alarme e cuspir fogo.
Confusa, Hazel se perguntou se haviam atingido um iceberg. Mas como? No mar Adriático, durante o verão?
O navio virou para bombordo produzindo um ruído impressionante, como postes telefônicos partindo-se ao meio.
— AHH! — gritou Leo em algum lugar atrás dela. — Ela está comendo os remos!
Ela quem?, pensou Hazel. Tentou se levantar, mas algo grande e pesado prendia as suas pernas. Percebeu que era Frank, resmungando, enquanto tentava se desvencilhar de uma pilha de cordas.
Estavam todos atrapalhados. Jason saltou sobre os dois, com a espada em punho, e correu em direção à popa. Piper já estava no tombadilho, atirando comida de sua cornucópia e gritando:
— Ei! Ei! Coma isso, sua tartaruga idiota!
Tartaruga?
Frank ajudou Hazel a se levantar.
— Você está bem?
— Estou — mentiu Hazel, apertando a barriga — agora vá!
Frank subiu correndo os degraus, tirando do ombro a mochila, que instantaneamente se transformou em um arco e uma aljava. No momento em que chegou ao timão, já havia disparado uma flecha e preparava a segunda.
Leo lutava freneticamente com os controles do navio.
— Não consigo retrair os remos. Tira esse bicho daí! Tira esse bicho daí!
No topo do mastro, Nico estava em estado de choque.
— Pelo Estige... É enorme! — gritou. — Bombordo! Para bombordo!
O treinador Hedge foi o último a chegar ao convés. Compensou seu atraso com entusiasmo. Subiu os degraus, sacudindo o taco de beisebol, sem hesitação, galopou até a popa e saltou sobre a amurada com um alegre:
— Rá-RÁ!
Hazel cambaleou até o tombadilho para se juntar aos amigos. O barco estremeceu. Mais remos se partiram, e Leo gritou:
— Não, não, não! Maldita filha de uma mãe cascuda!
Hazel chegou à popa e não podia acreditar no que via.
Quando ouviu a palavra tartaruga, pensou em um animal bonitinho do tamanho de uma caixinha de joias, sentado em uma pedra no meio de um lago. Quando ouviutartaruga enorme, sua mente tentou se adaptar: muito bem, talvez fosse como uma daquelas tartarugas de galápagos, que vira quando visitou o zoológico, com cascos grandes o bastante para se montar em cima.
Ela não imaginara uma criatura do tamanho de uma ilha. Quando viu a enorme e escarpada cúpula de quadrados pretos e pardos, a palavra tartaruga simplesmente deixou de fazer sentido.
Seu casco era realmente como uma ilha – colinas de ossos, brilhantes vales perolados, florestas de algas e musgos, rios de água do mar escorrendo pelos sulcos de sua carapaça. No lado boreste do navio, outra parte do monstro emergia como um submarino.
Lares de Roma... seria aquilo a cabeça?
Os olhos dourados eram do tamanho de espelhos d’água; as pupilas, fendas horizontais e escuras. A pele brilhava como camuflagem militar molhada, marrom salpicada de verde e amarelo. A boca vermelha e desdentada poderia ter engolido aAtena Partenos em uma única mordida.
Hazel viu quando a criatura partiu meia dúzia de remos.
— Pare com isso! — gritou Leo.
O treinador Hedge estava em cima da tartaruga, batendo inutilmente com o bastão de beisebol e gritando:
— Tome isso! E mais isso!
Jason voou da popa e caiu sobre a cabeça do animal. Golpeou-o bem entre os olhos com a espada dourada, mas a lâmina escorregou para o lado, como se a pele da tartaruga fosse de aço engraxado. Frank lançou flechas nos olhos do monstro, sem sucesso. As pálpebras internas da tartaruga piscavam com incrível precisão, desviando cada disparo. Piper atirou melões na água, gritando:
— Pegue isso, tartaruga idiota!
Mas o animal parecia focado em devorar o Argo II.
— Como chegou tão perto? — questionou Hazel.
Leo ergueu as mãos em desespero.
— Deve ser o casco. Acho que não é detectável pelo sonar. Maldita tartaruga invisível!
— O navio pode voar? — perguntou Piper.
— Com metade dos remos quebrados? — Leo socou alguns botões e girou a esfera de Arquimedes. — Tenho que tentar uma coisa diferente.
— Ali! — gritou Nico do alto. — Você pode nos levar até aquela restinga?
Hazel olhou para onde ele apontava. A menos de um quilômetro a leste, existia uma longa faixa de terra que corria paralela aos penhascos costeiros. Era difícil ter certeza ao longe, mas a extensão de água entre eles parecia ser de apenas vinte ou trinta metros, possivelmente larga o bastante para o Argo II atravessar, mas definitivamente não era larga o suficiente para uma tartaruga gigante.
— É. Sim — Leo aparentemente compreendeu. Girou a esfera de Arquimedes — Jason, fique longe da cabeça desse bicho! Tive uma ideia!
Jason ainda golpeava o rosto da tartaruga, mas quando ouviu Leo dizer “Tive uma ideia”, fez a única coisa inteligente que conseguiu pensar. Voou para longe dali o mais rápido possível.
— Treinador, hora de partir! — chamou Jason.
— Não, eu resolvo isso! — disse Hedge, mas Jason o agarrou pela cintura e decolou.
Infelizmente, o treinador se debateu tanto que a espada de Jason escorregou e caiu no mar.
— Treinador! — reclamou Jason.
— O quê? — disse Hedge. — Eu a estava dominando!
A tartaruga deu uma cabeçada no casco, quase arremessando toda a tripulação para bombordo. Hazel ouviu um estalo, como se a quilha tivesse se partido.
— Só mais um minuto — disse Leo, com as mãos voando sobre o painel de controle.
— Podemos não estar mais aqui em um minuto!
Frank disparou sua última flecha.
Piper gritou para a tartaruga:
— Vá embora!
Por um momento, realmente funcionou. A tartaruga se afastou do navio e mergulhou a cabeça na água. Mas, então, voltou e bateu com mais força.
Jason e o treinador Hedge aterrissaram no convés.
— Você está bem? — perguntou Piper.
— Tudo bem — murmurou Jason — sem minha espada, mas inteiro.
— Fogo no casco! — gritou Leo, girando o controle do Wii.
Hazel pensou que a popa estava explodindo. Jatos de fogo jorraram atrás deles, atingindo a cabeça da tartaruga. O navio deu uma guinada para a frente, derrubando-a novamente.
Ela se ergueu e viu que o Argo II saltava sobre as ondas a uma velocidade incrível, deixando para trás um rastro de fogo, como um foguete. A tartaruga já estava a uns cem metros, com a cabeça carbonizada e fumegante.
O monstro urrou de frustração e começou a segui-los; suas nadadeiras cortavam a água com tal poder que ela realmente começou a se aproximar. A entrada da restinga ainda estava meio quilômetro mais à frente.
— Alguma coisa para distraí-la — murmurou Leo — não conseguiremos chegar lá a menos que tenhamos alguma coisa para distraí-la.
— Para distraí-la... — repetiu Hazel.
Ela se concentrou e pensou: Arion!
Não sabia se aquilo funcionaria. Mas, imediatamente, avistou algo no horizonte, um borrão de luz e vapor atravessando a água. Em um piscar de olhos, Arion estava no tombadilho.
Deuses do Olimpo, pensou Hazel, como eu amo este cavalo.
Arion bufou como se dissesse: Claro que me ama. Você não é burra.
Hazel montou no cavalo.
— Piper, seu charme pode ser útil.
— Teve uma época em que eu gostava de tartarugas — resmungou Piper, aceitando a mão que lhe era oferecida — agora não!
Hazel esporeou Arion. Ele saltou para fora do barco, atingindo a água a todo galope. A tartaruga nadava com rapidez, mas não era tão rápida quanto Arion. Circulavam sobre a cabeça do monstro, Hazel golpeando com sua espada, Piper gritando orientações aleatórias como:
— Mergulhe! Vire à esquerda! Atrás de você!
A espada não causou dano algum e cada orientação só funcionava por um instante, mas estavam irritando a tartaruga. Arion relinchou com desdém quando a criatura tentou abocanhá-lo, apenas para ficar com a boca cheia de vapor.
Logo, o monstro havia esquecido completamente o Argo II. Hazel continuou golpeando a cabeça. Piper continuou gritando orientações e usando a cornucópia para atirar cocos e frangos assados nos olhos da tartaruga.
Assim que o Argo II adentrou na restinga, Arion interrompeu a perseguição. Aceleraram rumo ao navio, e, pouco depois, estavam de volta ao convés.
O fogo se extinguira, embora os fumegantes escapamentos de bronze ainda se projetassem da popa. O Argo II avançava devagar, impulsionado pelas velas, mas seu plano dera certo. Estavam em segurança naquelas águas, com uma ilha longa e rochosa a boreste e os penhascos brancos do continente a bombordo. A tartaruga parou na entrada da restinga e olhou para eles malignamente, mas não tentou segui-los. Obviamente, seu casco era largo demais.
Hazel desmontou e recebeu um grande abraço de Frank.
— Belo trabalho! — parabenizou ele.
Ela enrubesceu.
— Obrigada.
Piper desmontou ao seu lado.
— Leo, desde quando temos propulsão a jato?
— Ah, sabem... — Leo tentou parecer modesto e falhou. — Foi uma coisinha que bolei em meu tempo livre. Gostaria de ter conseguido mais do que alguns segundos de queima, mas ao menos nos tirou de lá.
— E assou a cabeça da tartaruga — disse Jason, agradecido — o que faremos agora?
— Matem-na! — exigiu o treinador. — Você ainda pergunta? Temos distância suficiente. Temos balistas. Preparem as armas, semideuses!
Jason franziu a testa.
— Treinador, para começo de conversa, você me fez perder a minha espada.
— Ei! Não pedi para ser retirado!
— Em segundo lugar, não acho que as balistas sejam eficazes. Essa carapaça é como a pele do leão da Nemeia. E sua cabeça não é mais macia.
— Então, disparamos goela abaixo — disse o treinador. — Como fizeram com aquele camarão monstruoso no Atlântico. Vamos explodi-la de dentro para fora.
Frank coçou a cabeça.
— Poderia funcionar. Mas, então, teríamos uma carcaça de cinco mil toneladas bloqueando a entrada da restinga. Se não podemos voar com os remos quebrados, como tiraríamos o navio daqui?
— Você aguarda e conserta os remos! — disse o treinador. — Ou simplesmente navega na outra direção, seu marinheiro de água doce.
Frank pareceu confuso.
— O que é um marinheiro de água doce?
— Ei, pessoal! — gritou Nico do alto do mastro. — Quanto a navegar na outra direção, não acho que dê certo.
Ele apontou para além da proa.
A meio quilômetro mais à frente, a longa faixa rochosa se curvava e se encontrava com os penhascos. O canal terminava em um V fechado.
— Não estamos em um estreito — disse Jason. — Estamos em um beco sem saída.
Hazel sentiu frio nos dedos das mãos e dos pés. Na amurada de bombordo, Gale, a doninha, estava sentada sobre as patas traseiras. Olhando para ela, ansiosa.
— É uma armadilha — disse Hazel.
Os outros a encararam.
— Não, está tudo bem — disse Leo — na pior das hipóteses, fazemos os reparos. Pode durar a noite inteira, mas consigo fazer o navio voar de novo.
À entrada do estreito, a tartaruga rugiu. Não parecia interessada em ir embora.
— Bem — Piper deu de ombros — ao menos ela não pode nos pegar. Estamos protegidos.
Aquilo era algo que nenhum semideus deveria dizer. Piper mal terminou de falar quando uma flecha se cravou no mastro principal, a quinze centímetros de seu rosto. A tripulação se dispersou em busca de abrigo, com exceção de Piper, que ficou paralisada, boquiaberta, olhando para a flecha que quase fizera um piercing no seu nariz do modo mais difícil.
— Piper, abaixe! — sibilou Jason.
Mas nenhuma outra flecha foi disparada.
Frank estudou o ângulo do projétil no mastro e apontou para o topo dos penhascos.
— Lá em cima — informou ele. — Um único atirador. Estão vendo?
O sol a impedia de ver claramente, mas Hazel percebeu uma pequena figura na borda do penhasco. Sua armadura de bronze brilhava.
— Ai, caramba! Quem será? — perguntou Leo. — Por que está atirando na gente?
— Pessoal? — A voz de Piper soava trêmula. — Tem um bilhete.
Hazel não tinha percebido, mas havia um pergaminho amarrado à haste da flecha. Não sabia por que, mas aquilo a enfureceu. Foi até lá e retirou o bilhete.
— Hã, Hazel? — disse Leo. — Tem certeza de que é seguro?
Hazel leu o bilhete em voz alta.
— Primeira linha: Parem e entreguem.
— O que isso quer dizer? — reclamou o treinador Hedge. — Estamos parados. Não por querer, mas mesmo assim. Se esse cara está esperando um entregador de pizza, esqueça!
— Tem mais — disse Hazel. — Isto é um assalto. Envie dois dos seus até o topo do penhasco com todos os objetos de valor. Não mais do que dois. Deixem o cavalo mágico. Nada de voar. Sem truques. Apenas subam.
— Subir como? — perguntou Piper.
Nico apontou.
— Por ali.
Havia no penhasco uma escadaria estreita entalhada, que ia até o topo. A tartaruga, o beco sem saída, o penhasco... Hazel tinha a sensação de que aquela não era a primeira vez que o autor da carta emboscara um navio ali.
Pigarreou e continuou a ler em voz alta:
— Refiro-me a todos os seus valores. Caso contrário, minha tartaruga e eu vamos destruí-los. Vocês têm cinco minutos.
— Use as catapultas! — gritou o treinador.
— P.S. — leu Hazel. — Nem pensem em usar suas catapultas.
— Maldição! — exclamou o treinador. — Esse cara é bom.
— O bilhete está assinado? — perguntou Nico.
Hazel balançou a cabeça negativamente. Ouvira uma história no Acampamento Júpiter, sobre um ladrão que trabalhava com uma tartaruga gigante, mas, como sempre, assim que precisava de uma informação, esta ficava irritantemente ocultada em sua memória, fora de seu alcance.
Gale, a doninha, encarou Hazel, esperando para ver o que ela faria.
O teste ainda não acontecera, pensou Hazel. Distrair a tartaruga não fora suficiente. Hazel não provara poder manipular a Névoa... principalmente porque nãoconseguia manipular a Névoa.
Leo estudou o topo do penhasco e murmurou.
— Não é uma boa trajetória. Mesmo que pudesse armar a catapulta antes que o cara fizesse chover flechas, não acho que conseguiria atingi-lo. Está a centenas de metros, quase em linha reta para cima.
— Sim — resmungou Frank. — Meu arco também é inútil. Ele tem uma enorme vantagem estando acima de nós. Não conseguiria atingi-lo.
— E, hum... — Piper cutucou a flecha que estava cravada no mastro. — Tenho a sensação de que é bom de tiro. Não creio que pretendesse me atingir. Mas se quisesse...
Não precisou continuar. Quem quer que fosse o ladrão, podia acertar um alvo a centenas de metros de distância. Poderia matá-los antes que pudessem reagir.
— Eu vou — disse Hazel.
Odiava a ideia, mas tinha certeza de que Hécate planejara aquilo como uma espécie de desafio doentio. Esse seria o teste de Hazel – a sua vez de salvar o navio. Como se precisasse de uma confirmação, Gale correu ao longo da amurada e pulou sobre seu ombro, pronta para pegar uma carona.
Os outros olharam para ela.
Frank agarrou seu arco.
— Hazel...
— Não, prestem atenção — disse ela — esse ladrão quer objetos de valor. Posso ir até lá, invocar ouro, joias, tudo o que ele quiser.
Leo ergueu uma sobrancelha.
— Acha que realmente vai nos deixar ir embora se lhe dermos o que quer?
— Não temos muita escolha — disse Nico. — Entre aquele cara e a tartaruga...
Jason ergueu a mão. Os outros ficaram em silêncio.
— Vou também — disse ele — a carta exige duas pessoas. Levo Hazel até lá e a trago de volta. Além do mais, não gostei dessa escadaria. Se Hazel cair... bem, posso usar os ventos para evitar que cheguemos ao chão do jeito mais doloroso.
Arion relinchou em protesto, como se dissesse: Você vai sem mim? Está brincando, certo?
— É preciso, Arion — disse Hazel — Jason... Sim. Acho que você está certo. É o melhor plano.
— Só gostaria de ter a minha espada — Jason olhou feio para o treinador — está lá, no fundo do mar, e não temos Percy para recuperá-la.
O nome Percy passou por eles como uma nuvem. O clima no convés ficou ainda mais sombrio.
Hazel estendeu um braço. Não pensou. Apenas se concentrou na água e invocou o ouro imperial.
Foi uma ideia idiota. A espada estava muito longe dali, provavelmente a centenas de metros de profundidade. Mas sentiu um puxão rápido em seus dedos, como uma mordida em uma linha de pesca, e a espada de Jason saiu da água e acabou em sua mão.
— Tome — disse ela, entregando-a.
Os olhos de Jason se arregalaram.
— Como...? Estava a quase um quilômetro daqui!
— Tenho praticado — disse ela, embora não fosse verdade.
Esperava não ter acidentalmente amaldiçoado a espada de Jason ao invocá-la, assim como amaldiçoava as joias e os metais preciosos.
De alguma forma, porém, pensou, com armas era diferente. Afinal, Hazel retirara um bocado de equipamento de ouro imperial da baía da geleira e o entregara para a Quinta Coorte. E fora um sucesso.
Hazel decidiu não se preocupar com isso. Estava com tanta raiva de Hécate e tão cansada de ser manipulada pelos deuses que não deixaria que problemas insignificantes a impedissem de continuar.
— Agora, se não há outras objeções, temos que encontrar com um ladrão.

Capítulo XXVI - Hazel

HAZEL E FRANK TROPEÇARAM UM no outro. Ela acidentalmente bateu com o punho da espada no peito e ficou encolhida no convés, gemendo e tossindo com gosto de veneno de catóblepa na boca. Através de uma névoa de dor, ouviu a figura de proa do navio, Festus, o dragão de bronze, ranger em sinal de alarme e cuspir fogo.
Confusa, Hazel se perguntou se haviam atingido um iceberg. Mas como? No mar Adriático, durante o verão?
O navio virou para bombordo produzindo um ruído impressionante, como postes telefônicos partindo-se ao meio.
— AHH! — gritou Leo em algum lugar atrás dela. — Ela está comendo os remos!
Ela quem?, pensou Hazel. Tentou se levantar, mas algo grande e pesado prendia as suas pernas. Percebeu que era Frank, resmungando, enquanto tentava se desvencilhar de uma pilha de cordas.
Estavam todos atrapalhados. Jason saltou sobre os dois, com a espada em punho, e correu em direção à popa. Piper já estava no tombadilho, atirando comida de sua cornucópia e gritando:
— Ei! Ei! Coma isso, sua tartaruga idiota!
Tartaruga?
Frank ajudou Hazel a se levantar.
— Você está bem?
— Estou — mentiu Hazel, apertando a barriga — agora vá!
Frank subiu correndo os degraus, tirando do ombro a mochila, que instantaneamente se transformou em um arco e uma aljava. No momento em que chegou ao timão, já havia disparado uma flecha e preparava a segunda.
Leo lutava freneticamente com os controles do navio.
— Não consigo retrair os remos. Tira esse bicho daí! Tira esse bicho daí!
No topo do mastro, Nico estava em estado de choque.
— Pelo Estige... É enorme! — gritou. — Bombordo! Para bombordo!
O treinador Hedge foi o último a chegar ao convés. Compensou seu atraso com entusiasmo. Subiu os degraus, sacudindo o taco de beisebol, sem hesitação, galopou até a popa e saltou sobre a amurada com um alegre:
— Rá-RÁ!
Hazel cambaleou até o tombadilho para se juntar aos amigos. O barco estremeceu. Mais remos se partiram, e Leo gritou:
— Não, não, não! Maldita filha de uma mãe cascuda!
Hazel chegou à popa e não podia acreditar no que via.
Quando ouviu a palavra tartaruga, pensou em um animal bonitinho do tamanho de uma caixinha de joias, sentado em uma pedra no meio de um lago. Quando ouviutartaruga enorme, sua mente tentou se adaptar: muito bem, talvez fosse como uma daquelas tartarugas de galápagos, que vira quando visitou o zoológico, com cascos grandes o bastante para se montar em cima.
Ela não imaginara uma criatura do tamanho de uma ilha. Quando viu a enorme e escarpada cúpula de quadrados pretos e pardos, a palavra tartaruga simplesmente deixou de fazer sentido.
Seu casco era realmente como uma ilha – colinas de ossos, brilhantes vales perolados, florestas de algas e musgos, rios de água do mar escorrendo pelos sulcos de sua carapaça. No lado boreste do navio, outra parte do monstro emergia como um submarino.
Lares de Roma... seria aquilo a cabeça?
Os olhos dourados eram do tamanho de espelhos d’água; as pupilas, fendas horizontais e escuras. A pele brilhava como camuflagem militar molhada, marrom salpicada de verde e amarelo. A boca vermelha e desdentada poderia ter engolido aAtena Partenos em uma única mordida.
Hazel viu quando a criatura partiu meia dúzia de remos.
— Pare com isso! — gritou Leo.
O treinador Hedge estava em cima da tartaruga, batendo inutilmente com o bastão de beisebol e gritando:
— Tome isso! E mais isso!
Jason voou da popa e caiu sobre a cabeça do animal. Golpeou-o bem entre os olhos com a espada dourada, mas a lâmina escorregou para o lado, como se a pele da tartaruga fosse de aço engraxado. Frank lançou flechas nos olhos do monstro, sem sucesso. As pálpebras internas da tartaruga piscavam com incrível precisão, desviando cada disparo. Piper atirou melões na água, gritando:
— Pegue isso, tartaruga idiota!
Mas o animal parecia focado em devorar o Argo II.
— Como chegou tão perto? — questionou Hazel.
Leo ergueu as mãos em desespero.
— Deve ser o casco. Acho que não é detectável pelo sonar. Maldita tartaruga invisível!
— O navio pode voar? — perguntou Piper.
— Com metade dos remos quebrados? — Leo socou alguns botões e girou a esfera de Arquimedes. — Tenho que tentar uma coisa diferente.
— Ali! — gritou Nico do alto. — Você pode nos levar até aquela restinga?
Hazel olhou para onde ele apontava. A menos de um quilômetro a leste, existia uma longa faixa de terra que corria paralela aos penhascos costeiros. Era difícil ter certeza ao longe, mas a extensão de água entre eles parecia ser de apenas vinte ou trinta metros, possivelmente larga o bastante para o Argo II atravessar, mas definitivamente não era larga o suficiente para uma tartaruga gigante.
— É. Sim — Leo aparentemente compreendeu. Girou a esfera de Arquimedes — Jason, fique longe da cabeça desse bicho! Tive uma ideia!
Jason ainda golpeava o rosto da tartaruga, mas quando ouviu Leo dizer “Tive uma ideia”, fez a única coisa inteligente que conseguiu pensar. Voou para longe dali o mais rápido possível.
— Treinador, hora de partir! — chamou Jason.
— Não, eu resolvo isso! — disse Hedge, mas Jason o agarrou pela cintura e decolou.
Infelizmente, o treinador se debateu tanto que a espada de Jason escorregou e caiu no mar.
— Treinador! — reclamou Jason.
— O quê? — disse Hedge. — Eu a estava dominando!
A tartaruga deu uma cabeçada no casco, quase arremessando toda a tripulação para bombordo. Hazel ouviu um estalo, como se a quilha tivesse se partido.
— Só mais um minuto — disse Leo, com as mãos voando sobre o painel de controle.
— Podemos não estar mais aqui em um minuto!
Frank disparou sua última flecha.
Piper gritou para a tartaruga:
— Vá embora!
Por um momento, realmente funcionou. A tartaruga se afastou do navio e mergulhou a cabeça na água. Mas, então, voltou e bateu com mais força.
Jason e o treinador Hedge aterrissaram no convés.
— Você está bem? — perguntou Piper.
— Tudo bem — murmurou Jason — sem minha espada, mas inteiro.
— Fogo no casco! — gritou Leo, girando o controle do Wii.
Hazel pensou que a popa estava explodindo. Jatos de fogo jorraram atrás deles, atingindo a cabeça da tartaruga. O navio deu uma guinada para a frente, derrubando-a novamente.
Ela se ergueu e viu que o Argo II saltava sobre as ondas a uma velocidade incrível, deixando para trás um rastro de fogo, como um foguete. A tartaruga já estava a uns cem metros, com a cabeça carbonizada e fumegante.
O monstro urrou de frustração e começou a segui-los; suas nadadeiras cortavam a água com tal poder que ela realmente começou a se aproximar. A entrada da restinga ainda estava meio quilômetro mais à frente.
— Alguma coisa para distraí-la — murmurou Leo — não conseguiremos chegar lá a menos que tenhamos alguma coisa para distraí-la.
— Para distraí-la... — repetiu Hazel.
Ela se concentrou e pensou: Arion!
Não sabia se aquilo funcionaria. Mas, imediatamente, avistou algo no horizonte, um borrão de luz e vapor atravessando a água. Em um piscar de olhos, Arion estava no tombadilho.
Deuses do Olimpo, pensou Hazel, como eu amo este cavalo.
Arion bufou como se dissesse: Claro que me ama. Você não é burra.
Hazel montou no cavalo.
— Piper, seu charme pode ser útil.
— Teve uma época em que eu gostava de tartarugas — resmungou Piper, aceitando a mão que lhe era oferecida — agora não!
Hazel esporeou Arion. Ele saltou para fora do barco, atingindo a água a todo galope. A tartaruga nadava com rapidez, mas não era tão rápida quanto Arion. Circulavam sobre a cabeça do monstro, Hazel golpeando com sua espada, Piper gritando orientações aleatórias como:
— Mergulhe! Vire à esquerda! Atrás de você!
A espada não causou dano algum e cada orientação só funcionava por um instante, mas estavam irritando a tartaruga. Arion relinchou com desdém quando a criatura tentou abocanhá-lo, apenas para ficar com a boca cheia de vapor.
Logo, o monstro havia esquecido completamente o Argo II. Hazel continuou golpeando a cabeça. Piper continuou gritando orientações e usando a cornucópia para atirar cocos e frangos assados nos olhos da tartaruga.
Assim que o Argo II adentrou na restinga, Arion interrompeu a perseguição. Aceleraram rumo ao navio, e, pouco depois, estavam de volta ao convés.
O fogo se extinguira, embora os fumegantes escapamentos de bronze ainda se projetassem da popa. O Argo II avançava devagar, impulsionado pelas velas, mas seu plano dera certo. Estavam em segurança naquelas águas, com uma ilha longa e rochosa a boreste e os penhascos brancos do continente a bombordo. A tartaruga parou na entrada da restinga e olhou para eles malignamente, mas não tentou segui-los. Obviamente, seu casco era largo demais.
Hazel desmontou e recebeu um grande abraço de Frank.
— Belo trabalho! — parabenizou ele.
Ela enrubesceu.
— Obrigada.
Piper desmontou ao seu lado.
— Leo, desde quando temos propulsão a jato?
— Ah, sabem... — Leo tentou parecer modesto e falhou. — Foi uma coisinha que bolei em meu tempo livre. Gostaria de ter conseguido mais do que alguns segundos de queima, mas ao menos nos tirou de lá.
— E assou a cabeça da tartaruga — disse Jason, agradecido — o que faremos agora?
— Matem-na! — exigiu o treinador. — Você ainda pergunta? Temos distância suficiente. Temos balistas. Preparem as armas, semideuses!
Jason franziu a testa.
— Treinador, para começo de conversa, você me fez perder a minha espada.
— Ei! Não pedi para ser retirado!
— Em segundo lugar, não acho que as balistas sejam eficazes. Essa carapaça é como a pele do leão da Nemeia. E sua cabeça não é mais macia.
— Então, disparamos goela abaixo — disse o treinador. — Como fizeram com aquele camarão monstruoso no Atlântico. Vamos explodi-la de dentro para fora.
Frank coçou a cabeça.
— Poderia funcionar. Mas, então, teríamos uma carcaça de cinco mil toneladas bloqueando a entrada da restinga. Se não podemos voar com os remos quebrados, como tiraríamos o navio daqui?
— Você aguarda e conserta os remos! — disse o treinador. — Ou simplesmente navega na outra direção, seu marinheiro de água doce.
Frank pareceu confuso.
— O que é um marinheiro de água doce?
— Ei, pessoal! — gritou Nico do alto do mastro. — Quanto a navegar na outra direção, não acho que dê certo.
Ele apontou para além da proa.
A meio quilômetro mais à frente, a longa faixa rochosa se curvava e se encontrava com os penhascos. O canal terminava em um V fechado.
— Não estamos em um estreito — disse Jason. — Estamos em um beco sem saída.
Hazel sentiu frio nos dedos das mãos e dos pés. Na amurada de bombordo, Gale, a doninha, estava sentada sobre as patas traseiras. Olhando para ela, ansiosa.
— É uma armadilha — disse Hazel.
Os outros a encararam.
— Não, está tudo bem — disse Leo — na pior das hipóteses, fazemos os reparos. Pode durar a noite inteira, mas consigo fazer o navio voar de novo.
À entrada do estreito, a tartaruga rugiu. Não parecia interessada em ir embora.
— Bem — Piper deu de ombros — ao menos ela não pode nos pegar. Estamos protegidos.
Aquilo era algo que nenhum semideus deveria dizer. Piper mal terminou de falar quando uma flecha se cravou no mastro principal, a quinze centímetros de seu rosto. A tripulação se dispersou em busca de abrigo, com exceção de Piper, que ficou paralisada, boquiaberta, olhando para a flecha que quase fizera um piercing no seu nariz do modo mais difícil.
— Piper, abaixe! — sibilou Jason.
Mas nenhuma outra flecha foi disparada.
Frank estudou o ângulo do projétil no mastro e apontou para o topo dos penhascos.
— Lá em cima — informou ele. — Um único atirador. Estão vendo?
O sol a impedia de ver claramente, mas Hazel percebeu uma pequena figura na borda do penhasco. Sua armadura de bronze brilhava.
— Ai, caramba! Quem será? — perguntou Leo. — Por que está atirando na gente?
— Pessoal? — A voz de Piper soava trêmula. — Tem um bilhete.
Hazel não tinha percebido, mas havia um pergaminho amarrado à haste da flecha. Não sabia por que, mas aquilo a enfureceu. Foi até lá e retirou o bilhete.
— Hã, Hazel? — disse Leo. — Tem certeza de que é seguro?
Hazel leu o bilhete em voz alta.
— Primeira linha: Parem e entreguem.
— O que isso quer dizer? — reclamou o treinador Hedge. — Estamos parados. Não por querer, mas mesmo assim. Se esse cara está esperando um entregador de pizza, esqueça!
— Tem mais — disse Hazel. — Isto é um assalto. Envie dois dos seus até o topo do penhasco com todos os objetos de valor. Não mais do que dois. Deixem o cavalo mágico. Nada de voar. Sem truques. Apenas subam.
— Subir como? — perguntou Piper.
Nico apontou.
— Por ali.
Havia no penhasco uma escadaria estreita entalhada, que ia até o topo. A tartaruga, o beco sem saída, o penhasco... Hazel tinha a sensação de que aquela não era a primeira vez que o autor da carta emboscara um navio ali.
Pigarreou e continuou a ler em voz alta:
— Refiro-me a todos os seus valores. Caso contrário, minha tartaruga e eu vamos destruí-los. Vocês têm cinco minutos.
— Use as catapultas! — gritou o treinador.
— P.S. — leu Hazel. — Nem pensem em usar suas catapultas.
— Maldição! — exclamou o treinador. — Esse cara é bom.
— O bilhete está assinado? — perguntou Nico.
Hazel balançou a cabeça negativamente. Ouvira uma história no Acampamento Júpiter, sobre um ladrão que trabalhava com uma tartaruga gigante, mas, como sempre, assim que precisava de uma informação, esta ficava irritantemente ocultada em sua memória, fora de seu alcance.
Gale, a doninha, encarou Hazel, esperando para ver o que ela faria.
O teste ainda não acontecera, pensou Hazel. Distrair a tartaruga não fora suficiente. Hazel não provara poder manipular a Névoa... principalmente porque nãoconseguia manipular a Névoa.
Leo estudou o topo do penhasco e murmurou.
— Não é uma boa trajetória. Mesmo que pudesse armar a catapulta antes que o cara fizesse chover flechas, não acho que conseguiria atingi-lo. Está a centenas de metros, quase em linha reta para cima.
— Sim — resmungou Frank. — Meu arco também é inútil. Ele tem uma enorme vantagem estando acima de nós. Não conseguiria atingi-lo.
— E, hum... — Piper cutucou a flecha que estava cravada no mastro. — Tenho a sensação de que é bom de tiro. Não creio que pretendesse me atingir. Mas se quisesse...
Não precisou continuar. Quem quer que fosse o ladrão, podia acertar um alvo a centenas de metros de distância. Poderia matá-los antes que pudessem reagir.
— Eu vou — disse Hazel.
Odiava a ideia, mas tinha certeza de que Hécate planejara aquilo como uma espécie de desafio doentio. Esse seria o teste de Hazel – a sua vez de salvar o navio. Como se precisasse de uma confirmação, Gale correu ao longo da amurada e pulou sobre seu ombro, pronta para pegar uma carona.
Os outros olharam para ela.
Frank agarrou seu arco.
— Hazel...
— Não, prestem atenção — disse ela — esse ladrão quer objetos de valor. Posso ir até lá, invocar ouro, joias, tudo o que ele quiser.
Leo ergueu uma sobrancelha.
— Acha que realmente vai nos deixar ir embora se lhe dermos o que quer?
— Não temos muita escolha — disse Nico. — Entre aquele cara e a tartaruga...
Jason ergueu a mão. Os outros ficaram em silêncio.
— Vou também — disse ele — a carta exige duas pessoas. Levo Hazel até lá e a trago de volta. Além do mais, não gostei dessa escadaria. Se Hazel cair... bem, posso usar os ventos para evitar que cheguemos ao chão do jeito mais doloroso.
Arion relinchou em protesto, como se dissesse: Você vai sem mim? Está brincando, certo?
— É preciso, Arion — disse Hazel — Jason... Sim. Acho que você está certo. É o melhor plano.
— Só gostaria de ter a minha espada — Jason olhou feio para o treinador — está lá, no fundo do mar, e não temos Percy para recuperá-la.
O nome Percy passou por eles como uma nuvem. O clima no convés ficou ainda mais sombrio.
Hazel estendeu um braço. Não pensou. Apenas se concentrou na água e invocou o ouro imperial.
Foi uma ideia idiota. A espada estava muito longe dali, provavelmente a centenas de metros de profundidade. Mas sentiu um puxão rápido em seus dedos, como uma mordida em uma linha de pesca, e a espada de Jason saiu da água e acabou em sua mão.
— Tome — disse ela, entregando-a.
Os olhos de Jason se arregalaram.
— Como...? Estava a quase um quilômetro daqui!
— Tenho praticado — disse ela, embora não fosse verdade.
Esperava não ter acidentalmente amaldiçoado a espada de Jason ao invocá-la, assim como amaldiçoava as joias e os metais preciosos.
De alguma forma, porém, pensou, com armas era diferente. Afinal, Hazel retirara um bocado de equipamento de ouro imperial da baía da geleira e o entregara para a Quinta Coorte. E fora um sucesso.
Hazel decidiu não se preocupar com isso. Estava com tanta raiva de Hécate e tão cansada de ser manipulada pelos deuses que não deixaria que problemas insignificantes a impedissem de continuar.
— Agora, se não há outras objeções, temos que encontrar com um ladrão.

Capítulo XXVII - Hazel

HAZEL GOSTAVA DA VIDA AO ar livre. Mas escalar um penhasco de sessenta metros em uma escadaria sem corrimão com uma doninha mal-humorada no ombro já era exagero. Especialmente quando poderia ter montado em Arion e chegado ao topo em questão de segundos.
Jason caminhava atrás dela para poder pegá-la caso caísse. Hazel gostou da ideia, mas aquilo não tornava a queda menos assustadora.
Ela olhou para a direita, o que foi um erro. Seu pé quase escorregou, lançando um punhado de cascalho pela borda. Gale guinchou, alarmada.
— Você está bem? — perguntou Jason.
— Estou. — O coração de Hazel estava disparado. — Tudo bem.
Não havia espaço para ela se virar e olhar para Jason. Só podia confiar que ele não a deixaria despencar para a morte. Já que conseguia voar, ele era a retaguarda mais lógica. Ainda assim, Hazel preferia estar com Frank, Nico, Piper ou Leo. Até mesmo... bem, certo, talvez não o treinador Hedge. Mas, ainda assim, Hazel não conseguia entender Jason Grace.
Desde que chegara ao Acampamento Júpiter, vinha ouvindo histórias sobre ele. Os campistas falavam com reverência a respeito do filho de Júpiter que surgira das fileiras mais baixas da Quinta Coorte e se tornara pretor, levou-os à vitória na Batalha de Monte Tam e, em seguida, desapareceu. Mesmo agora, depois de tudo o que acontecera nas últimas semanas, Jason parecia mais uma lenda do que uma pessoa.
A princípio, Hazel tivera dificuldade em aceitá-lo, com aqueles olhos azuis gélidos e sua cautelosa introspecção, como se calculasse cada palavra antes de dizê-la. Além disso, não conseguia se esquecer de que ele se mostrara disposto a descartar seu irmão Nico quando descobriram que ele era prisioneiro em Roma.
Jason achava que Nico era a isca de uma armadilha. Estava certo. E, talvez, agora que Nico estava em segurança, Hazel pudesse entender por que a cautela de Jason fora uma boa ideia. Ainda assim, não sabia o que pensar sobre aquele cara. E se ambos se metessem em problemas no topo daquele penhasco e Jason decidisse que salvá-la não era a melhor estratégia para a missão?
Ela olhou para cima. Não podia ver o ladrão dali, mas sentiu que ele os esperava. Hazel estava certa de que poderia invocar ouro e pedras preciosas suficientes para impressionar até o mais ganancioso dos ladrões. Ela se perguntou se os tesouros que invocava ainda traziam má sorte. Não tinha certeza se aquela maldição fora quebrada quando morrera pela primeira vez.
Parecia ser uma boa oportunidade para descobrir. Qualquer um que roubasse semideuses inocentes com uma tartaruga gigante merecia algumas maldições detestáveis.
Gale, a doninha, pulou de seu ombro e saiu em disparada na frente. Ela olhou para trás e chiou, ansiosa.
— Estou indo o mais rápido que posso — murmurou Hazel.
Não conseguia se livrar da sensação de que a doninha estava ansiosa para vê-la fracassar.
— Você teve alguma sorte nesse negócio de, hã, controlar a Névoa? — perguntou Jason.
— Não — admitiu Hazel.
Não gostava de pensar em seus fracassos: na gaivota que não conseguira transformar em dragão, no taco de beisebol do treinador Hedge que teimosamente se recusara a se transformar em um cachorro-quente. Simplesmente não conseguia se convencer de que tais coisas fossem possíveis.
— Você vai conseguir — disse Jason.
Seu tom a surpreendeu. Não era um comentário leviano apenas para ser agradável. Ele parecia realmente convencido daquilo. Hazel continuou a subir, mas o imaginou olhando para ela com aqueles olhos azuis penetrantes, o queixo erguido e confiante.
— Como você pode ter certeza? — perguntou ela.
— Tendo. Sou bom em avaliar aquilo de que as pessoas são capazes. Semideuses, pelo menos. Hécate não a teria escolhido se não acreditasse que você tem poder.
Talvez isso devesse fazer Hazel se sentir melhor. Mas não fez.
Ela também era boa em avaliar as pessoas. Hazel entendia o que motivava a maioria de seus amigos, até mesmo seu irmão, Nico, que não era fácil de decifrar.
Mas Jason? Ela não fazia a menor ideia. Todos diziam que ele era um líder nato. Ela acreditava nisso. Lá estava ele, fazendo-a se sentir como um membro valioso da equipe, dizendo que ela era capaz de qualquer coisa. Mas do que Jason era capaz?
Não podia conversar sobre suas dúvidas com ninguém. Frank adorava o cara. Piper, é claro, estava totalmente apaixonada. Leo era seu melhor amigo. Até mesmo Nico parecia não hesitar em seguir sua liderança.
Mas Hazel não podia esquecer que Jason fora o primeiro movimento de Hera na guerra contra os gigantes. A Rainha do Olimpo pusera Jason no Acampamento Meio-Sangue, o que dera início a toda aquela cadeia de eventos para deter Gaia. Por que Jason primeiro? Algo dizia a Hazel que ele tinha um papel central no plano da deusa. E Jason também seria sua cartada final. Em tempestade ou fogo, o mundo terá acabado. Era o que dizia a profecia. Por mais que Hazel temesse o fogo, ela temia mais as tempestades. Jason Grace podia invocar tempestades bem grandes.
Ela ergueu a cabeça e viu o fim do penhasco apenas alguns metros mais acima. Chegou ao topo, ofegante e suada. Um vale longo e inclinado se estendia à sua frente, repleto de oliveiras retorcidas e pedras calcárias. Não havia sinais de civilização.
Suas pernas estavam trêmulas por causa da escalada. Gale parecia ansiosa para explorar. A doninha chiou, peidou e correu até os arbustos mais próximos. Lá embaixo, o Argo II parecia um barquinho de brinquedo flutuando no canal. Hazel não entendia como alguém poderia atirar uma flecha com precisão daquela altura, levando-se em conta o vento e o reflexo do sol na água.
Na enseada, o rígido casco da tartaruga brilhava como uma moeda polida. Jason se juntou a ela no topo, parecendo não ter sido afetado pela escalada.
Ele começou a dizer:
— Onde...
— Aqui! — disse uma voz.
Hazel deu um pulo. A apenas três metros de distância, um homem com um arco e uma aljava presa ao ombro surgiu, empunhando duas antiquadas pistolas de duelo. Usava botas de couro de cano alto, calça de couro e uma camisa de pirata. O cabelo preto e encaracolado parecia o de uma criança e seus olhos verdes e brilhantes eram bastante amigáveis, embora uma bandana vermelha cobrisse a metade inferior de seu rosto.
— Bem-vindos! — exclamou o bandido, apontando as armas para eles. — O dinheiro ou a vida!

* * *

Hazel tinha certeza de que ele não estava ali um segundo antes. Simplesmente se materializou, como se tivesse saído de trás de uma cortina invisível.
— Quem é você? — perguntou ela.
O bandido riu.
— Círon, é claro!
— Quíron? — perguntou Jason. — Como o centauro?
O bandido revirou os olhos.
— -ron, meu amigo. Filho de Poseidon! Ladrão extraordinário! Um sujeito incrível! Mas isso não importa. Não estou vendo nada de valor — gritou ele, como se isso fosse uma excelente notícia — isso significa que vocês querem morrer?
— Espere — disse Hazel. — Temos objetos de valor. Mas como ter certeza de que você vai nos deixar ir embora assim que os entregarmos?
— Ah, sempre perguntam isso — disse Círon. — Juro pelo Rio Estige que, se me entregarem o que quero, eu não atirarei em vocês. Eu os mandarei penhasco abaixo.
Hazel lançou a Jason um olhar cauteloso. Rio Estige ou não, o juramento de Círon não a tranquilizou.
— E se lutarmos com você? — perguntou Jason. — Não pode nos atacar e manter nosso navio refém ao mesmo...
BANG! BANG!
Aconteceu tão rápido, que o cérebro de Hazel precisou de um tempo para entender. Fumaça saia da lateral da cabeça de Jason. Logo acima de sua orelha esquerda, havia um sulco em seu cabelo que parecia uma faixa de carro de corrida. Uma das pistolas de Círon ainda estava apontada para o rosto dele. A outra estava apontada para baixo, para além do penhasco, como se o segundo tiro de Círon tivesse sido disparado contra o Argo II.
Hazel engasgou com o susto tardio.
— O que você fez?
— Ah, não se preocupe! — Círon riu. — Se pudesse ver de tão longe, o que você não pode, veria um buraco no convés entre os pés do jovem grandalhão, aquele com o arco.
— Frank!
Círon deu de ombros.
— Se você diz... Isso foi apenas uma demonstração. E poderia ter sido muito pior.
Ele girou as pistolas. Os cães voltaram a se armar e Hazel teve a impressão de que as pistolas se recarregavam magicamente.
Círon ergueu as sobrancelhas para Jason.
— Então! Para responder à sua pergunta, sim, eu posso atacá-lo e manter seu navio refém ao mesmo tempo. Munição de bronze celestial. Bem mortal para semideuses. Vocês dois morreriam primeiro: bang, bang. Então, eu poderia abater seus amigos no navio com calma. Tiro ao alvo é muito mais divertido com alvos vivos correndo e gritando!
Jason tocou o sulco que a bala fizera em seu cabelo. Pela primeira vez, não parecia muito confiante.
Os tornozelos de Hazel fraquejaram. Frank era o melhor arqueiro que ela conhecia, mas aquele bandido, Círon, era desumanamente bom.
— Você é um dos filhos de Poseidon? — Hazel conseguiu perguntar. — Pelo modo como atira, podia jurar que era de Apolo.
As rugas ao redor de seus olhos se aprofundaram.
— Ora, muito obrigado! Mas é apenas prática. A tartaruga gigante, esta sim devo a meu pai. Você não pode sair por aí domesticando tartarugas gigantes se não for um filho de Poseidon! Eu poderia afundar seu navio com uma onda, é claro, mas é muito trabalhoso. E nem é tão divertido quanto emboscar e atirar nas pessoas.
Hazel tentou organizar seus pensamentos e ganhar tempo, mas era bem difícil fazer isso encarando os canos fumegantes daquelas pistolas.
— Hã... para que serve a bandana?
— Assim ninguém me reconhece! — respondeu Círon.
— Mas você já se apresentou — disse Jason. — Seu nome é Círon.
Os olhos do bandido se arregalaram.
— Como você... Ah. Verdade, acho que já me apresentei. — Ele baixou uma pistola e coçou a lateral da cabeça com a outra. — Terrível descuido de minha parte. Desculpem. Acho que estou um pouco enferrujado. De volta dos mortos e tudo o mais. Permitam-me tentar outra vez.
Ele ergueu as pistolas.
— Parem e entreguem tudo! Sou um bandido anônimo, e vocês não precisam saber meu nome!
Um bandido anônimo. Hazel teve um lampejo de memória.
— Teseu. Ele matou você uma vez.
Os ombros de Círon arriaram.
— Poxa, por que você tinha que mencioná-lo? Nós estávamos nos dando tão bem!
Jason franziu a testa.
— Hazel, você conhece a história desse cara?
Ela assentiu, embora lhe fugissem os detalhes.
— Teseu o encontrou no caminho para Atenas. Círon matava suas vítimas quando, hum...
Algo sobre a tartaruga. Hazel não conseguia se lembrar.
— Teseu era um trapaceiro! — reclamou Círon. — Não quero falar sobre ele. Voltei dos mortos agora. Gaia prometeu que eu poderia ficar no litoral e roubar todos os semideuses que quisesse, e é isso o que farei! Agora... onde estávamos?
— Você estava prestes a nos deixar ir embora — arriscou Hazel.
— Hum — disse Círon. — Não, tenho certeza de que não era isso. Ah, lembrei! O dinheiro ou a vida. Onde estão seus objetos de valor? Não têm nenhum? Então terei que...
— Espere — disse Hazel. — Tenho objetos de valor. Ao menos, posso consegui-los.
Círon apontou uma das pistolas para a cabeça de Jason.
— Bem, minha querida, então seja rápida ou meu próximo tiro arrancará mais do que o cabelo de seu amigo!
Hazel mal precisou se concentrar. Estava tão aflita que o chão estremeceu embaixo dela e imediatamente rendeu uma abundante colheita: metais preciosos afloraram à superfície, como se a terra estivesse ansiosa para expulsá-los.
Ela se viu rodeada por uma pilha de tesouros que chegava à altura de seus joelhos: denários romanos, dracmas de prata, antigas peças de ouro, diamantes, topázios e rubis, o suficiente para encher vários sacos daqueles bem grandes.
Círon gargalhou de prazer.
— Como você fez isso?
Hazel não respondeu. Pensou em todas as moedas que haviam aparecido na encruzilhada de Hécate. Ali havia ainda mais: séculos de riquezas ocultas de cada império que tomara aquela terra para si: gregos, romanos, bizantinos e tantos outros. Os impérios haviam desaparecido, deixando apenas uma árida faixa de litoral para o bandido Círon.
Tal pensamento a fez sentir-se pequena e impotente.
— Basta levar o tesouro — disse ela. — Deixem-nos ir.
Círon riu.
— Ah, mas eu disse todos os seus bens. Acredito que vocês estejam levando algo muito especial naquele navio... uma certa estátua de marfim e ouro com, digamos, doze metros de altura?
O suor começou a secar no pescoço de Hazel e ela sentiu um calafrio na espinha. Jason deu um passo para a frente. Apesar da arma apontada para seu rosto, seus olhos pareciam duros como safiras.
— A estátua não é negociável.
— Você está certo, não é! — concordou Círon. — Ficarei com ela!
— Foi Gaia quem lhe falou sobre ela — adivinhou Hazel. — Mandou que você a roubasse.
Círon deu de ombros.
— Talvez. Mas ela me disse que eu poderia ficar com a estátua. Difícil recusar uma oferta dessas! Não pretendo morrer de novo, meus amigos. Quero viver uma vida longa como um homem muito rico!
— A estátua não lhe servirá de nada — disse Hazel. — Não se Gaia destruir o mundo.
Os canos das pistolas de Círon oscilaram.
— Como é?
— Gaia está usando você — disse Hazel. — Se levar a estátua, não seremos capazes de derrotá-la. Ela pretende exterminar todos os mortais e semideuses do mundo, deixando seus gigantes e monstros no lugar. Então, onde você vai gastar seu ouro, Círon? Isso se Gaia permitir que você viva.
Hazel deixou a ideia assentar. Achava que Círon não teria dificuldade em acreditar na traição, sendo um bandido e tudo o mais.
Ele ficou em silêncio por uns dez segundos.
Finalmente as rugas ao redor de seus olhos reapareceram.
— Tudo bem! — concordou Círon. — Sou um cara razoável. Fiquem com a estátua.
Jason piscou.
— Podemos ir?
— Só mais uma coisa — disse Círon. — Sempre exijo uma demonstração de respeito. Antes de deixar minhas vítimas irem embora, insisto que elas lavem meus pés.
Hazel não tinha certeza se ouvira direito. Então Círon tirou as botas de couro, uma de cada vez. Seus pés eram as coisas mais repugnantes que ela já vira... e já vira coisas muito nojentas.
Eram inchados, enrugados e brancos como massa de pão, como se estivessem imersos em formol havia alguns séculos. Tufos de cabelos castanhos brotavam de cada dedo deformado. Suas unhas irregulares eram verdes e amarelas, como o casco de uma tartaruga.
Então o cheiro a atingiu. Hazel não sabia se o palácio de seu pai no Mundo Inferior tinha uma lanchonete para zumbis, mas se tivesse, o lugar cheiraria exatamente como os pés de Círon.
— Então! — Círon remexeu os dedos dos pés nojentos. — Quem quer o esquerdo e quem quer o direito?
O rosto de Jason ficou quase tão branco quanto os pés de Círon.
— Você... só pode estar brincando.
— De jeito nenhum! — disse Círon. — Lavem meus pés, e estamos quites. Eu os mandarei penhasco abaixo. Juro pelo Rio Estige.
Círon fez a promessa com tanta facilidade que um alarme soou na mente de Hazel. Pés. Mandar vocês penhasco abaixo. Casco de tartaruga.
Ela se lembrou da história e todas as peças que faltavam se encaixaram. Ela se lembrou de como Círon matava suas vítimas.
— Nós dois poderíamos conversar um instante? — perguntou Hazel para o bandido.
Os olhos de Círon se estreitaram.
— Para quê?
— Bem, é uma decisão importante — disse ela — pé esquerdo, pé direito. Precisamos discutir.
Dava para ver que ele estava sorrindo sob a bandana.
— É claro.  Sou tão generoso que darei a vocês dois minutos.
Hazel saiu de cima da pilha de tesouros e levou Jason o mais longe que se atrevia, uns quinze metros mais abaixo no penhasco, onde esperava que Círon não conseguisse ouvi-los.
— Ele chuta suas vítimas do penhasco — sussurrou Hazel.
Jason fez uma careta.
— O quê?
— Quando se ajoelham para lavar os pés dele — disse Hazel. — É assim que ele as mata. Quando estão desequilibrados, tontos pelo cheiro de seus pés, ele as chuta da borda. E elas caem direto na boca da tartaruga gigante.
Jason levou um momento para digerir aquilo. Olhou para além da borda do penhasco, onde o rígido casco da tartaruga brilhava debaixo d’água.
— Então teremos que lutar — disse Jason.
— Círon é muito rápido — replicou Hazel. — Ele nos matará.
— Então estarei pronto para voar. Quando ele me chutar, flutuarei até o meio do penhasco. E, quando chutar você, eu a pegarei.
Hazel balançou a cabeça.
— Se ele chutar com força e rapidez suficientes, você ficará muito tonto para voar. E mesmo que consiga, Círon tem os olhos de um atirador de elite. Ele observará você cair. Se você flutuar, ele vai atirar em você.
— Então... — Jason agarrou o punho da espada — espero que você tenha outra ideia.
A poucos metros dali, Gale, a doninha, surgiu em meio aos arbustos. Rangeu os dentes e olhou para Hazel como quem diz: Então? Você tem?
Hazel tentou se acalmar e evitar extrair mais ouro do chão. Ela se lembrou do sonho que tivera com o pai. A voz de Plutão: Os mortos veem o que acreditam que verãoAssim como os vivos. Esse é o segredo.
Percebeu o que tinha que fazer. Hazel odiava a ideia mais do que odiava a doninha peidorreira, mais do que odiava os pés de Círon.
— Infelizmente, sim — disse Hazel — precisamos deixar Círon vencer.
— O quê? — perguntou Jason.
Hazel lhe contou seu plano.

Capítulo XXVIII - Hazel

— ATÉ QUE ENFIM! — EXCLAMOU CÍRON. — VOCÊS demoraram bem mais do que dois minutos!
— Desculpe — disse Jason. — Foi difícil decidir... qual dos pés.
Hazel tentou esvaziar a mente e imaginar a cena através dos olhos de Círon: o que ele desejava, o que esperava.
Essa era a chave para usar a Névoa. Não podia forçar alguém a ver o mundo como ela queria. Não conseguiria fazer a realidade de Círon parecer menos crível. Mas caso mostrasse o que ele queria ver... Bem, era filha de Plutão. Passara décadas com os mortos, ouvindo-os ansiar por vidas passadas das quais lembravam apenas vagamente, vidas distorcidas pela nostalgia.
Os mortos viam o que acreditavam que veriam. Assim como os vivos.
Plutão era o deus do Mundo Inferior, o deus da riqueza. Talvez essas duas esferas de influência estivessem mais relacionadas do que Hazel pensava. Não havia muita diferença entre anseio e ganância. Se era capaz de invocar ouro e diamantes, por que não poderia invocar outro tipo de tesouro – uma visão do mundo que as pessoas quisessem ver?
Claro, poderia estar errada. Neste caso, ela e Jason estavam prestes a virar comida de tartaruga.
Apoiou a mão no bolso do casaco, onde o graveto de Frank parecia mais pesado do que o habitual. Agora, não estava guardando apenas a vida dele e, sim, a de toda a tripulação.
Jason deu um passo à frente, com as mãos erguidas em sinal de rendição.
— Serei o primeiro, Círon. Lavarei o seu pé esquerdo.
— Excelente escolha! — Círon mexeu os dedos peludos e cadavéricos. — Acho que pisei em algo com esse pé. Estava um tanto melado dentro da bota. Mas sei que vai limpá-lo adequadamente.
As orelhas de Jason ficaram vermelhas. Pela tensão em seu pescoço, Hazel percebeu que o filho de Júpiter estava tentado a abandonar o plano e atacar Círon – um golpe rápido com a sua espada de ouro imperial. Mas Hazel sabia que ele falharia.
— Círon — interrompeu ela — você tem água? Sabão? Como vamos lavar...
— Com isto!
Círon rodou a pistola esquerda que, subitamente, transformou-se em um borrifador com um trapo. Ele jogou aquilo para Jason.
Jason leu o rótulo.
— Você quer que eu lave os seus pés com limpador de vidro?
— Claro que não! — Círon franziu a testa. — Aí diz limpador multissuperfície. Meus pés definitivamente podem ser definidos como uma multissuperfície. Além disso, é antibacteriano. Preciso disso. Acredite, água não funcionaria com estes bebês.
Círon mexeu os dedos de novo, exalando mais fedor de lanchonete de zumbis pelo penhasco.
Jason engasgou:
— Ah, deuses, não...
Círon deu de ombros.
— Você também pode escolher o que tenho na outra mão.
Ele ergueu a pistola esquerda.
— Ele vai lavar — disse Hazel.
Jason a encarou, mas Hazel ganhou a disputa de quem olhava mais feio.
— Tudo bem — murmurou ele.
— Excelente! Agora...
Círon foi até a pedra calcária mais próxima, que era do tamanho certo para servir de apoio para o pé. Ele olhou para o mar e pousou o pé sobre a pedra, de modo que mais parecia um explorador que acabara de descobrir um novo país.
— Observarei o horizonte enquanto você esfrega os meus joanetes. Será muito mais agradável.
— É — disse Jason. — Aposto que sim.
O garoto se ajoelhou diante do bandido, na borda do penhasco, onde era um alvo fácil. Um chute e ele cairia.
Hazel se concentrou. Imaginou ser Círon, o senhor dos bandidos. Estava olhando para um patético garoto de cabelos louros que não representava qualquer ameaça, era apenas mais um semideus derrotado prestes a se tornar sua vítima.
Em sua mente, visualizou o que aconteceria. Ela invocou a Névoa, chamando-a das profundezas da terra como fazia com ouro, prata ou rubis.
Jason esguichou o produto de limpeza. Seus olhos lacrimejaram. Ele limpou o dedão de Círon com o trapo e virou o rosto com ânsia de vômito. Hazel mal podia olhar. Quando o chute aconteceu, ela quase não o viu.
Círon acertou o peito de Jason, que foi lançado da beira do precipício, agitando os braços e gritando enquanto caía. Quando estava prestes a atingir a água, a tartaruga emergiu, engoliu-o em uma bocada e, em seguida, submergiu.
Alarmes soaram no Argo II. Os amigos de Hazel se espalharam pelo convés, preparando as catapultas. Hazel ouviu o grito de Piper.
Foi tão perturbador que ela quase perdeu a concentração. Forçou sua mente a se dividir em duas partes: uma completamente concentrada em sua tarefa enquanto a outra desempenhava o papel que Círon precisava ver.
Gritou, indignada.
— O que você fez?
— Ah, querida... — A voz de Círon parecia triste, mas Hazel tinha a impressão de que ele escondia um sorriso sob a bandana. — Foi um acidente, eu juro.
— Agora, meus amigos vão matar você!
— Eles podem tentar — disse Círon. — Mas, enquanto isso, acho que você vai ter tempo de lavar o meu outro pé! Acredite em mim, querida. Minha tartaruga está satisfeita agora. Ela não a quer. Você estará segura, a menos que recuse.
Ele apontou a pistola para a sua cabeça.
Hazel hesitou, deixando-o perceber sua angústia. Não poderia concordar com muita facilidade, ou Círon não pensaria que ela estava derrotada.
— Não me chute — implorou ela, quase chorando.
Os olhos de Círon brilharam. Era exatamente o que ele esperava. Ela estava derrotada e indefesa. Círon, filho de Poseidon, vencera outra vez.
Hazel mal podia acreditar que aquele cara tinha o mesmo pai que Percy Jackson. Então lembrou-se de que Poseidon tinha uma personalidade mutável, como o mar. Talvez seus filhos refletissem isso. Percy era filho do melhor lado de Poseidon – poderoso, embora gentil e útil, o tipo de mar que leva os navios com segurança para terras distantes. Círon era filho do outro lado de Poseidon, o tipo de mar que açoita incansavelmente o litoral até erodi-lo, que arrasta inocentes da praia e os afoga, ou que esmaga navios e mata tripulações inteiras sem misericórdia.
Ela pegou o borrifador que Jason deixara cair.
— Círon, seus pés são a coisa menos nojenta em você — resmungou ela.
Seus olhos verdes endureceram.
— Apenas limpe.
Ela se ajoelhou, tentando ignorar o fedor. Foi um pouco para o lado, forçando Círon a ajustar a sua postura, mas imaginou o mar ainda às suas costas. Manteve tal visão em mente enquanto ia de novo para o lado.
— Comece logo a lavar! — exigiu Círon.
Hazel reprimiu um sorriso. Havia conseguido fazê-lo girar cento e oitenta graus, mas ele continuava a ver o mar à sua frente e a paisagem rural às suas costas.
Ela começou a limpar.
Já fizera muito trabalho nojento anteriormente. Limpara os estábulos dos unicórnios no Acampamento Júpiter. Cavara e enterrara latrinas para a legião. Isso não é nada, disse consigo mesma. Mas era difícil não vomitar quando olhava para os dedos de Círon.
Quando o chute veio, ela foi jogada para trás, mas não foi muito longe. Caiu sentada na grama, a alguns metros dali.
Círon olhou para ela.
— Mas...
De repente, o mundo mudou. A ilusão se desfez, deixando o bandido totalmente confuso. O mar estava às suas costas. Apenas chutara Hazel para longe da borda.
Baixou a pistola.
— Como...
— Pare e entregue — disse Hazel.
Jason mergulhou do céu, bem acima da cabeça dela, e deu um encontrão no bandido, lançando-o do penhasco.
Círon gritou enquanto caía, disparando a pistola desesperadamente, mas, pela primeira vez, seus tiros não atingiram nada. Hazel se levantou. Chegou à borda do penhasco a tempo de ver a tartaruga surgir e abocanhar Círon em pleno ar.
Jason sorriu.
— Hazel, isso foi incrível. Sério... Hazel? Ei, Hazel?
Hazel caiu de joelhos, subitamente tonta.
Podia ouvir seus amigos comemorando no navio. Jason se aproximou dela, mas se movia em câmera lenta. Sua figura parecia borrada, e era impossível compreender o que dizia.
A geada cobriu as pedras e a grama à sua volta. O monte de tesouros que ela invocara voltou a afundar na terra. A Névoa rodopiou.
O que eu fiz?, pensou em pânico. Algo deu errado.
— Não, Hazel — disse uma voz grave às suas costas — você se saiu muito bem.
Ela mal se atrevia a respirar. Ouvira aquela voz uma única vez, mas a repetira em sua mente milhares de vezes.
Voltou-se e se viu diante de seu pai.
Ele estava vestido em estilo romano: cabelo escuro cortado bem curto, rosto pálido, anguloso e barbeado. Sua túnica e toga eram de lã preta, bordadas com fios de ouro. Rostos de almas atormentadas agitavam o tecido. A bainha de sua toga tinha uma linha da cor do carmim de um senador ou de um pretor, mas ondulava como um rio de sangue. No dedo anelar de Plutão havia uma enorme opala, como um pedaço polido de Névoa congelada. O seu anel de casamento, pensou a garota. Mas Plutão nunca se casara com a mãe de Hazel. Deuses não se casam com mortais. Aquele anel deveria ser de seu casamento com Perséfone.
O pensamento a deixou com tanta raiva que ela ignorou a tontura e se levantou.
— O que você quer? — perguntou.
Hazel esperava que seu tom de voz o ferisse, deixasse-o magoado depois de toda a dor que ele lhe causara. Mas um leve sorriso esboçou-se nos lábios de Plutão.
— Minha filha. Estou impressionado. Você ficou mais forte.
Não graças a você, Hazel teve vontade de dizer. Não queria sentir qualquer prazer com aquele elogio, mas ainda assim seus olhos arderam.
— Pensei que vocês, deuses maiores, estivessem incapacitados — conseguiu dizer — que as suas personalidades gregas e romanas estivessem lutando umas contra as outras.
— Estamos — concordou Plutão — mas você me invocou com tal força que me permitiu aparecer... mesmo que apenas por um instante.
— Não o invoquei.
Contudo, sabia que não era verdade. Pela primeira vez, Hazel aceitava de bom grado ser uma filha de Plutão. Havia tentado entender os poderes de seu pai e aproveitá-los ao máximo.
— Quando vier à minha casa, em Épiro, você deverá estar preparada — avisou Plutão — os mortos não vão recebê-la bem. E a feiticeira Pasifae...
— Pacífica? — perguntou Hazel.
Percebeu então que aquele devia ser o nome da mulher.
— Ela não se deixará enganar tão facilmente quanto Círon. — Os olhos de Plutão brilhavam como pedra vulcânica. — Você passou em seu primeiro teste, mas Pasifae pretende reconstruir o seu domínio, o que colocará todos os semideuses em risco. A menos que você a detenha na casa de Hades...
Sua forma bruxuleou. Por um instante, ficou barbudo, usando uma túnica grega e uma coroa de louros dourados na cabeça. A seus pés, mãos esqueléticas romperam a terra.
O deus rangeu os dentes e fez uma careta. Sua forma romana se estabilizou. As mãos esqueléticas voltaram a se dissolver na terra.
— Não temos muito tempo. — Seu pai parecia um homem sofrendo de uma terrível doença. — Saiba que as Portas da Morte estão no nível mais baixo do Necromanteion. Você deve fazer Pasifae ver o que ela deseja ver. Você está certa. Esse é o segredo de toda a magia. Mas não será fácil quando estiver no labirinto dela.
— Como assim? Que labirinto?
— Você vai entender — prometeu Plutão. — E, Hazel Levesque... sei que não acredita em mim, mas estou orgulhoso de sua força. Às vezes... Às vezes, a única maneira de cuidar de meus filhos é me mantendo afastado.
Hazel engoliu um insulto. Plutão era apenas mais um deus pai desnaturado dando desculpas esfarrapadas. Mas seu coração batia forte enquanto repetia mentalmente suas palavras: Estou orgulhoso de sua força.
— Vá encontrar os seus amigos — disse Plutão. — Eles vão ficar preocupados. A viagem até o Épiro ainda lhes reserva muitos perigos.
— Espere — disse Hazel.
Plutão ergueu uma sobrancelha.
— Quando conheci Tânatos, você sabe... a Morte... ele falou que eu não estava na lista de espíritos extraviados a serem capturados. Disse que talvez por isso você estivesse mantendo distância. Se me reconhecesse, teria que me levar de volta para o Mundo Inferior.
Plutão esperou.
— O que quer saber?
— Você está aqui. Por que não me leva para o Mundo Inferior, de volta para os mortos?
Plutão começou a desaparecer. Ele sorriu, mas Hazel não podia dizer se estava triste ou feliz.
— Talvez isso não seja o que eu queira ver, Hazel. Talvez eu nunca tenha estado aqui.

Capítulo XXIX - Percy

FOI UM ALÍVIO PARA PERCY quando as vovós demoníacas se aproximaram para a matança.
Ele estava apavorado, claro. Não gostava da desvantagem de três contra várias dezenas. Mas pelo menos lutar lhe era familiar. Caminhar pelas trevas, apenas à espera de ser atacado... Isso o estava deixando maluco.
Além do mais, ele e Annabeth tinham lutado juntos inúmeras vezes. E agora tinham um titã do seu lado.
— Para trás.
Percy brandiu Contracorrente na direção da bruxa enrugada mais próxima, mas ela apenas deu um sorriso de desprezo.
Nós somos as arai, ecoou outra vez a estranha voz, como se a floresta inteira estivesse falando. Vocês não podem nos destruir.
Annabeth encostou-se nele.
— Não encoste nelas — alertou a garota — são os espíritos das maldições.
— Bob não gosta de maldições — disse o zelador, decidido.
O gatinho esqueleto, Bob Pequeno, desapareceu dentro do macacão do titã. Gato esperto.
Bob descreveu um arco amplo com a vassoura e forçou os espíritos a recuarem, mas eles voltaram como uma onda.
Nós servimos aos amargos e derrotados, disseram as araiServimos aos que foram mortos e rezaram por vingança em seu último suspiro. Temos muitas maldições para dividir com vocês.
O fogo líquido no estômago de Percy começou a subir por sua garganta. Como seria bom se o Tártaro tivesse uma maior opção de bebidas, ou talvez uma árvore de frutos antiácidos.
— Muito obrigado — agradeceu ele. — Mas minha mãe me disse para nunca aceitar maldições de estranhos.
A criatura demoníaca mais próxima deu um bote. Suas garras se projetavam como navalhas de ossos. Percy a cortou ao meio, mas assim que ela se evaporou, os lados do peito dele arderam de dor. Recuou, com as mãos apertando a caixa torácica. Quando viu seus dedos, estavam molhados e vermelhos.
— Percy, você está sangrando! — gritou Annabeth, o que àquela altura era meio óbvio para ele. — Ah, meus deuses, dos dois lados.
Era verdade. Sua camisa esfarrapada estava ensopada de sangue dos lados direito e esquerdo, como se ele tivesse sido atravessado por uma lança. Ou uma flecha...
A sensação de náusea quase o derrubou. Vingança. Uma maldição dos que foram mortos.
Ele se lembrou de uma luta no Texas dois anos antes, contra um fazendeiro monstruoso que só podia ser morto se todos os seus três corpos fossem atingidos ao mesmo tempo.
— Geríon — disse Percy. — Foi assim que eu o matei...
Os espíritos mostraram suas presas. Mais arai saltaram das árvores negras, batendo suas asas de morcego.
Isso, concordaram elas. Sinta a dor que você infligiu a Geríon. Tantas maldições foram lançadas contra você, Percy Jackson... De qual você vai morrer? Escolha, ou vamos destruí-lo!
De algum modo Percy conseguiu continuar de pé. O sangue parou de escorrer, mas ele ainda sentia como se uma barra de metal quente estivesse atravessando suas costelas. O braço da espada estava pesado e fraco.
— Não entendo — murmurou ele.
A voz de Bob parecia muito distante, como se ecoasse do fim de um túnel comprido.
— Se matar uma, ela passa uma maldição para você.
— Mas se nós não as matarmos... — disse Annabeth.
— Elas vão matar a gente de qualquer jeito — adivinhou Percy.
Escolha!, gritaram as araiQuer ser esmagado como Campe? Ou desintegrado como os jovens telquines que matou aos pés do Monte Santa Helena? Você causou muita morte e sofrimento, Percy Jackson. Nós vamos lhe dar o troco!
As bruxas aladas se aproximaram mais. Tinham um bafo azedo, e seus olhos brilhavam de ódio. Pareciam Fúrias, mas Percy concluiu que eram criaturas ainda piores. Pelo menos as três Fúrias estavam sob o controle de Hades. Essas coisas eram selvagens e não paravam de se multiplicar.
Se elas eram realmente as personificações das maldições lançadas à beira da morte de todos os inimigos que Percy destruíra... então estava com sérios problemas. Tinha enfrentado muitos inimigos.
Um dos demônios avançou em Annabeth. Ela se esquivou instintivamente, golpeou a cabeça da velha com sua pedra e a transformou em poeira.
Annabeth não teve escolha, assim como Percy. Instantaneamente, entretanto, Annabeth soltou a pedra e gritou apavorada.
— Não consigo ver!
Ela tocou o rosto, olhando desesperada de um lado para outro. Seus olhos estavam completamente brancos.
Percy correu para seu lado enquanto as arai falavam.
Polifemo a amaldiçoou quando você o enganou com sua invisibilidade no Mar de Monstros. Você disse se chamar Ninguém. Ele não podia vê-la. Agora é você que não vai ver quem atacar.
— Estou aqui — disse Percy.
Ele envolveu Annabeth com um braço, mas quando as arai avançassem, ele não sabia como poderia proteger nenhum dos dois.
Uma dúzia de demônios atacou de todas as direções, mas Bob gritou:
— VARRER!
Sua vassoura passou zunindo acima da cabeça de Percy. Toda a linha ofensiva das arai foi derrubada como pinos de boliche.
Outras avançaram. Bob acertou uma na cabeça e perfurou outra, transformando-as em pó. As demais recuaram.
Percy prendeu a respiração, à espera de que seu amigo titã fosse derrubado por alguma maldição terrível, mas Bob parecia bem, um guarda-costas enorme e prateado que mantinha a morte à distância com a mais assustadora de todas as ferramentas de limpeza.
— Bob, você está bem? — perguntou Percy. — Sem maldições?
— Nada de maldições para Bob! — confirmou ele.
As arai rosnavam e formaram um círculo, atentas à vassoura. O titã já está amaldiçoado. Por que deveríamos torturá-lo mais? Você, Percy Jackson, já destruiu a memória dele.
A lança de Bob baixou rapidamente.
— Bob, não dê ouvidos a elas — pediu Annabeth. — Elas são más!
O tempo pareceu ficar mais lento. Percy se perguntou se o espírito de Cronos estaria em algum lugar por perto, espreitando na escuridão e se divertindo tanto com aquele momento que desejara fazê-lo durar para sempre. Percy se sentiu exatamente como quando tinha 12 anos, enfrentando Ares naquela praia em Los Angeles, no momento em que a sombra do senhor dos titãs passou pela primeira vez sobre ele.
Bob se virou. Seus cabelos prateados desgrenhados pareciam um halo.
— Minha memória... Foi você?
Amaldiçoe-o, titã!, insistiram as arai com os olhos vermelhos e brilhantes. Aumente nossas maldições!
O coração de Percy bateu mais rápido.
— Bob, é uma longa história. Não queria que você fosse meu inimigo. Tentei fazer de você um amigo.
Roubando sua vida, disseram as araiEles o deixaram no palácio de Hades para limpar o chão!
Annabeth segurou a mão de Percy.
— Para onde? — sussurrou. — Se tivermos que correr.
Ele entendeu.
Se Bob não os protegesse, sua única chance era correr, o que significava que na verdade não tinham chance.
— Bob, escute — disse, tentando de novo — as arai querem que você fique com raiva. Elas são fruto de pensamentos amargos. Não dê a elas o que querem. Nós somos seus amigos.
Mesmo enquanto dizia essas palavras, Percy se sentiu um mentiroso. Ele tinha deixado Bob no Mundo Inferior e nunca mais pensara nele desde então. Por que seriam amigos? Só por que precisava do titã agora? Percy sempre odiava quando os deuses o usavam para realizar suas tarefas. Agora estava tratando Bob do mesmo jeito.
Está vendo o rosto dele?, rosnaram as araiO garoto não consegue nem se convencer. Ele visitou você alguma vez depois que roubou sua memória?
— Não — murmurou Bob. Seu lábio inferior estava trêmulo — o outro visitou.
Percy ficou confuso.
— O outro?
— Nico — Bob o olhou de cara feia, com uma expressão magoada — Nico me visitou. Ele me falou de Percy. Disse que Percy era bom. Disse que ele era amigo. Foi por isso que Bob ajudou.
— Mas... — A voz de Percy falhou como se alguém o tivesse atingido com uma lâmina de bronze Celestial. Nunca tinha se sentido tão baixo e vil, tão pouco merecedor de uma amizade.
As arai atacaram, e dessa vez Bob não as deteve.

Capítulo XXX - Percy

— ESQUERDA! — PERCY PUXOU ANNABETH, golpeando as arai com a espada para abrir caminho. Provavelmente tinha recebido uma dezena de maldições, mas não as sentiu imediatamente, por isso não parou de correr.
Sentia apenas uma pontada de dor no peito que aumentava a cada passo. Desviava das árvores, conduzindo Annabeth a toda velocidade, apesar da cegueira da garota.
Percy percebeu quanto ela confiava nele para resolver o problema. Não podia decepcioná-la, mas como poderia salvá-la? E se ela ficasse permanentemente cega... Não. Ele se obrigou a ficar calmo. Mais tarde descobriria uma maneira de curá-la. Primeiro tinham que escapar.
Asas coriáceas cortavam o ar acima deles. Sibilos raivosos e o correr de pés com garras deixavam claro que os demônios os perseguiam.
Quando passaram por uma das árvores negras, partiu o tronco com a espada. Ele a ouviu cair, e, logo depois, o agradável barulho de dezenas de arai sendo esmagadas.
Se uma árvore cai na floresta e esmaga um demônio, será que a árvore é amaldiçoada?
Percy partiu outro tronco e outro em seguida. Isso atrasou seus perseguidores, mas não o suficiente.
De repente, a escuridão adiante ficou mais densa. Percy percebeu o que era bem a tempo. Agarrou Annabeth antes que os dois caíssem direto em um precipício.
— O que foi? — gritou ela. — O que aconteceu?
— Precipício — respondeu sem fôlego. — Precipício enorme.
— Então para onde vamos?
Percy não conseguia ver a altura do penhasco. Seria de dez ou mil metros. Não dava para saber o que havia no fundo. Podiam saltar e torcer pela melhor das hipóteses, mas duvidava que o “melhor” acontecesse no Tártaro.
Então havia duas opções: direita ou esquerda, acompanhando a borda do penhasco. Estava prestes a escolher aleatoriamente quando um demônio alado pairou sobre o vazio à sua frente batendo com suas asas de morcego, próximo mas fora do alcance de sua espada.
O passeio foi bom?, perguntou a voz coletiva, ecoando à sua volta.
Percy se virou. As arai estavam saindo da floresta e formando uma meia-lua em torno deles. Uma agarrou o braço de Annabeth, que gritou de raiva. Deu um golpe de judô no monstro e pulou no seu pescoço, pondo todo o peso do corpo em um golpe com o cotovelo que teria deixado qualquer lutador profissional orgulhoso.
O demônio se desintegrou, mas, quando Annabeth se levantou, parecia atônita e assustada, além de cega.
— Percy? — chamou com a voz trêmula pelo pânico.
— Estou aqui.
Tentou tocar em seu ombro, mas ela não estava no mesmo lugar. Tentou de novo e descobriu que ela estava alguns metros mais distante. Era como tentar agarrar algo dentro da água, quando a luz fazia a imagem mudar de lugar.
— Percy! — gritou a voz de Annabeth. — Por que você me abandonou?
— Não abandonei! — Ele encarou as arai, com os braços trêmulos de raiva. — O que fizeram com ela?
Não fizemos nada, disseram os demônios. Sua amada liberou uma maldição especial... um pensamento amargo para alguém que você abandonou. Você puniu uma alma inocente deixando-a só. Agora o desejo mais cheio de ódio dessa alma se realizou: Annabeth sente o desespero dela. Também morrerá sozinha e abandonada.
— Percy? — Annabeth estendeu os braços para tentar localizá-lo.
As arai recuaram e deixaram que ela andasse cegamente e aos tropeções através delas.
— Quem eu abandonei? — perguntou Percy. — Eu nunca...
De repente, sentiu como se seu estômago tivesse caído no precipício.
As palavras ecoaram em sua mente: Uma alma inocente. Solitária e abandonada. Lembrou de uma ilha, uma caverna iluminada pelo brilho suave de cristais, uma mesa de jantar na praia servida por criados invisíveis.
— Ela não... — balbuciou. — Ela jamais iria me amaldiçoar.
Os olhos dos demônios se misturaram como suas vozes. Percy sentiu as laterais do corpo latejarem. A dor no peito estava pior, como se alguém estivesse girando lentamente um punhal.
Annabeth caminhava em meio aos demônios, chamando desesperadamente por ele. Percy ansiava por correr até ela, mas sabia que as arai o impediriam. A única razão para não a terem matado ainda era porque estavam desfrutando de sua desgraça.
Percy cerrou os dentes. Não ligava para quantas maldições sofresse. Tinha que manter aquelas decrépitas bruxas coriáceas concentradas nele e proteger Annabeth enquanto conseguisse.
Furioso, gritou e atacou todas elas.


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