quarta-feira, 16 de abril de 2014

A Casa de Hades 31 ao 40

Capítulo XXXI - Percy

POR UM EMPOLGANTE MINUTO, PERCY sentiu como se estivesse vencendo. Contracorrente cortava as arai como se fossem feitas de manteiga. Uma entrou em pânico, correu e deu de cara com uma árvore. Outra gritou e tentou escapar voando, mas ele cortou suas asas e lançou-a girando para o abismo.
Cada vez que um demônio se desintegrava, Percy recebia uma nova maldição, o que fazia crescer nele uma sensação de medo. Algumas maldições eram cruéis e dolorosas: uma punhalada na barriga, ou uma sensação de queimação como se estivesse sendo atacado por um maçarico. Outras eram sutis: um calafrio na espinha, um tique incontrolável no olho direito. Fala sério, quem usa o último suspiro para amaldiçoar você com: Espero que tenha um tique nervoso!
Percy sabia que tinha matado muitos monstros, mas nunca pensou nisso do ponto de vista de suas vítimas. Agora, toda a dor, raiva e amargura delas se derramaram sobre ele, minando sua resistência.
Mesmo assim as arai continuavam a atacar. Para cada uma que derrubava, pareciam surgir mais seis.
O braço que segurava a espada ficou ainda mais cansado. Seu corpo doía, e a visão começou a embaçar. Tentou abrir caminho na direção de Annabeth, mas ela estava longe demais, chamando-o e andando sem rumo entre os demônios.
Enquanto tentava chegar até ela, um demônio deu um bote e cravou os dentes em sua coxa. Percy urrou e transformou o demônio em pó com um golpe, mas caiu de joelhos. Sua boca queimava mais do que se houvesse engolido fogo líquido do Flegetonte. Ele se curvou, tremendo e com ânsias de vômito, sentindo como se serpentes de chamas descessem por seu esôfago.
Você escolheu, disse a voz das araiA Maldição de Fineu... uma morte dolorosa excelente.
Percy tentou falar, mas sua língua parecia estar assando. Lembrou do velho rei cego que tinha perseguido harpias por Portland com um aparador de grama. Percy o desafiou para um confronto, e o perdedor bebeu o fatal sangue de górgona. Percy não se lembrava de ouvir o velho moribundo murmurar uma maldição em seus segundos finais, mas enquanto Fineu se dissolvia e voltava para o Mundo Inferior, provavelmente não desejara a Percy uma vida longa e próspera.
Depois da vitória, Gaia o alertou: Não abuse da sorte. Quando chegar a hora de sua morte, prometo que ela será muito mais dolorosa que o sangue de górgona.
Agora estava no Tártaro morrendo por causa do sangue de górgona além de muitas outras maldições torturantes enquanto via a namorada cambalear sem rumo, indefesa, cega e acreditando que fora abandonada. Apertou a espada. As juntas dos dedos começaram a fumegar. Uma fumaça branca veio subindo de seus antebraços.
Não vou morrer assim, pensou ele. Não apenas por ser um jeito doloroso e extremamente tosco, mas porque Annabeth precisava dele. Quando morresse, os demônios se concentrariam nela. Não podia abandoná-la.
As arai se amontoaram em torno dele, rindo, rosnando e sibilando.
Primeiro, a cabeça dele vai explodir, especulou a voz.
Não, a voz respondeu a si mesma de outra direção. Ele vai entrar em combustão espontânea.
Estavam fazendo apostas sobre sua morte... sobre o formato da marca calcinada que deixaria no chão.
— Bob — gemeu sem forças — preciso de você.
Era uma súplica desesperada. Mal conseguia ouvir a si mesmo. Por que Bob deveria atender seu chamado pela segunda vez? O titã agora sabia a verdade. Percy não era amigo.
Ergueu os olhos uma última vez. Tudo em torno dele parecia tremeluzir. O céu fervia e o solo estava coberto de bolhas.
Percy percebeu que o que vira no Tártaro era apenas uma versão diluída de seu verdadeiro horror, apenas aquilo com que seu cérebro de semideus podia lidar. O pior ficava oculto, do mesmo modo que a neblina escondia os monstros de olhos mortais. Agora, enquanto morria, Percy enxergou a verdade.
O ar era a respiração de Tártaro. Todos aqueles monstros eram apenas células sanguíneas que circulavam por seu corpo. Tudo que Percy via era um sonho na mente do deus sombrio das profundezas.
Nico deve ter visto Tártaro assim, e isso quase o enlouquecera. Nico... uma das muitas pessoas que Percy não tinha tratado bem o suficiente. Ele e Annabeth só tinham conseguido chegar tão longe no Tártaro porque Nico di Angelo tornara-se amigo verdadeiro de Bob.
Está vendo o horror das profundezas?, disseram as arai em voz tranquilizadora. Desista, Percy Jackson. Não é melhor morrer do que sofrer aqui?
— Sinto muito — murmurou Percy.
Ele está se desculpando!, as arai riram de prazer. Ele se arrepende de sua vida fracassada, de seus crimes contra os filhos do Tártaro!
— Não — disse Percy. — Sinto muito, Bob. Devia ter sido honesto com você. Por favor... me perdoe. Proteja Annabeth.
Não esperava que Bob ouvisse ou se importasse, mas pareceu o certo a fazer para ter a consciência limpa. Não podia culpar mais ninguém por seus problemas. Nem os deuses. Nem Bob. Nem sequer Calipsoa garota que deixara sozinha naquela ilha. Talvez ela houvesse ficado amargurada e, por desespero, amaldiçoado a namorada de Percy. Mesmo assim... ele devia ter buscado informações sobre Calipso e se assegurado de que os deuses a houvessem libertado de seu exílio em Ogígia como prometeram. Não a tratara nem um pouco melhor do que tratara Bob. Nem pensou muito nela, apesar de sua planta de enlace lunar ainda florescer na jardineira da mãe dele.
Usou suas últimas forças e conseguiu se levantar. Todo seu corpo exalava vapor. Suas pernas tremiam. Suas entranhas se revolviam como o interior de um vulcão.
Pelo menos partiria lutando. Percy ergueu Contracorrente.
Mas antes que pudesse atacar, todas as arai à sua frente explodiram e viraram pó.

Capítulo XXXII - Percy

BOB SABIA MESMO COMO USAR uma vassoura.
Golpeava a torto e a direito, destruindo demônios um atrás do outro com o gatinho Bob Pequeno em seu ombro, arqueando as costas e rosnando.
Em poucos segundos, as arai desapareceram. A maioria evaporou. As inteligentes tinham voado para a escuridão gritando aterrorizadas.
Percy queria agradecer o titã, mas não conseguiu falar. Suas pernas fraquejaram. Os ouvidos zumbiam. Em meio a um brilho vermelho de dor, viu Annabeth a alguns metros de distância, andando sem rumo e às cegas em direção ao precipício.
— Não! — grunhiu Percy.
Bob acompanhou o olhar dele, correu e tirou Annabeth do chão. Ela gritava, chutava, e socava a barriga do zelador, mas ele não parecia se incomodar. Carregou-a até Percy e a colocou no chão com delicadeza.
O titã tocou a testa dela.
— Ui!
Annabeth parou de lutar. Seus olhos desanuviaram.
— Aonde... o quê...?
Ela viu Percy, e uma série de expressões passaram por seu rosto: alívio, alegria, choque, horror.
— O que houve com ele? — gritou ela. — O que aconteceu?
Ela abraçou Percy e chorou sobre sua cabeça.
Ele queria dizer que estava tudo bem, mas claro que não estava. Não sentia mais o próprio corpo. Sua consciência parecia um balãozinho, amarrado frouxamente no alto de sua cabeça. Não tinha peso, nem força. Apenas continuava a se expandir, ficando cada vez mais leve. Sabia que logo explodiria, ou a linha iria se romper, e sua vida flutuaria para longe.
Annabeth tomou seu rosto nas mãos. Ela o beijou e tentou limpar a poeira e o suor dos olhos dele.
Bob estava parado perto dos dois com a vassoura fincada no chão como uma bandeira. Era impossível compreender o que sentia olhando seu rosto, luminosamente branco no escuro.
— Muitas maldições — explicou Bob — Percy fez coisas ruins com monstros.
— Você pode curá-lo? — implorou Annabeth. — Como fez com minha cegueira? Cure Percy!
Bob franziu o cenho. Cutucou o crachá em seu uniforme como se fosse uma casca de ferida.
Annabeth tentou de novo.
— Bob...
— Jápeto — disse Bob, com uma voz que soava como um ronco grave. — Antes de Bob. Era Jápeto.
Tudo pareceu congelar. Percy se sentia desamparado, mal conectado com o mundo.
— Prefiro o Bob — a voz da menina estava surpreendentemente calma. — De qual você gosta?
O titã olhou para ela com seus olhos de prata pura.
— Não sei mais.
Ele se agachou ao lado dela e examinou Percy. O rosto do titã parecia exausto e envelhecido, como se de repente sentisse o peso de todos os seus séculos de vida.
— Eu prometi — murmurou ele — Nico me pediu para ajudar. Acho que nem Jápeto nem Bob gostam de quebrar promessas.
E tocou a testa de Percy.
— Ui — murmurou o titã — um Ui muito grande.
Percy voltou para seu corpo. O zumbindo nos ouvidos desapareceu, e sua visão clareou. Ainda tinha a sensação de ter engolido uma fritadeira, e suas entranhas borbulhavam. Podia sentir também que o veneno tivera apenas sua velocidade reduzida, não havia sido expurgado. Mas estava vivo.
Tentou fitar Bob para expressar sua gratidão. Sua cabeça caiu sem forças sobre o peito.
— Bob não consegue curar isso — explicou ele — veneno demais. Maldições demais acumuladas.
Annabeth abraçou Percy. Ele queria dizer: Agora posso sentir. Ai. Apertado demais.
— O que podemos fazer, Bob? — perguntou Annabeth. — Tem água em algum lugar por perto? Talvez água o cure.
— Não tem água — disse Bob — Tártaro é mau.
Eu percebi, Percy teve vontade de berrar.
Pelo menos o titã chamava a si próprio de Bob. Mesmo que o culpasse por tirar sua memória, talvez ajudasse Annabeth se Percy não conseguisse.
— Não — insistiu ela — não, tem que haver um jeito. Algo que possa curá-lo.
Bob pôs a mão no peito de Percy. Um formigamento frio como pomada de eucalipto espalhou-se sobre seu esterno. Mas assim que Bob tirou a mão, o alívio parou. Os pulmões de Percy voltaram a queimar como se estivessem cheios de lava.
— Tártaro mata semideuses — disse Bob — cura monstros, mas vocês não são. Tártaro não vai curar Percy. As profundezas odeiam sua espécie.
— Não me importa — disse Annabeth. — Mesmo aqui, tem que haver algum lugar onde ele possa descansar, algum elixir curativo que possa tomar. Talvez lá atrás, no altar de Hermes, ou...
Ao longe, ouviu-se uma voz alta, grave e profunda, uma voz que Percy reconheceu, infelizmente.
— SINTO O CHEIRO DELE! — ribombou o gigante. — CUIDADO, FILHO DE POSEIDON! EU VIM PEGAR VOCÊ!
— Polibotes — disse Bob — ele odeia Poseidon e seus filhos. E agora está muito perto.
Annabeth se esforçou para ajudar Percy a se levantar. Ele odiava dar tanto trabalho, mas se sentia como se fosse um saco de batatas. Mesmo com Annabeth sustentando quase todo o seu peso, mal conseguia se manter de pé.
— Bob, vou seguir em frente, com ou sem você — disse ela. — Você vai ajudar?
Bob Pequeno começou a miar e ronronar, se esfregando contra o queixo de Bob. Bob, o titã, olhou para Percy, e Percy desejou poder interpretar sua expressão. Estava com raiva, ou apenas pensativo? Será que estava planejando vingança, ou simplesmente se sentindo chateado porque Percy mentira sobre ser seu amigo?
— Tem um lugar — disse Bob por fim. — Tem um gigante que pode saber o que fazer.
Annabeth quase deixou Percy cair.
— Um gigante. Hum, Bob, gigantes são maus.
— Um é bom — insistiu Bob — confiem em mim, e eu levo vocês... a menos que Polibotes e os outros nos peguem.

Capítulo XXXIII - Jason

JASON ADORMECEU EM PLENA MISSÃO. O que era ruim, já que estava a mais de trezentos metros de altura.
Deveria ter imaginado. Era a manhã seguinte de seu encontro com Círon, o bandido, e estava no ar, lutando com alguns venti selvagens que ameaçavam o navio. Quando destruiu o último, esqueceu-se de prender a respiração.
Um erro idiota. Quando um espírito do vento se desintegra, cria um vácuo. Se você não estiver prendendo a respiração, o ar é sugado de seus pulmões. A pressão nos ouvidos internos cai tão rápido que a pessoa desmaia.
Foi o que aconteceu com Jason.
Para piorar, ele mergulhou imediatamente em um sonho. Do fundo de seu subconsciente, perguntou-se: Sério? Agora?
Precisava acordar ou morreria; mas não conseguiu se concentrar nesse pensamento. No sonho, estava no teto de um edifício alto, a silhueta dos prédios de Manhattan espalhando-se à sua volta na paisagem noturna. Um vento frio açoitava suas roupas. A poucos quarteirões dali, algumas nuvens se juntavam acima do Empire State – a entrada para o Monte Olimpo. Relâmpagos cortavam o céu. O ar estava metálico, cheirando a chuva iminente. O topo do arranha-céu estava iluminado como de costume, mas as luzes pareciam não estar funcionando direito. Ficavam mudando de roxo para laranja, como se as cores estivessem em uma disputa.
Junto com Jason no teto do prédio estavam seus antigos companheiros do Acampamento Júpiter: uma tropa de semideuses trajando armaduras, suas armas e escudos de ouro imperial brilhando na escuridão. Viu Dakota e Nathan, Leila e Marcus. Octavian estava um pouco afastado, magro e pálido, os olhos avermelhados devido à insônia ou à raiva, com vários bichinhos de pelúcia para sacrifícios presos ao cinto. Usava o manto branco de áugure sobre uma camiseta roxa e uma calça cargo.
No meio da fileira estava Reyna com os cães de metal Aurum e Argentum a seu lado. Ao vê-la, Jason sentiu uma grande pontada de culpa. Ele a deixara crer que os dois tinham um futuro juntos. Nunca fora apaixonado por ela, e não lhe dera esperanças... mas também nunca a desencorajara.
Ele desaparecera, e Reyna teve que liderar o acampamento sozinha. (O.k., aquilo não fora exatamente ideia de Jason, mas mesmo assim...) Então voltou para o Acampamento Júpiter com sua nova namorada, Piper, e um bando de amigos gregos em um navio de guerra. Dispararam contra o Fórum e fugiram, deixando-a com uma guerra nas mãos.
No sonho, ela parecia cansada. Os outros podiam não notar, mas Jason já trabalhara com Reyna por tempo suficiente para reconhecer o cansaço em seus olhos, a tensão em seus ombros sob as tiras da armadura. Seu cabelo escuro estava molhado, como se tivesse tomado um banho rápido.
Os romanos encaravam a porta de acesso ao teto do prédio como se estivessem à espera de alguém.
Quando a porta se abriu, duas pessoas surgiram. Uma delas era um fauno – não, pensou Jason – um sátiro. Aprendera a diferença no Acampamento Meio-Sangue, e o treinador Hedge sempre o corrigia quando ele se confundia. Os faunos romanos vagavam por aí mendigando e comendo. Os sátiros eram mais úteis, mais envolvidos com os assuntos dos semideuses. Jason não acreditava ter visto aquele sátiro em particular antes, mas tinha certeza de que ele estava do lado dos gregos. Nenhum fauno caminharia com tanta segurança em direção a um grupo armado de romanos no meio da noite.
Ele usava uma camiseta verde do Nature Conservancy com imagens de animais ameaçados de extinção, baleias, tigres e outros tantos. Nada cobria seus cascos e suas pernas peludas. Tinha um cavanhaque espesso, cabelos castanhos encaracolados escondidos sob um gorro rastafári e uma flauta de bambu pendurada no pescoço. Ele remexia na barra da camisa, mas, considerando a maneira como estudava os romanos, prestando atenção em suas posições e armas, Jason percebeu que aquele sátiro já estivera em um combate.
Ao seu lado estava uma menina ruiva que Jason reconhecia do Acampamento Meio-Sangue: era o oráculo, Rachel Elizabeth Dare. Ela tinha longos cabelos encaracolados, usava uma blusa branca e uma calça jeans cheia de desenhos feitos à mão. Segurava uma escova de cabelo de plástico azul que batia nervosamente na coxa, como um talismã da sorte.
Jason lembrou-se dela junto à fogueira do acampamento, recitando a profecia que o enviara junto com Piper e Leo em sua primeira missão. Ela era uma adolescente mortal normal – não uma semideusa – contudo, por razões que Jason jamais entendera, o espírito de Delfos a escolhera como seu porta-voz.
A verdadeira questão era: o que ela estava fazendo com os romanos?
A garota deu um passo à frente, os olhos fixos em Reyna.
— Você recebeu minha mensagem.
Octavian sorriu com desdém.
— Esse é o único motivo de terem chegado vivos até aqui, graecus. Espero que tenham vindo para discutir os termos de sua rendição.
— Octavian — advertiu Reyna.
— Ao menos os reviste! — protestou Octavian.
— Não há necessidade — disse Reyna, estudando Rachel Dare — vocês estão armados?
Rachel deu de ombros.
— Certa vez, acertei o olho de Cronos com esta escova. Fora isso, não.
Os romanos pareciam não saber como reagir àquela resposta. A mortal não parecia estar brincando.
— E seu amigo? — Reyna apontou para o sátiro. — Pensei que viria sozinha.
— Este é Grover Underwood — disse Rachel. — Ele é um líder do Conselho.
— Qual conselho? — questionou Octavian.
— Conselho dos Anciãos de Casco Fendido, cara.
A voz de Grover soava alta e esganiçada, como se estivesse com medo, mas Jason suspeitou que o sátiro era mais corajoso do que deixava transparecer.
— Sério, os romanos não têm natureza, árvores e tal? Tenho algumas notícias que vocês precisam ouvir. Além disso, sou um protetor de carteirinha. Estou aqui para, vocês sabem, proteger Rachel.
Reyna parecia estar tentando segurar o riso.
— Sem nenhuma arma?
— Apenas a flauta de bambu — a expressão de Grover tornou-se melancólica — Percy sempre disse que meu cover de “Born to be Wild” deveria contar como uma arma perigosa, mas não creio que seja tão ruim assim.
Octavian zombou:
— Outro amigo de Percy Jackson. Só me faltava essa.
Reyna ergueu a mão pedindo silêncio. Seus cães de ouro e prata farejaram o ar, mas se mantiveram calmos e atentos ao seu lado.
— Até agora nossos visitantes só disseram a verdade — disse Reyna. — Estejam avisados, Rachel e Grover, que, se começarem a mentir, esta conversa terminará muito mal para vocês. Digam o que vieram dizer.
Rachel puxou um guardanapo do bolso da calça jeans.
— Uma mensagem. De Annabeth.
Jason não tinha certeza se ouvira direito. Annabeth estava no Tártaro. Ela não podia mandar um bilhete em um guardanapo para ninguém.
Talvez eu tenha caído na água e morrido, disse seu subconsciente. Esta não é uma visão real. É uma espécie de alucinação pós-morte.
Mas o sonho parecia muito real. Ele podia sentir o vento varrendo o teto do prédio. Podia sentir o cheiro da chuva. Relâmpagos cortavam o céu sobre o edifício Empire State, fazendo as armaduras dos romanos brilharem.
Reyna pegou o bilhete. Enquanto lia, suas sobrancelhas se erguiam cada vez mais. Abriu a boca, chocada. Finalmente, olhou para Rachel.
— Isso é uma piada?
— Gostaria que fosse — disse Rachel — eles realmente estão no Tártaro.
— Mas como...
— Não sei — respondeu Rachel — o bilhete apareceu no fogo sacrificial do pavilhão de refeições. Essa é a letra de Annabeth. E ela cita seu nome.
Octavian se intrometeu.
— Tártaro? O que você quer dizer com isso?
Reyna entregou-lhe o bilhete.
Octavian murmurou enquanto lia:
— Roma, Aracne, Atena... Atena Partenos? — Ele olhou em volta, indignado, como se esperasse que alguém questionasse o que estava lendo. — Um truque dos gregos! Os gregos são famosos por seus truques!
Reyna pegou o bilhete de volta.
— Por que pedir isso a mim?
Rachel sorriu.
— Porque Annabeth é esperta. Acredita que você é capaz, Reyna Avila Ramírez-Arellano.
Jason sentiu como se tivesse levado um tapa. Ninguém nunca usava o nome completo de Reyna. Ela odiava ter que dizê-lo a alguém. A única vez em que Jason o dissera em voz alta, apenas para tentar pronunciá-lo corretamente, ela lhe lançou um olhar assassino. Esse era o nome de uma menininha em San Juan, dissera para ele. Deixei-o para trás quando saí de Porto Rico.
Reyna fez uma careta.
— Como você...
— Hum... — interrompeu Grover Underwood. — Quer dizer que suas iniciais são RARA?
A mão de Reyna baixou até sua adaga.
— Mas isso não é importante! — disse o sátiro rapidamente. — Olhe, não teríamos nos arriscado a vir até aqui se não confiássemos nos instintos de Annabeth. Um líder romano devolvendo a mais importante estátua grega para o Acampamento Meio-Sangue... ela sabe que isso pode evitar a guerra.
— Isto não é um truque — acrescentou Rachel. — Não estamos mentindo. Pergunte aos seus cães.
Os cães metálicos não reagiram. Reyna acariciou a cabeça de Aurum, pensativa.
— A Atena Partenos... então a lenda é verdadeira.
— Reyna! — exclamou Octavian. — Você não pode estar considerando isso seriamente! Mesmo que a estátua ainda exista, perceba o que eles estão fazendo. Estamos prestes a atacá-los, a destruir esses gregos cretinos de uma vez por todas, e eles inventam esta missão idiota para desviar sua atenção. Querem que você rume para a própria morte!
Os outros romanos murmuraram entre si, olhando feio para os visitantes. Jason se lembrou de quão persuasivo Octavian poderia ser, e ele estava ganhando o apoio dos oficiais.
Rachel Dare encarou o áugure.
— Octavian, Legado de Apolo, você deveria levar isso mais a sério. Até mesmo os romanos respeitam o Oráculo de Delfos de Apolo.
— Há! — disse Octavian. — Você é o Oráculo de Delfos? Certo. E eu sou o imperador Nero!
— Pelo menos Nero entendia de música — murmurou Grover.
Octavian cerrou os punhos.
Subitamente, o vento mudou de direção. Passou a rodopiar em torno dos romanos com um som sibilante, como um ninho de cobras. Rachel Dare emanava uma aura verde, como se tivesse sido iluminada por um suave refletor de luz esmeralda. Então o vento voltou ao normal e a aura se foi.
O desprezo se esvaiu do rosto de Octavian. Os romanos se remexeram, inquietos.
— A decisão é sua — disse Rachel, como se nada tivesse acontecido — não tenho nenhuma profecia específica para oferecer a vocês, mas posso ter vislumbres do futuro. Vejo a Atena Partenos na Colina Meio-Sangue. E vejo ela trazendo a estátua — Rachel apontou para Reyna — Além disso, Ella tem murmurado trechos dos livros sibilinos.
— O quê? — interrompeu Reyna. — Os livros sibilinos foram destruídos há séculos.
— Eu sabia! — Octavian bateu com o punho na palma da mão. — Aquela harpia que eles trouxeram ao voltarem da missão, Ella. Sabia que ela estava recitando profecias! Agora entendo. Ela... de algum modo memorizou uma cópia dos livros sibilinos.
Reyna balançou a cabeça em sinal de descrença.
— Como isso é possível?
— Não sabemos — admitiu Rachel — mas, sim, parece ser esse o caso. Ella tem memória eidética. E adora livros. Em algum lugar, de algum modo, ela leu o livro romano de profecias. Agora é a única fonte deles.
— Seus amigos mentiram — disse Octavian — eles nos disseram que a harpia apenas murmurava coisas sem sentido. Eles a roubaram!
Grover bufou, indignado.
— Ella não é sua propriedade! É uma criatura livre. Além disso, quer ficar no Acampamento Meio-Sangue. Está namorando um de meus amigos, Tyson.
— O ciclope — lembrou-se Reyna — uma harpia namorando um ciclope...
— Isso não é relevante! — disse Octavian — a harpia conhece profecias romanas valiosas. Se os gregos não a devolverem, devemos tomar seu oráculo como refém! Guardas!
Dois centuriões avançaram com as pila em riste. Grover levou a flauta aos lábios, tocou uma rápida melodia, e as lanças se transformaram em árvores de Natal. Os guardas as largaram, surpresos.
— Basta! — gritou Reyna.
Não costumava erguer a voz. Quando o fazia, todos a ouviam.
— Estamos nos desviando do assunto. Rachel Dare, você está me dizendo que Annabeth está no Tártaro. No entanto, ela encontrou um modo de enviar esta mensagem. Quer que eu leve essa estátua das terras antigas para o seu acampamento.
Rachel assentiu.
— Apenas um romano pode devolvê-la e restaurar a paz.
— E por que os romanos buscariam a paz depois que seu navio atacou nossa cidade? — perguntou Reyna.
— Você sabe por quê — replicou Rachel — para evitar esta guerra. Para reconciliar as personalidades gregas e romanas dos deuses. Precisamos trabalhar juntos para derrotar Gaia.
Octavian se adiantou para falar, mas Reyna lançou-lhe um olhar fulminante.
— De acordo com Percy Jackson — disse Reyna — a batalha contra Gaia será travada nas terras antigas. Na Grécia.
— É onde estão os gigantes — concordou Rachel — seja qual for a magia ou o ritual que os gigantes estejam planejando para despertar a Mãe Terra, sinto que isso vai acontecer na Grécia. Mas... bem, nossos problemas não estão limitados às terras antigas. Por isso trouxe Grover para conversar com vocês.
O sátiro passou a mão pelo cavanhaque.
— Sim... Ao longo dos últimos meses, estive conversando com sátiros e espíritos da natureza por todo o continente. Todos dizem a mesma coisa. Gaia está despertando, quer dizer, está no limiar da consciência. Ela está sussurrando nas mentes das náiades, tentando convencê-las a mudar de lado. Está causando terremotos, arrancando as árvores das dríades. Só na semana passada apareceu em sua forma humana em uma dúzia de lugares diferentes, assustando meus amigos até os chifres. No Colorado, um punho de pedra gigante ergueu-se de uma montanha e acertou alguns pôneis de festa como se fossem moscas.
Reyna fez uma careta.
— Pôneis de festa?
— É uma longa história — disse Rachel — o fato é: Gaia vai se erguer em toda parte. Já está despertando. Nenhum lugar estará seguro. E sabemos que seus primeiros alvos serão os acampamentos dos semideuses. Ela quer nos destruir.
— É tudo especulação — disse Octavian — uma distração. Os gregos temem nosso ataque. Estão tentando nos confundir. É mais um Cavalo de Troia!
Reyna mexeu no anel de prata que sempre usava, com o símbolo da espada e da tocha de sua mãe, Belona.
— Marcus — disse ela — traga Scipio dos estábulos.
— Reyna, não! — protestou Octavian.
Ela voltou-se para os gregos.
— Farei isso por Annabeth, pela paz entre nossos acampamentos, mas não pensem que me esqueci dos insultos ao Acampamento Júpiter. Seu navio disparou contra nossa cidade. Vocês declararam guerra, não nós. Agora, saiam.
Grover bateu com o casco no chão.
— Percy jamais...
— Grover, vamos — disse Rachel.
Seu tom de voz dizia: Antes que seja tarde demais.
Depois que os dois se foram, Octavian voltou-se para Reyna.
— Você ficou louca?
— Sou pretora da legião — disse Reyna. — Creio que isso seja do interesse de Roma.
— Morrer? Infringir nossas mais velhas leis e viajar para as terras antigas? Como pretende encontrar o navio deles, supondo-se que sobreviva à jornada?
— Vou encontrá-los — disse Reyna — se estão navegando para a Grécia, conheço um lugar que Jason terá que visitar. Para enfrentar os fantasmas na Casa de Hades, precisará de um exército. Há apenas um lugar onde pode conseguir esse tipo de ajuda.
No sonho de Jason, o prédio pareceu se inclinar sob seus pés. Ele se lembrou de uma conversa que tivera com Reyna anos antes, uma promessa que fizeram um ao outro. Sabia ao que ela estava se referindo.
— Isso é loucura — murmurou Octavian — já estamos sob ataque. Devemos assumir a ofensiva! Aqueles anões peludos estão roubando nossos suprimentos, sabotando nossos batedores. Você sabe que eles foram enviados pelos gregos.
— Talvez — disse Reyna — mas você não vai lançar um ataque sem que eu ordene. Continue a monitorar o acampamento dos gregos. Mantenha a posição. Reúna todos os aliados que puder e, se capturar os anões, você tem minha autorização para enviá-los de volta ao Tártaro. Mas não ataque o Acampamento Meio-Sangue até eu voltar.
Octavian estreitou os olhos.
— Enquanto você estiver fora, o áugure é o oficial sênior. Estarei no comando.
— Eu sei — Reyna não parecia feliz com aquilo — mas você ouviu minhas ordens. Todos ouviram.
Ela examinou o rosto dos centuriões, desafiando-os a questioná-la.
A garota saiu bruscamente, o manto roxo esvoaçando atrás dela, e os cães seguindo-a de perto.
Depois que ela se foi, Octavian voltou-se para os centuriões.
— Reúna todos os oficiais seniores. Quero uma reunião assim que Reyna partir para essa missão ridícula. Haverá algumas mudanças nos planos da legião.
Um dos centuriões abriu a boca para responder, mas, por algum motivo, falou com a voz de Piper:
— ACORDE!
Jason abriu os olhos e viu a superfície do oceano aproximando-se rapidamente.

Capítulo XXXIV - Jason

JASON SOBREVIVEU, MAS POR POUCO.
Mais tarde, seus amigos explicaram que não o viram cair até o último segundo. Não houve tempo para Frank se transformar em uma águia e pegá-lo, nem para formular um plano de resgate.
Apenas o raciocínio rápido e o poder das palavras de Piper salvaram sua vida. Ela gritou ACORDE! tão alto que Jason sentiu como se tivesse levado um choque de um desfibrilador. No milésimo de segundo que lhe restava, convocou os ventos e evitou se transformar em uma poça flutuante de gordura de semideus no meio do Adriático.
De volta a bordo, Jason puxou Leo para o lado e sugeriu uma mudança de curso. Felizmente, Leo confiava nele o suficiente para não fazer perguntas.
— Lugar estranho para passar as férias — disse Leo, sorrindo. — Mas tudo bem, você que manda!
Agora, sentado com os amigos no refeitório, Jason se sentia tão acordado que duvidava que fosse conseguir dormir durante uma semana. Suas mãos estavam irrequietas. Não conseguia parar de balançar os pés. Imaginou que era assim que Leo se sentia o tempo todo. Só que Leo tinha senso de humor.
Depois do que vira em seu sonho, não estava com vontade de contar piadas.
Enquanto almoçavam, Jason contou a eles sobre a visão que teve em pleno ar. Seus amigos ficaram em silêncio por tempo suficiente para o treinador Hedge terminar de comer um sanduíche de manteiga de amendoim com banana, inclusive o prato de cerâmica.
O navio rangia enquanto navegavam pelo Mar Adriático, com os remos restantes ainda desalinhados devido ao ataque da tartaruga gigante. De vez em quando, Festus, a figura de proa, rangia e guinchava pelos alto-falantes, relatando a situação do piloto automático naquela estranha linguagem de máquina que só Leo conseguia entender.
— Um bilhete de Annabeth — Piper balançou a cabeça, pasma — não vejo como isso é possível, mas se for...
— Ela está viva — disse Leo — graças aos deuses e me passe o molho de pimenta.
Frank franziu a testa.
— O que isso significa?
Leo limpou as migalhas do rosto.
— Isso significa: me passe o molho de pimenta, Zhang. Ainda estou com fome.
Frank passou o molho.
— Não podia imaginar que Reyna iria tentar nos encontrar. É tabu vir às terras antigas. Ela vai perder a pretoria.
— Se sobreviver — acrescentou Hazel — foi muito difícil para nós chegar tão longe com sete semideuses e um navio de guerra.
— E eu — lembrou o treinador Hedge — não se esqueça, docinho, vocês tiveram a ajuda de um sátiro.
Jason teve que sorrir.
O treinador Hedge podia ser bem ridículo, mas Jason estava feliz que ele tivesse vindo. Lembrou-se do sátiro que vira em seu sonho, Grover Underwood. Ele não poderia imaginar um sátiro mais diferente do treinador Hedge, mas ambos pareciam corajosos a seu modo.
Aquilo fez Jason pensar nos faunos do Acampamento Júpiter – se poderiam ser como os sátiros caso os semideuses romanos exigissem mais deles. Outra coisa a acrescentar à sua lista...
Sua lista. Não tinha percebido que tinha uma lista até aquele momento, mas, desde que deixara o Acampamento Meio-Sangue, vinha pensando em maneiras de tornar o Acampamento Júpiter mais... grego.
Crescera no Acampamento Júpiter e se dera bem por lá. Mas Jason sempre fora um tanto não convencional. Ele se irritava com as regras. Ingressou na Quinta Coorte porque todos lhe disseram para não fazer isso. Ele foi avisado de que era a pior unidade. Então pensou: Ótimovou transformá-la na melhor.
Quando se tornou pretor, fez uma campanha para mudar o nome da Décima Segunda Legião para Primeira Legião, simbolizando um novo começo para Roma. Sua ideia quase provocou um motim. Nova Roma era muito apegada à tradição e aos costumes – as regras não mudavam com facilidade. Jason aprendera a conviver com isso e até mesmo chegara ao topo.
Mas agora que vira os dois acampamentos, não conseguia se livrar da sensação de que talvez o Acampamento Meio-Sangue tivesse lhe ensinado mais sobre si mesmo. Caso sobrevivesse àquela guerra contra Gaia e retornasse ao Acampamento Júpiter como pretor, poderia melhorar as coisas?
Esse era seu dever.
Então, por que a ideia o enchia de medo? Sentia-se culpado por deixar Reyna no comando sozinha, mas mesmo assim... parte dele queria voltar para o Acampamento Meio-Sangue com Piper e Leo. Supôs que isso o tornava um péssimo líder.
— Jason? — chamou Leo. — Argo II para Jason. Responda.
Ele percebeu que seus amigos o olhavam com expectativa. Precisavam ser tranquilizados. Voltando ou não à Nova Roma depois da guerra, Jason teria que tomar a frente agora e agir como pretor.
— Sim, desculpe — tocou o buraco que Círon, o bandido, abrira em seu cabelo — cruzar o Atlântico é uma viagem difícil, sem dúvida. Mas jamais apostaria contra Reyna. Se há alguém que pode fazer isso, é ela.
Piper remexeu sua sopa com a colher. Jason ainda ficava um pouco preocupado, temendo que ela tivesse ciúmes de Reyna, mas, ao encará-lo, ela abriu um sorrisinho que parecia mais provocante do que inseguro.
— Bem, eu adoraria ver Reyna de novo — ela falou — mas como vai nos encontrar?
Frank ergueu a mão.
— Você não pode lhe mandar uma mensagem de Íris?
— Elas não estão funcionando muito bem — intrometeu-se o treinador Hedge — a recepção anda horrível. Todas as noites, juro, tenho vontade de chutar aquela deusa do arco-íris...
Ele hesitou. Seu rosto ficou vermelho.
— Treinador? — Leo sorriu. — Para quem você tem ligado todas as noites, seu bode velho?
— Ninguém! — vociferou Hedge. — Nada! Só quis dizer...
— Ele quis dizer que já tentamos isso — interveio Hazel. O treinador lançou-lhe um olhar agradecido. — Alguma magia está interferindo... talvez seja Gaia. Contatar os romanos é ainda mais difícil. Acho que eles têm algum tipo de proteção.
Jason olhou de Hazel para o treinador, perguntando-se o que estava acontecendo com o sátiro, e como Hazel sabia daquilo. Pensando bem, havia um bom tempo que o treinador não mencionava sua namorada, Mellie, a ninfa das nuvens...
Frank tamborilou os dedos na mesa.
— Será que Reyna tem celular...? Ah. Não importa. Provavelmente teria uma péssima recepção com ela voando sobre o Atlântico em um pégaso.
Jason pensou na viagem pelo mar a bordo do Argo II, nas dezenas de encontros quase mortais. Pensar em Reyna fazendo aquela viagem sozinha... não conseguia decidir se era aterrorizante ou inspirador.
— Reyna vai nos encontrar.  Ela mencionou algo no sonho. Espera que eu vá a um determinado lugar em nosso caminho para a Casa de Hades. Eu... eu tinha me esquecido dele, na verdade, mas ela está certa. É um lugar que preciso visitar.
Piper se inclinou em sua direção, a trança caindo sobre o ombro. Seus olhos brilhantes não o deixavam pensar direito.
— E onde fica esse lugar? — perguntou ela.
— Em uma... hã... uma cidade chamada Split.
— Split.
Ela cheirava muito bem, como madressilvas florescendo.
— Hum, sim.
Jason se perguntou se Piper estaria usando algum tipo de magia de Afrodite – por exemplo: toda vez que ele mencionasse o nome de Reyna, ela o confundisse a tal ponto que ele não conseguiria pensar em mais nada além de Piper. Não era uma vingança das piores.
— Na verdade, devemos estar perto. Leo?
Leo apertou o botão do interfone.
— Como vão as coisas aí em cima, cara?
Festus, a figura de proa, rangeu e soltou vapor.
— Ele disse que estamos a uns dez minutos do porto — informou Leo. — Embora eu ainda não entenda por que você quer ir para a Croácia, especialmente para uma cidade chamada Split. Ora, se você batiza uma cidade de Split está praticamente dando um aviso: se separarem. É como chamar uma cidade de Dê o fora!
— Espere — disse Hazel — por que estamos indo para a Croácia?
Jason notou que os outros estavam relutantes em encará-la. Desde seu truque com a Névoa contra Círon, o bandido, até mesmo Jason se sentia um pouco nervoso perto dela. Sabia que isso era injusto com Hazel. Já era muito difícil ser uma filha de Plutão, mas ela fizera magia de verdade naquele penhasco. E, depois, de acordo com Hazel, o próprio Plutão aparecera para ela.
Isso era algo que os romanos normalmente chamariam de mau agouro.
Leo empurrou para o lado o molho de pimenta e as batatinhas chips.
— Bem, tecnicamente, estamos em território croata há mais ou menos um dia. Este litoral pelo qual estamos navegando é da Croácia, mas acho que, no tempo dos romanos, chamava-se... como foi mesmo que você disse, Jason? Bodácia?
— Dalmácia — disse Nico, assustando Jason.
Santo Rômulo... Jason desejou poder amarrar um sino no pescoço de Nico di Angelo para lembrá-lo de que o garoto estava por perto. Nico tinha o hábito perturbador de ficar quieto em um canto, misturando-se às sombras.
Deu um passo à frente, os olhos escuros fixos em Jason. Desde que fora resgatado do jarro de bronze em Roma, Nico vinha dormindo muito pouco e comendo menos ainda, como se ainda estivesse sobrevivendo daquelas sementes de romã de emergência do Mundo Inferior. Ele lembrou a Jason um ghoul comedor de carne com quem lutara em San Bernardino.
— A Croácia era a Dalmácia — Nico continuou — uma grande província romana. Você quer visitar o Palácio de Diocleciano, não é?
O treinador Hedge soltou um arroto heroico.
— Palácio de quem? E os dálmatas vêm da Dalmácia? Aquele filme dos 101 Dálmatas... ainda tenho pesadelos.
Frank coçou a cabeça.
— Por que alguém teria pesadelos com isso?
O treinador Hedge parecia estar prestes a iniciar um longo discurso sobre a maldade dos dálmatas de desenho animado, mas Jason decidiu que não queria ouvir.
— Nico está certo.  Preciso ir ao Palácio de Diocleciano. É para onde Reyna irá primeiro, porque ela sabe que eu iria até lá.
Piper ergueu uma sobrancelha.
— E por que Reyna pensa isso? Você sempre teve um louco fascínio pela cultura croata?
Jason olhou para o sanduíche intocado em seu prato. Era difícil falar sobre sua vida de antes de Juno ter apagado sua memória. Seus anos no Acampamento Júpiter pareciam inventados, como um filme no qual ele houvesse atuado décadas antes.
— Reyna e eu conversávamos sobre Diocleciano. Nós meio que idolatrávamos o cara como um líder. Dizíamos como gostaríamos de visitar o Palácio de Diocleciano. Claro que sabíamos que isso era impossível. Ninguém podia viajar para as terras antigas. Mas, ainda assim, fizemos um pacto de que, se um dia pudéssemos, era para lá que iríamos.
— Diocleciano... — Leo pensou no nome, então balançou a cabeça. — Não conheço. Por que ele é tão importante?
Frank pareceu ofendido.
— Foi o último grande imperador pagão!
Leo revirou os olhos.
— Por que não estou surpreso que você saiba disso, Zhang?
— Por que não saberia? Ele foi o último imperador a adorar os deuses do Olimpo antes de Constantino assumir o poder e adotar o cristianismo.
Hazel assentiu.
— Lembro-me de algo sobre isso. As freiras de St. Agnes nos ensinaram que Diocleciano era um grande vilão, como Nero e Calígula — ela olhou de soslaio para Jason. — Por que você o idolatra?
— Ele não era um vilão completo — disse Jason. — Está certo que perseguiu cristãos, mas, tirando isso, era um bom governante. Diocleciano começou do nada, unindo-se à legião. Seus pais eram ex-escravos... ou pelo menos sua mãe era. Os semideuses sabem que ele era filho de Júpiter e foi o último semideus a governar Roma. Foi também o primeiro imperador a se aposentar, tipo, pacificamente e a abrir mão de seu poder. Era da Dalmácia, então voltou para lá e construiu um palácio para passar o restante da vida. A cidade de Split cresceu em torno...
Ele vacilou ao olhar para Leo, que fingia estar tomando notas com um lápis invisível.
— Vá em frente, professor Grace! — disse Leo com os olhos arregalados. — Quero tirar dez na prova.
— Cale a boca, Leo.
Piper tomou outra colherada de sopa.
— Mas por que o Palácio de Diocleciano é tão especial?
Nico inclinou-se e pegou uma uva. Provavelmente era tudo o que ele comeria naquele dia.
— Dizem que é assombrado pelo fantasma de Diocleciano.
— Que era filho de Júpiter, como eu — disse Jason. — Seu túmulo foi destruído há séculos, mas Reyna e eu costumávamos imaginar se poderíamos encontrar o fantasma de Diocleciano e perguntar onde ele foi enterrado... bem, de acordo com as lendas, seu cetro foi enterrado com ele.
Nico lançou a Jason um sorriso irônico e assustador.
— Ah... essa lenda.
— Que lenda? — perguntou Hazel.
Nico voltou-se para a irmã.
— Supostamente, o cetro de Diocleciano pode convocar os fantasmas de qualquer legião romana que adorasse os deuses antigos.
Leo assobiou.
— O.k., agora estou interessado. Seria bom ter um exército de zumbis pagãos da pesada ao nosso lado quando entrarmos na Casa de Hades.
— Eu não colocaria dessa forma — murmurou Jason — mas, é isso mesmo.
— Não temos muito tempo — advertiu Frank — hoje já é nove de julho. Temos que chegar a Épiro, fechar as Portas da Morte...
— Que são protegidas por um gigante sombrio e uma feiticeira que quer... — Hazel hesitou — bem, não tenho certeza. Mas, de acordo com Plutão, ela pretende “reconstruir o seu domínio”. Seja lá o que isso signifique, é ruim o suficiente para que meu pai viesse me avisar pessoalmente.
Frank resmungou.
— E, se sobrevivermos a tudo isso, ainda teremos que descobrir onde os gigantes vão despertar Gaia e chegar lá antes de primeiro de agosto. Além disso, quanto mais tempo Percy e Annabeth ficarem no Tártaro...
— Eu sei — disse Jason — não vamos demorar muito em Split. Mas vale a pena tentar encontrar o cetro. Enquanto estivermos no palácio, posso deixar uma mensagem para Reyna informando nossa rota para Épiro.
Nico assentiu.
— O cetro de Diocleciano poderia nos dar uma grande vantagem. Você vai precisar da minha ajuda.
Jason tentou não demonstrar seu desconforto, mas sua pele se arrepiou com a ideia de ir a qualquer lugar com Nico di Angelo.
Percy lhe contara algumas histórias perturbadoras sobre o rapaz. Suas lealdades nem sempre eram claras. Ele passava mais tempo com os mortos do que com os vivos. Certa vez, atraíra Percy para uma armadilha no palácio de Hades. Talvez Nico tenha compensado tudo isso ajudando os gregos contra os titãs, mas ainda assim...
Piper apertou a mão dele.
— Ei, parece divertido. Irei também.
Jason queria gritar: Graças aos deuses!
Mas Nico balançou a cabeça.
— Você não pode ir, Piper. Apenas Jason e eu. O fantasma de Diocleciano pode aparecer para um filho de Júpiter, mas qualquer outro semideus provavelmente... hum, o mataria de medo. E eu sou o único que pode falar com seu espírito. Nem mesmo Hazel seria capaz de fazer isso.
Os olhos de Nico tinham um brilho de desafio. Ele parecia curioso para saber se Jason protestaria ou não.
O sino do navio soou. Festus rangeu e zumbiu no alto-falante.
— Chegamos a Split — anunciou Leo — hora de nos separarmos.
Frank gemeu.
— Podemos deixar Valdez na Croácia?
Jason levantou-se.

— Frank é o encarregado de defender o navio. Leo, você tem reparos a fazer. Quanto ao resto de vocês, ajudem sempre que possível. Nico e eu... — Olhou para o filho de Hades. — Precisamos encontrar um fantasma.

Capítulo XXXV - Jason

JASON VIU O ANJO PELA primeira vez perto do carrinho de sorvete.
Argo II ancorara na baía ao lado de seis ou sete navios de cruzeiro. Como sempre, os mortais não notaram o trirreme, mas, por precaução, Jason e Nico pegaram uma carona no escaler de um dos barcos para se misturarem à multidão de turistas quando desembarcassem na praia.
À primeira vista, Split parecia um lugar legal. Perto do porto havia um extenso calçadão ladeado por palmeiras. Jovens europeus passavam o tempo nas mesas dos cafés na calçada, falando dezenas de idiomas diferentes e aproveitando a tarde ensolarada. O ar cheirava a carne grelhada e a flores recém-colhidas.
Além da avenida principal, a cidade era uma mistura de torres de castelos medievais, muralhas romanas, casas de pedra com telhados vermelhos e modernos edifícios comerciais. Ao longe, colinas verde-acinzentadas iam em direção ao cume de uma montanha, o que deixou Jason um pouco nervoso. Ele continuou olhando para aquela escarpa rochosa, esperando que o rosto de Gaia surgisse das sombras.
Estava com Nico vagando pelo calçadão quando viu o cara com asas comprando um picolé em uma carrocinha. A vendedora parecia entediada enquanto separava o troco. Os turistas circulavam junto às enormes asas do anjo sem nem olhar duas vezes.
Jason cutucou Nico.
— Está vendo aquilo?
— Estou — respondeu Nico — talvez devêssemos comprar um sorvete.
Enquanto caminhavam em direção à carrocinha, Jason se perguntou se aquele sujeito alado seria um filho de Bóreas, o Vento Norte. O anjo carregava uma espada de bronze muito parecida com as dos boréadas, e o último encontro de Jason com eles não terminara muito bem.
Mas aquele cara parecia mais frio do que a própria frieza. Usava uma regata vermelha, bermudas e sandálias alpercata. Suas asas possuíam vários tons de vermelho, como um galo bantam ou um pôr do sol preguiçoso. A pele era bronzeada, e o cabelo preto quase tão encaracolado quanto o de Leo.
— Ele não é um dos espíritos que voltaram — murmurou Nico — nem uma criatura do Mundo Inferior.
— Não — concordou Jason — duvido que fossem comer picolés de chocolate.
— Então o que é? — perguntou Nico.
Estavam a uns quatro metros de distância quando o cara alado olhou diretamente para eles. Sorriu, apontou por cima do ombro com o picolé, e se dissolveu no ar.
Jason não podia vê-lo de verdade, mas tinha experiência suficiente controlando os ventos para conseguir acompanhar o trajeto do anjo: um fiapo quente vermelho e dourado passando do outro lado da rua, espiralando pela calçada e soprando cartões-postais dos displays em frente às lojas de lembranças para turistas. O vento foi em direção ao final do calçadão, onde se erguia uma grande estrutura parecida com uma fortaleza.
— Aposto que é o palácio — disse Jason. — Vamos.
Mesmo após dois milênios, o palácio de Diocleciano ainda era impressionante. A muralha externa era apenas um muro de granito rosa, com colunas em ruínas e grandes janelas em arco, mas estava quase intacta, e seus quinhentos metros de comprimento por quase vinte e cinco metros de altura faziam as lojas e casas modernas que se amontoavam abaixo dela parecerem peças de uma maquete. Jason imaginou como seria o palácio recém-construído, com guardas imperiais caminhando pelos bastiões e as águias douradas de Roma brilhando nos parapeitos.
O anjo de vento – ou o que quer que ele fosse – entrou e saiu pelas janelas de granito rosa, e então desapareceu do outro lado. Jason procurou uma entrada na fachada do palácio. A única que encontrou estava a vários quarteirões de distância, com um grupo de turistas em fila para comprar ingressos. Não tinham tempo para isso.
— Precisamos alcançá-lo — disse Jason. — Segure-se.
— Mas...
Jason agarrou Nico e se lançou ao ar.
Nico soltou um protesto abafado, e eles voaram por cima da muralha até um pátio onde havia ainda mais turistas tirando fotografias.
Uma criança os encarou quando aterrissaram. Então seus olhos ficaram vidrados e ela balançou a cabeça, como se estivesse afastando uma alucinação induzida por suco de caixinha.
Ninguém mais prestou atenção neles.
No lado esquerdo do pátio havia uma fileira de colunas sustentando arcos acinzentados pelo tempo. No lado direito havia uma construção de mármore branco com muitas janelas altas.
— O peristilo — disse Nico — esta era a entrada para a residência particular de Diocleciano — ele franziu as sobrancelhas — e, por favor, não gosto que me toquem. Nunca mais me segure assim de novo.
Os ombros de Jason ficaram tensos. Pensou ter ouvido uma ameaça velada, tipo:a menos que queira levar uma espadada de ferro estígio na cara.
— Hum, tudo bem. Desculpe. Como você sabe o nome deste lugar?
Nico observou o átrio. Seu olhar se focou em uma escadaria que levava para baixo em um canto afastado.
— Já estive aqui antes — seus olhos eram tão escuros quanto a lâmina de sua espada — com minha mãe e Bianca. Uma viagem de fim de semana, vindos de Veneza. Eu tinha o quê... seis anos?
— Isso foi quando...? Nos anos trinta?
— Trinta e oito, por aí — Nico respondeu, distraído — que importância isso tem para você? Está vendo aquele cara com asas em algum lugar?
— Não.
Jason ainda estava tentando entender o passado de Nico.
Ele sempre tentou manter um bom relacionamento com as pessoas de sua equipe. Aprendera da maneira mais difícil que se alguém tinha que cuidar de sua retaguarda em uma batalha, era melhor que ambos tivessem alguma afinidade e confiassem um no outro. Mas Nico era difícil de decifrar.
— É que... não posso imaginar quão estranho isso deve ser, vir de outro tempo.
— Não, você não pode — Nico encarou o chão de pedra e inspirou profundamente — olhe... Não gosto de falar sobre isso. Na verdade, acho que o caso de Hazel é ainda pior. Ela se lembra muito mais de quando era criança do que eu. E teve que voltar dos mortos e se adaptar ao mundo moderno. Eu... eu e Bianca ficamos confinados no Hotel Lótus. O tempo passou muito depressa. De um jeito estranho, isso tornou a transição mais fácil.
— Percy me falou sobre esse lugar.  Setenta anos... mas pareceu apenas um mês.
Nico cerrou o punho até seus dedos ficarem brancos.
— É. Tenho certeza de que Percy contou tudo a meu respeito.
Sua voz estava cheia de amargura, mais do que Jason conseguia entender. Ele sabia que Nico culpara Percy pela morte da irmã, Bianca, mas supostamente haviam superado aquilo, pelo menos de acordo com Percy. Piper também mencionara um boato de que Nico tinha uma queda por Annabeth. Talvez isso tivesse alguma coisa a ver.
Ainda assim... Jason não entendia por que Nico afastava as pessoas, por que nunca passava muito tempo em nenhum dos dois acampamentos, por que preferia a morte à vida. Ele realmente não entendia por que Nico prometera levar o Argo II a Épiro se odiava tanto Percy Jackson.
Os olhos de Nico percorreram as janelas acima deles.
— Há romanos mortos por toda parte... Lares. Lemures. Estão observando. E estão furiosos.
— Com a gente? — Jason levou a mão à espada.
— Com tudo — Nico apontou para uma pequena construção de pedra na extremidade oeste do pátio — aquilo era um templo para Júpiter. Os cristãos o transformaram em um batistério. Os fantasmas romanos não gostaram.
Jason olhou para o portal sombrio.
Nunca conhecera Júpiter, mas sempre pensava em seu pai como uma pessoa viva – o cara que se apaixonara por sua mãe. Claro que sabia que ele era imortal, mas, de alguma forma, o pleno significado daquilo nunca passara por sua cabeça até então, enquanto olhava para um portal que romanos atravessaram havia milhares de anos para adorar seu pai. A ideia lhe deu dor de cabeça.
— E ali... — Nico apontou para o leste, em direção a uma construção hexagonal rodeada de colunas — ali era o mausoléu do imperador.
— Mas a tumba não está mais lá — concluiu Jason.
— Há séculos. Quando o império caiu, o lugar foi transformado em uma catedral cristã.
Jason engoliu em seco.
— Então, se o fantasma de Diocleciano ainda está por aqui...
— Provavelmente não está feliz.
O vento soprava, espalhando folhas e embalagens vazias de comida por todo o peristilo. Pelo canto do olho, Jason teve um vislumbre de movimento – um borrão vermelho e dourado.
Quando se virou, uma única pena cor de ferrugem pousava sobre os degraus que levavam para baixo.
— Por aqui — Jason apontou — o cara com asas. Aonde acha que esta escada vai dar?
Nico sacou a espada. Ele era mais inquietante quando sorria do que quando fazia cara feia.
— No subterrâneo — disse. — Meu lugar favorito.

* * *

O subterrâneo não era o lugar favorito de Jason.
Desde seu passeio sob Roma com Piper e Percy, lutando com aqueles gigantes gêmeos no hipogeu sob o Coliseu, tinha muitos pesadelos com porões, alçapões e bolas gigantes para hamster.
E Nico estar ali ao seu lado não era reconfortante. A espada de ferro estígio parecia tornar as sombras ainda mais densas, como se o metal infernal estivesse absorvendo a luz e o calor a sua volta.
Os dois chegaram a um vasto porão com grossas colunas de sustentação apoiando o teto abobadado. Os blocos de calcário eram tão antigos que haviam se fundido devido a séculos de umidade, fazendo o lugar se parecer muito com uma caverna natural.
Nenhum dos turistas se aventurara ali. Obviamente, eram mais espertos do que semideuses.
Jason empunhou sua gladius. Eles caminharam sob as arcadas baixas, seus passos ecoando no chão de pedra. Havia uma fileira de janelas gradeadas no topo de uma parede, no nível da rua, mas isso só deixava o lugar ainda mais claustrofóbico. Os raios de sol pareciam barras de prisão inclinadas, rodopiando com poeira antiga.
Jason passou por uma viga de sustentação, olhou para a esquerda e quase teve um ataque cardíaco. Um busto de mármore de Diocleciano olhava diretamente para ele, o rosto de calcário carrancudo em sinal de desaprovação.
Tratou de controlar a respiração. Aquele parecia ser um ótimo lugar para deixar o bilhete que escrevera para Reyna informando sobre a rota deles para Épiro. Era um lugar meio escondido, mas tinha certeza de que Reyna o encontraria. Ela tinha os instintos de uma caçadora. Ele colocou o bilhete entre o busto e o pedestal, e se afastou.
Os olhos de mármore de Diocleciano o deixavam nervoso. Jason não podia evitar pensar em Términus, a estátua falante em Nova Roma. Esperava que Diocleciano não gritasse com ele ou subitamente começasse a cantar.
— Olá!
Antes que Jason pudesse perceber que a voz viera de outro lugar, cortou a cabeça do imperador. O busto caiu e se espatifou no chão.
— Isso não foi muito legal — disse a voz atrás deles.
Jason se virou. O homem alado da carrocinha de sorvete estava encostado em uma coluna próxima, jogando casualmente um pequeno aro de bronze para o ar. Ao lado de seus pés havia uma cesta de piquenique repleta de frutas.
— Quer dizer — disse o sujeito — o que Diocleciano lhe fez?
O vento soprou ao redor dos pés de Jason. Os pedaços de mármore se reuniram em um minitornado, espiralaram de volta ao pedestal e recompuseram o busto, com o bilhete ainda escondido sob ele.
— Hã... — Jason baixou a espada. — Foi um acidente. Você me assustou.
O cara de asas riu.
— Jason Grace, o Vento Oeste já foi chamado de muitas coisas... quente, gentil, restaurador e diabolicamente atraente. Mas nunca fui chamado de assustador. Deixo o comportamento grosseiro para meus irmãos esquentadinhos do norte.
Nico recuou.
— O Vento Oeste? Quer dizer que você...
— Favônio — disse Jason — deus do Vento Oeste.
Favônio sorriu e fez uma reverência, nitidamente feliz por ter sido reconhecido.
— Você pode me chamar pelo meu nome romano, é claro, ou Zéfiro, se for grego. Não me importo com isso.
Nico pareceu muito preocupado com esse detalhe.
— Por que suas personalidades grega e romana não estão em conflito, como as dos outros deuses?
— Ah, tenho dores de cabeça às vezes — Favônio deu de ombros — Algumas manhãs acordo vestindo uma chiton grega quando tenho certeza de que fui dormir com meu pijama SPQR. Mas, principalmente, a guerra não me incomoda. Sou um deus menor, vocês sabem, e nunca fui realmente o centro das atenções. As batalhas entre vocês, semideuses, não me afetam tanto.
— Então... — Jason não tinha certeza se devia embainhar a espada. — O que faz aqui?
— Várias coisas! — disse Favônio. — Saio por aí com minha cesta de piquenique. Sempre carrego uma cesta cheia de frutas. Gostaria de uma pera?
— Estou satisfeito. Obrigado.
— Vejamos... antes eu estava tomando sorvete. Agora estou jogando esta argola de quoits.
Favônio rodou a argola de bronze no dedo indicador.
Jason não tinha ideia do que era quoit, mas tentou se concentrar.
— Quer dizer, por que você apareceu para nós? Por que nos trouxe a este porão?
— Ah! — Favônio assentiu. — O sarcófago de Diocleciano. Sim. Este foi o lugar de seu descanso final. Os cristãos o tiraram do mausoléu. Em seguida, alguns bárbaros destruíram o ataúde. Eu só queria lhes mostrar — ele estendeu as mãos, infeliz — que o que procuram não está aqui. Meu mestre o levou.
— Seu mestre?
Jason lembrou-se de um palácio flutuante em Pikes Peak, no Colorado, onde visitou (e quase não sobreviveu) o estúdio de um meteorologista maluco que alegava ser o mestre de todos os ventos.
— Por favor, me diga que seu mestre não é Éolo.
— Aquele cabeça de vento? — Favônio bufou. — Não, claro que não.
— Ele quer dizer Eros — a voz de Nico soava nervosa — Cupido, em latim.
Favônio sorriu.
— Muito bom, Nico di Angelo. A propósito, fico feliz em revê-lo. Faz tempo que não nos encontramos.
Nico franziu as sobrancelhas.
— Nunca encontrei você.
— Você nunca me viu — corrigiu o deus — mas o estive observando. Quando veio aqui, ainda menino, e várias outras vezes desde então. Sabia que acabaria voltando para olhar para o rosto de meu mestre.
Nico ficou ainda mais pálido do que o habitual. Seus olhos vasculharam o porão cavernoso, como se estivesse começando a se sentir em uma armadilha.
— Nico? — disse Jason. — Do que ele está falando?
— Não sei. Nada.
— Nada? — gritou Favônio. — A pessoa mais importante para você... lançada no Tártaro, e ainda assim não vai admitir a verdade?
Subitamente, Jason sentiu como se estivesse bisbilhotando a conversa alheia. A pessoa mais importante para você.
Ele se lembrou do que Piper lhe contara, sobre Nico gostar de Annabeth. Aparentemente, os sentimentos dele eram bem mais profundos do que apenas gostar.
— Só viemos por causa do cetro de Diocleciano — disse Nico, claramente ansioso para mudar de assunto — onde ele está?
— Ah... — Favônio meneou a cabeça com tristeza. — Achou que bastava enfrentar o fantasma de Diocleciano? Lamento que não, Nico. Suas provações serãomuito mais difíceis. Sabe, bem antes disto aqui ser o Palácio de Diocleciano, era a porta de entrada para a corte de meu mestre. Morei aqui durante eras, trazendo à presença de Cupido aqueles que procuravam o amor.
Jason não gostou da menção às difíceis provações. Não confiava naquele deus esquisito com a argola, as asas e a cesta de piquenique. Mas se lembrou de uma história antiga, algo que ouvira no Acampamento Júpiter.
— Como Psique, a esposa de Cupido. Você a levou para seu palácio.
Os olhos de Favônio brilharam.
— Muito bem, Jason Grace. Deste exato lugar, carreguei Psique com os ventos e a levei até os aposentos de meu mestre. Na verdade, é por isso que Diocleciano construiu o palácio dele aqui. Este lugar sempre foi agraciado pelo gentil Vento Oeste — ele abriu os braços — é um local de tranquilidade e amor em um mundo turbulento. Quando o palácio de Diocleciano foi saqueado...
— Você levou o cetro — concluiu Jason.
— Para mantê-lo em segurança — concordou Favônio — é um dos muitos tesouros de Cupido, uma lembrança de tempos melhores. Se vocês o quiserem... — o deus voltou-se para Nico — terão que enfrentar o deus do amor.
Nico encarou os raios de sol que atravessavam a janela, como se desejasse poder escapar por aquelas aberturas estreitas.
Jason não tinha certeza do que Favônio queria, mas se enfrentar o deus do amorsignificava forçar Nico a confessar de alguma forma qual era a garota de quem gostava, não parecia tão ruim.
— Nico, você pode fazer isso — disse Jason — talvez seja embaraçoso, mas é pelo cetro.
Nico não parecia convencido. Na verdade, dava a impressão de que ia vomitar. Mas ele endireitou a postura e concordou.
— Tem razão, eu... eu não tenho medo de um deus do amor.
Favônio abriu um largo sorriso.
— Excelente! Gostariam de fazer um lanche antes de irmos? — Pegou uma maçã verde da cesta e franziu as sobrancelhas. — Ah, droga. Sempre esqueço que meu símbolo é uma cesta de frutas verdes. Porque o vento da primavera não tem mais crédito? O verão fica com toda a diversão.
— Tudo bem — disse Nico rapidamente — apenas nos leve até Cupido.
Favônio girou a argola no dedo e o corpo de Jason se dissolveu no ar.

Capítulo XXXVI - Jason

JASON VIAJARA NO VENTO DIVERSAS vezes. Ser o vento era outra história.
Sentia-se fora de controle, com os pensamentos dispersos, sem separação entre o seu corpo e o resto do mundo. Imaginou se era assim que os monstros se sentiam quando eram derrotados, explodindo em pó, impotentes e disformes.
Jason podia sentir Nico próximo. O Vento Oeste levou-os ao céu acima de Split. Juntos, sobrevoaram colinas, antigos aquedutos romanos, rodovias e vinhedos. Quando se aproximaram das montanhas, Jason viu as ruínas de uma cidade romana espalhadas em um vale lá embaixo – paredes em ruínas, alicerces quadrados e estradas rachadas, tudo coberto de vegetação – parecendo um gigantesco jogo de tabuleiro coberto de musgo.
Favônio aterrissou-os no meio das ruínas, ao lado de uma coluna quebrada tão alta quanto uma sequoia.
O corpo de Jason se recompôs. Por um momento, pareceu-lhe ainda pior do que ser o vento, como se subitamente tivesse sido enrolado em um casaco de chumbo.
— É, corpos mortais são terrivelmente volumosos — disse Favônio, como se lesse seus pensamentos. O deus do Vento Oeste acomodou-se com a sua cesta de frutas em um muro perto e abriu as asas avermelhadas ao sol. — Honestamente, não sei como vocês suportam isso, dia após dia.
Jason investigou o entorno. A cidade aparentava ter sido enorme no passado. Dava para perceber as estruturas de templos e casas de banho, um anfiteatro semienterrado e pedestais vazios que outrora suportaram estátuas. Fileiras de colunas levavam a lugar nenhum. As velhas muralhas da cidade serpenteavam pela encosta como uma linha pedregosa costurando um tecido verde.
Existiam pontos de escavação em algumas áreas, mas a maior parte da cidade estava abandonada, como se tivesse sido abandonada à ação dos elementos nos últimos dois mil anos.
— Bem-vindos a Salona — disse Favônio — capital da Dalmácia! Local de nascimento de Diocleciano! Mas antes disso, muito antes disso, aqui era a casa de Cupido.
O nome ecoou como se vozes sussurrassem entre as ruínas.
Aquele lugar tinha algo que o fazia parecer ainda mais assustador do que o porão do palácio em Split. Jason nunca pensara muito em Cupido. Certamente nunca pensara em Cupido como assustador. Mesmo para os semideuses romanos, o nome trazia a lembrança de um tolo bebê alado com um arco e flecha de brinquedo, voando e sacudindo suas fraldas no Dia dos Namorados.
— Ah, mas ele não é assim — disse Favônio.
Jason estremeceu.
— Pode ler a minha mente?
— Não preciso — Favônio atirou o aro de bronze para o alto — todos têm a impressão errada de Cupido... até encontrarem com ele.
Nico encostou-se em uma coluna, as pernas visivelmente trêmulas.
— Ei, cara... — Jason andou em sua direção, mas Nico acenou para que se afastasse.
A grama ficou marrom e murcha sob os pés do semideus. O trecho morto se espalhou ao redor, como se veneno vazasse da sola de seus sapatos.
— Ah... — Favônio balançou a cabeça em sinal de simpatia — não o culpo por estar nervoso, Nico di Angelo. Sabe como eu acabei servindo a Cupido?
— Não sirvo a ninguém — murmurou Nico — especialmente a Cupido.
Favônio continuou como se não tivesse ouvido.
— Eu me apaixonei por uma criatura mortal chamada Jacinto. Ele era extraordinário.
— Ele...? — O cérebro de Jason ainda estava confuso por ter se tornado vento, de modo que demorou um segundo para processar aquilo. — Ah...
— É, Jason Grace — disse Favônio, arqueando uma sobrancelha — eu me apaixonei por um homem. Isso o choca?
Honestamente, Jason não tinha certeza. Tentava não pensar nas minúcias da vida amorosa dos deuses, não importando por quem eles se apaixonassem. Afinal, seu pai, Júpiter, não era exatamente um modelo de bom comportamento. Comparado a alguns dos escândalos amorosos do Olimpo sobre os quais ouvira falar, o fato do Vento Oeste se apaixonar por um mortal não lhe parecia muito chocante.
— Acho que não. Então... Cupido o atingiu com sua flecha e você se apaixonou.
Favônio riu com desdém.
— Você faz parecer tão banal. Ah, o amor nunca é banal. Veja, o deus Apolo também gostava de Jacinto. Ele alegava que eram apenas amigos. Não sei, não. Mas, certo dia me deparei com os dois juntos, jogando quoits...
Aquela palavra estranha outra vez.
— Quoits?
— Um jogo com esses aros — explicou Nico, embora sua voz soasse trêmula — como lançar ferraduras.
— Mais ou menos — interrompeu Favônio — de qualquer jeito, fiquei com ciúmes. Em vez de ir falar com eles e descobrir a verdade, mudei o vento e lancei um pesado anel de metal na cabeça de Jacinto e... bem. — o deus do vento suspirou — enquanto Jacinto morria, Apolo transformou-o em uma flor, o jacinto. Tenho certeza de que Apolo teria se vingado de mim, mas Cupido me ofereceu sua proteção. Fiz algo terrível, mas enlouqueci por amor, de modo que ele me poupou, com a condição de que trabalhasse eternamente para ele.
CUPIDO.
O nome ecoou entre as ruínas de novo.
— Essa é a minha deixa — disse Favônio, levantando-se — pense bem sobre como agir, Nico di Angelo. Não pode mentir para Cupido. Se deixar a raiva governá-lo... bem, o seu destino será ainda mais triste que o meu.
Jason sentia como se seu cérebro estivesse voltando a se transformar em vento. Não compreendia o que Favônio estava dizendo ou por que Nico parecia tão abalado, mas não tinha tempo para pensar naquilo. O deus do vento desapareceu em um redemoinho vermelho e dourado. O ar do verão subitamente tornou-se pesado. O chão estremeceu, e Jason e Nico sacaram as suas espadas.

* * *

Então.
A voz passou raspando pelo ouvido de Jason como uma bala. Quando ele se voltou, não havia ninguém ali.
Vocês vieram reivindicar o cetro.
Nico posicionou-se às suas costas, e, pela primeira vez, Jason ficou contente por ter a companhia do garoto.
— Cupido — chamou Jason — onde você está?
A voz riu. Definitivamente não soava como a de um anjinho bonitinho. Parecia profunda e melodiosa, mas também ameaçadora – como um tremor antes de um forte terremoto.
Onde você menos espera, respondeu Cupido. Como sempre acontece com o amor.
Algo trombou com Jason arremessando-o do outro lado da rua. Ele caiu sobre alguns degraus e se esparramou no chão de um porão romano escavado.
Achava que soubesse dissoJason Grace. A voz de Cupido rodopiou em volta dele. Você encontrou o verdadeiro amor, afinal de contas. Ou ainda duvida de si mesmo?
Nico desceu os degraus correndo.
— Você está bem?
Jason aceitou a mão estendida e se levantou.
— Estou. Só fui feito de otário.
Ah, você esperava que eu fosse justo? Cupido riu. Sou o deus do amor. Nunca sou justo.
Naquele momento, os sentidos de Jason estavam em alerta máximo. Sentiu o ar ondular quando uma flecha se materializou, disparada em direção ao peito de Nico. Jason interceptou-a com a espada e a desviou para o lado. A flecha explodiu contra a parede próxima, salpicando-os com estilhaços de calcário.
Eles subiram a escada correndo. Jason puxou Nico quando outra rajada de vento derrubou uma coluna que o teria esmagado.
— Esse cara é Amor ou Morte? — rosnou Jason.
Pergunte aos seus amigos, disse Cupido. Frank, Hazel e Percy conheceram o meu antagonista, Tânatos. Não somos tão diferentes. Só que a morte às vezes é mais gentil.
— Tudo que queremos é o cetro! — gritou Nico. — Estamos tentando deter Gaia. Você está do lado dos deuses ou não?
Uma segunda flecha atingiu o chão entre os pés de Nico, brilhando incandescente. Ele cambaleou para trás quando a flecha estourou em um gêiser de chamas.
O amor está em todos os lados, disse Cupido. E do lado de ninguém. Não pergunte o que o amor pode fazer por você.
— Ótimo — disse Jason — agora está recitando músicas bregas.
Movimento atrás dele: Jason girou, golpeando o ar com sua espada. A lâmina atingiu algo sólido. Ouviu um grunhido e atacou novamente, mas o deus invisível já não estava mais lá.
Sobre as pedras do calçamento, brilhava um rastro dourado de icor – o sangue dos deuses.
Muito bom, Jason, disse Cupido. Ao menos você pode sentir a minha presença. Um mero relance do amor verdadeiro é mais do que consegue a maioria dos heróis.
— Então, ganho o cetro? — perguntou Jason.
Cupido riu.
Infelizmente, você não poderia controlá-lo. Apenas um filho do Mundo Inferior poderia convocar as legiões mortas. E apenas um oficial romano poderia liderá-las.
— Mas...
Jason vacilou. Ele era um oficial. Era pretor. Então se lembrou de suas dúvidas quanto a que lugar pertencia. Em Nova Roma, oferecera sua posição para Percy Jackson. Será que isso o tornava indigno de liderar uma legião de fantasmas romanos?
Jason decidiu enfrentar o problema quando chegasse a hora.
— Nós resolvemos — disse ele — Nico pode invocar...
A terceira flecha zuniu sobre o ombro de Jason. Não conseguiu impedi-la. Nico ofegou quando o projétil se alojou no braço que segurava a espada.
— Nico!
O filho de Hades cambaleou. A seta se dissolveu, sem deixar sangue ou ferimento visível, mas o rosto do semideus estava retorcido de raiva e de dor.
— Chega de brincadeira! — gritou Nico. — Apresente-se!
É complicado olhar para a face do amor verdadeiro, disse Cupido.
Outra coluna tombou. Jason afastou-se.
Minha esposa Psique aprendeu esta lição, prosseguiu Cupido. Ela foi trazida para cá éons atrás, quando aqui era o meu palácio. Só nos encontrávamos no escuro. Ela foi advertida a nunca olhar para mim, e ainda assim não conseguiu suportar o mistério. Temia que eu fosse um monstro. Certa noite, acendeu uma vela e viu o meu rosto enquanto eu dormia.
— Você era assim tão feio?
Jason localizou a voz de Cupido na borda do anfiteatro, a uns vinte metros de distância, mas queria ter certeza.
O deus riu.
Acho que eu era bonito demais. Um mortal não pode contemplar a verdadeira forma de um deus sem sofrer as consequências. Minha mãe, Afrodite, amaldiçoou Psique por sua desconfiança. Minha pobre amante foi atormentada, forçada ao exílio e recebeu tarefas terríveis para provar ser digna. Chegou a ser enviada ao Mundo Inferior em uma missão para provar sua dedicação. Conseguiu voltar para o meu lado, mas sofreu muito.
Agora peguei você, pensou Jason.
Apontou a espada para o céu e um trovão sacudiu o vale. Um raio abriu uma cratera no lugar de onde vinha a voz.
Silêncio. Jason já estava pensando: Cara, isso realmente funcionou, quando uma força invisível o derrubou. Sua espada escorregou até o outro lado da rua.
Boa tentativa, disse Cupido, com a voz já distante, mas o amor não pode ser detectado tão facilmente.
Ao lado dele, um muro desabou. Jason conseguiu rolar para o lado por pouco.
— Pare com isso! — gritou Nico. — É a mim que você quer. Deixe-o em paz!
Os ouvidos de Jason zumbiram. Estava tonto de tanto que fora arremessado. Sua boca tinha gosto de pó calcário. Não entendia por que Nico achava ser o alvo principal, mas Cupido pareceu concordar.
Pobre Nico di Angelo. A voz do deus estava repleta de decepção. Não sabe o que você quermuito menos o que eu queroMinha amada Psique arriscou tudo em nome do amor. Era a única maneira de expiar a sua falta de fé. E você, o que arriscou em meu nome?
— Estive no Tártaro e voltei — rosnou Nico — você não me assusta.
Eu o assusto muito, muito mesmo. Encare-me. Seja honesto.
Jason se levantou.
Ao redor de Nico, o chão estremeceu. A relva murchou e as pedras racharam como se algo estivesse se movendo embaixo da terra, tentando abrir caminho até a superfície.
— Queremos o cetro de Diocleciano — disse Nico — não temos tempo para brincadeiras.
Brincadeiras? Cupido atingiu Nico, jogando-o de lado contra um pedestal de granito. O amor não é uma brincadeira! Não é a suavidade das flores! É trabalho pesado, uma busca que nunca termina. Exige tudo de você, especialmente a verdade. Somente então lhe concede recompensas.
Jason resgatou sua espada. Se aquele cara invisível era o Amor, Jason estava começando a pensar que o Amor era algo superestimado. Gostava mais da versão de Piper: atencioso, gentil e belo. Afrodite ele conseguia entender. Já Cupido parecia mais um bandido, um opressor.
— Nico, o que esse cara quer de você?
Diga-lhe, Nico di Angelo, replicou Cupido. Diga-lhe que você é um covarde, com medo de si mesmo e de seus sentimentos. Diga-lhe o verdadeiro motivo pelo qual fugiu do Acampamento Meio-Sangue, e por que está sempre sozinho.
Nico emitiu um grito gutural. O chão aos seus pés se abriu e esqueletos se arrastaram para fora: romanos mortos sem as mãos, crânios afundados, costelas partidas e mandíbulas soltas. Alguns estavam vestidos com os restos de suas togas. Outros traziam brilhantes peças de armadura penduradas ao peito.
Vai se esconder entre os mortos, como sempre faz?, provocou Cupido.
Ondas de escuridão emanavam do filho de Hades. Quando atingiram Jason, ele quase desmaiou, oprimido pelo ódio, pelo medo, pela vergonha...
Imagens cruzaram sua mente. Viu Nico e sua irmã em um penhasco nevado, no Maine, e Percy Jackson protegendo-os de um manticore. A espada de Percy brilhava no escuro. Fora o primeiro semideus que Nico vira em ação.
Mais tarde, no Acampamento Meio-Sangue, Percy pegou Nico pelo braço e prometeu manter sua irmã Bianca em segurança. Nico acreditou nele. Olhou em seus olhos verde-mar e pensou: ele não pode fracassar. É um herói de verdade. Percy era o jogo favorito de Nico, Mitomagia, trazido à realidade.
Jason viu o momento em que Percy voltou e disse para Nico que Bianca morrera. O garoto gritou e chamou-o de mentiroso. Ele se sentiu traído, mas ainda assim... quando os guerreiros esqueleto atacaram, não pôde deixá-los ferir Percy. Nico invocara a terra para engoli-los, e então fugiu, aterrorizado com seus próprios poderes, suas próprias emoções.
Jason viu mais uma dezena de cenas como esta do ponto de vista de Nico... E elas o atordoaram, deixando-o incapaz de se mover ou de falar.
Enquanto isso, os esqueletos romanos de Nico avançaram e agarraram algo invisível. Cupido lutou, empurrando os mortos, quebrando costelas e crânios, mas eles continuavam a surgir, prendendo os braços do deus.
Interessante!, disse Cupido. Você tem a força, afinal?
— Deixei o Acampamento Meio-Sangue por amor — disse Nico. — Annabeth... ela...
Ainda se escondendo, disse Cupido, partindo outro esqueleto em pedaços. Você não tem a força.
— Nico — Jason conseguiu dizer — está tudo bem. Eu entendo.
Nico o encarou com dor e aflição estampadas em seu rosto.
— Não — disse ele — você não tem como entender.
E assim você volta a fugir, repreendeu Cupido. De seus amigos, de si mesmo.
— Não tenho amigos! — gritou Nico. — Deixei o Acampamento Meio-Sangue porque não pertenço àquele lugar! Nunca pertencerei!
Os esqueletos haviam imobilizado Cupido, mas o deus invisível riu tão cruelmente que Jason desejou invocar outro raio. Infelizmente, duvidava que tivesse força.
— Deixe-o em paz, Cupido — reclamou Jason — isto não é...
Sua voz falhou. Queria dizer que aquilo não era problema do deus, mas percebeu que isso era exatamente problema de Cupido. Algo que Favônio dissera continuava a zumbir em seus ouvidos: Você está chocado?
A história de Psique finalmente fez sentido para ele: entendeu por que uma garota mortal teria tanto medo. Por que correria o risco de burlar as regras para olhar o rosto do deus do amor, temendo que ele pudesse ser um monstro.
Psique tinha razão. Cupido era um monstro. O Amor era o mais selvagem de todos os monstros.
A voz de Nico soou dolorida.
— E-eu não estava apaixonado por Annabeth.
— Você estava com ciúmes dela — disse Jason — é por isso que não queria ficar perto dela. Especialmente, era por isso que não queria ficar perto... dele. Isso explica tudo.
Toda a luta e negação de Nico pareceram se esvair ao mesmo tempo. A escuridão diminuiu. Os romanos mortos desmoronaram em pilhas de ossos e viraram pó.
— Eu me odiava — disse Nico — odiava Percy Jackson.
Cupido se tornou visível – um jovem magro, musculoso com asas brancas como a neve, cabelos lisos e negros, uma túnica branca simples e calça jeans. O arco e a aljava pendurados no seu ombro não eram de brinquedo. Eram armas de guerra. Seus olhos eram vermelhos como o sangue, como se todos os corações de Dia dos Namorados do mundo tivessem sido espremidos e destilados em uma mistura venenosa. Seu rosto era belo, mas também duro, tão difícil de olhar quanto um holofote. Observou Nico com satisfação, como se tivesse identificado o local exato onde sua próxima seta garantiria uma morte limpa.
— Tive uma queda por Percy — disse Nico — essa é a verdade. Esse é o grande segredo.
Ele olhou para Cupido.
— Feliz agora?
Pela primeira vez, o olhar de Cupido pareceu simpático.
— Ah, eu não diria que o Amor sempre o faz feliz. — Sua voz soava menor, muito mais humana. — Às vezes, ele o faz ficar incrivelmente triste. Mas ao menos agora você enfrentou isso. Essa é a única maneira de me vencer.
Cupido dissolveu-se em vento.
No chão, no lugar onde estivera, havia um cajado de marfim de um metro de comprimento, com um globo escuro de mármore polido do tamanho de uma bola de beisebol no topo, aninhado nas costas de três águias romanas de ouro. O cetro de Diocleciano.
Nico se ajoelhou e pegou o cetro. Olhou para Jason, como se à espera de um ataque.
— Se os outros descobrirem...
— Se os outros descobrirem — disse Jason — você terá mais pessoas a apoiá-lo, capazes de liberar a fúria dos deuses contra quem lhe trouxer problemas.
Nico fez uma careta. Jason ainda sentia a raiva e o ressentimento emanando dele.
— Mas a decisão é sua — acrescentou Jason — a decisão de compartilhar ou não é sua. Só posso dizer que...
— Não me sinto mais assim — murmurou Nico — quer dizer... Desisti de Percy. Eu era jovem e impressionável, e eu, eu não...
Sua voz falhou, e Jason viu que o garoto estava prestes a ficar com os olhos marejados. Se Nico realmente desistira de Percy ou não, Jason não podia imaginar o que ele passara durante todos aqueles anos, mantendo um segredo que teria sido impensável compartilhar na década de 1940, negando quem ele era, sentindo-se completamente sozinho – ainda mais isolado do que os outros semideuses.
— Nico — disse ele gentilmente — já vi um monte de atos de coragem. Mas o que você fez? Esse talvez tenha sido o mais corajoso de todos.
Nico ergueu a cabeça, incerto.
— Devemos voltar ao navio.
— É. Podemos voar...
— Não — anunciou Nico — desta vez viajaremos nas sombras. Quero ficar longe dos ventos por um bom tempo.

Capítulo XXXVII - Annabeth

FICAR CEGA FOI BEM RUIM. Ser separada de Percy foi horrível.
Mas agora que conseguia enxergar de novo, vê-lo morrer lentamente envenenado por sangue de górgona sem poder fazer nada para impedir era a pior maldição de todas.
Bob carregava Percy em seu ombro como se fosse um saco de equipamentos esportivos, e o gatinho esqueleto Bob Pequeno se aninhou nas costas de Percy, ronronando. Bob caminhava a passos rápidos, mesmo para um titã, o que tornava praticamente impossível para Annabeth acompanhá-lo.
Parecia que seus pulmões não iam aguentar mais. Sua pele voltou a ficar coberta por bolhas. Provavelmente precisava de mais um gole de fogo líquido, mas o Rio Flegetonte tinha ficado para trás. Seu corpo estava tão cansado e dolorido que ela havia esquecido como era não sentir dor.
— Falta muito?
— Demais — respondeu Bob — mas talvez não.
Grande ajuda, pensou Annabeth, mas estava praticamente sem fôlego para falar.
A paisagem mudou de novo. Ainda estavam descendo a encosta, o que deveria facilitar a locomoção; mas o solo se inclinava justamente no ângulo errado; íngreme demais para correr, traiçoeiro demais para poderem baixar a guarda por um momento sequer. A superfície era de cascalho solto em alguns pontos e coberta de limo em outros. Annabeth precisava desviar de pelos curtos afiados o suficiente para atravessarem seu pé, e montes de... bem, não eram exatamente rochas. Pareciam mais verrugas do tamanho de melancias. Se Annabeth tivesse que imaginar onde estava (e não queria fazer isso), diria que Bob a estava conduzindo pelo enorme intestino do Tártaro.
O ar estava mais pesado e fedia a esgoto. Talvez a escuridão não estivesse tão densa quanto antes, mas só conseguia ver Bob por causa do brilho dos cabelos prateados e da ponta de sua lança. Percebeu que ele não a retraíra desde que enfrentaram as arai. Isso não a tranquilizou nem um pouco.
Percy não parava quieto, o que fazia o gatinho mudar de posição para se ajeitar nas costas dele. De vez em quando, seu namorado gemia de dor, e Annabeth sentia um forte aperto no coração.
Ela se lembrou de quando tomou chá com Piper, Hazel e Afrodite em Charleston. Deuses, isso parecia ter acontecido havia tanto tempo... Afrodite tinha suspirado de saudade dos bons tempos da velha Guerra Civil, falando sobre como o amor e a guerra sempre caminhavam juntos.
A deusa tinha apontado para Annabeth com orgulho, usando-a como exemplo para as outras garotas: uma vez prometi a ela que ia tornar sua vida amorosa interessante. E não foi o que fiz?
Annabeth teve vontade de esganar a deusa do amor. Já vivera coisas interessantes mais do que o suficiente. Agora só queria um final feliz. Sem dúvida isso era possível, independentemente do que as lendas diziam sobre heróis trágicos. Tinha que haver exceções, certo? Se o sofrimento fosse recompensado, então ela e Percy mereciam receber o grande prêmio.
Pensou nas fantasias de Percy sobre Nova Roma. Os dois poderiam morar lá e frequentar a faculdade juntos. No início, ficou horrorizada com a ideia de viver entre os romanos. Ainda se ressentia deles por a terem afastado de Percy.
Agora aceitaria essa oferta com prazer. Se sobrevivessem àquilo. Se Reyna tivesse recebido a mensagem. Se um milhão de coisas impossíveis acontecessem.
Pare com isso, repreendeu-se ela.
Tinha que se concentrar no presente, em pôr um pé na frente do outro, em completar aquela caminhada intestinal morro abaixo uma verruga gigante de cada vez. Seus joelhos estavam fracos, como se estivessem a ponto de arrebentar. Percy gemia e murmurava algo que ela não conseguia entender.
De repente, Bob parou.
— Vejam.
Mais à frente, no escuro, o terreno se aplainava e terminava em um pântano negro. Pairava no ar uma névoa sulfúrica amarela. Mesmo sem luz solar, havia plantas de verdade: moitas de juncos, árvores esqueléticas sem folhas e até algumas flores de aparência doentia desabrochavam naquele lugar tétrico. Trilhas escorregadias serpenteavam entre os poços de piche borbulhantes. Impressas no lamaçal bem à frente de Annabeth havia pegadas do tamanho de tampas de latas de lixo, com dedos compridos e pontudos.
Desanimada, Annabeth tinha quase certeza de a quem elas pertenciam.
— Drakon?
— É — Bob sorriu para ela — isso é bom.
— Hã... por quê?
— Porque estamos perto.
Bob entrou no pântano.
Annabeth teve vontade de gritar. Odiava estar à mercê de um titã, ainda mais de um que começava a recuperar a memória e os estava levando até um gigante “bom”. Não gostava nem um pouco da ideia de atravessar um pântano que era obviamente território de um drakon.
Mas Bob estava com Percy. Se ela hesitasse, ia perdê-los no escuro. Por isso, correu atrás dele, pulando de uma faixa de musgo para outra e rezando a Atena para não cair em algum buraco.
Pelo menos o terreno obrigava Bob a ir mais devagar. Quando Annabeth o alcançou, não foi difícil ficar bem atrás dele e de olho em Percy, que delirava e estava com a testa quente demais. Várias vezes balbuciou Annabeth, e ela teve que se segurar para não chorar. O gatinho apenas ronronou mais alto e procurou uma posição mais confortável.
Finalmente a névoa amarela se abriu e revelou uma clareira lamacenta que parecia uma ilha no meio do pântano repugnante. O solo estava pontilhado de árvores decrépitas e montes de verrugas. No meio, havia uma enorme cabana de teto abobadado feita de ossos e couro esverdeado. Uma coluna de fumaça se erguia de um buraco no teto da cabana. A entrada estava coberta por cortinas de pele escamosa de réptil, e era ladeada por duas tochas feitas de fêmures colossais que queimavam com uma luz forte amarela.
O que mais chamou a atenção de Annabeth foi o crânio de drakon. A cinquenta metros, mais ou menos entre eles e a cabana, um carvalho enorme projetava-se do chão a um ângulo de 45 graus. As mandíbulas de um crânio de drakon envolviam o tronco como se a árvore fosse a língua do monstro morto.
— É — murmurou Bob — isso é muito bom.
Nada naquele lugar parecia bom para Annabeth.
Antes que ela pudesse protestar, Bob Pequeno arqueou as costas e chiou. Atrás deles, um rugido poderoso ecoou pelo pântano, um som que Annabeth ouvira pela última vez na Batalha de Manhattan.
Ela se virou e viu o drakon correndo na direção deles.

Capítulo XXXVIII - Annabeth

A PIOR PARTE?
O drakon com certeza era a coisa mais bonita que Annabeth vira desde que caíra no Tártaro. Suas escamas tinham manchas verdes e amarelas como o chão de uma floresta coberto de folhas salpicadas de luz do sol. Seus olhos reptilianos tinham o tom verde-mar favorito de Annabeth, como os de Percy. Quando as escamas em torno da cabeça se levantaram, ela não pôde deixar de pensar que aquele monstro prestes a matá-los tinha uma aparência nobre e maravilhosa.
Ele era praticamente do tamanho de um trem de metrô. Suas garras enormes afundavam na lama conforme avançava, agitando a cauda. O drakon sibilou e lançou jatos de veneno verde que fumegavam ao cair no repugnante chão lamacento e incendiavam poços de piche, o que deixou o ar com o aroma de pinho fresco e gengibre. O monstro até cheirava bem. Como a maioria dos drakons, não tinha asas, era mais longo e mais parecido com uma cobra do que com um dragão. E pelo visto, estava faminto.
— Bob — disse Annabeth — o que vamos ter que enfrentar?
— Um drakon maeônio — disse Bob — da Meônia.
Outra informação super útil. Annabeth teria acertado a cabeça de Bob com sua própria vassoura se conseguisse levantá-la.
— Há alguma forma de matá-lo?
— Nós? — disse Bob. — Não.
O drakon rugiu como se quisesse deixar isso bem claro e encheu o ar de mais veneno com cheiro de pinho e gengibre, o que teria sido um excelente perfume para aromatizadores de carros.
— Leve Percy para um lugar seguro — instruiu Annabeth — vou distraí-lo.
Não tinha ideia de como ia fazer isso, mas era sua única opção. Não podia deixar Percy morrer, não se ainda estivesse de pé.
— Não precisa — disse Bob — a qualquer momento...
— ROOOOOOAAARRR!
Annabeth se virou no instante em que o gigante saía de sua cabana.
Ele tinha mais de cinco metros, a altura típica de um gigante. A parte superior de seu corpo era humanoide; e as pernas, escamosas e reptilianas, como as de um dinossauro bípede. Não tinha arma. Em vez de armadura, vestia apenas uma túnica feita com peles de carneiro e retalhos de couro esverdeado. Sua pele era vermelho-cereja; a barba e o cabelo, ruivos, estavam entrelaçados com tufos de grama, folhas e flores do pântano.
Ele gritou em desafio, mas felizmente não estava olhando para Annabeth. Bob a tirou do caminho quando o gigante correu na direção do drakon.
Seguiu-se uma bizarra cena natalina de combate, o vermelho contra o verde. O drakon expeliu veneno. O gigante se esquivou com um salto, agarrou o carvalho e o arrancou do chão, com raízes e tudo. O crânio velho se desfez em pó quando o gigante ergueu a árvore como faria com um taco de beisebol.
A cauda do drakon se enroscou na cintura do gigante e o puxou para mais perto de suas presas. Mas assim que o gigante ficou a seu alcance, enfiou a árvore na garganta do monstro.
Annabeth esperava nunca mais ter que testemunhar uma cena tão horrível. A árvore perfurou a garganta do drakon e o empalou no chão. As raízes começaram a se mover e se arraigaram ao tocar o chão, fixando o carvalho de um modo tão firme que a árvore parecia estar naquele mesmo ponto havia séculos. O drakon se sacudia e estrebuchava sem parar, mas foi rapidamente imobilizado.
O gigante, então, socou com toda a força o pescoço do drakon. CRACK. O monstro parou imediatamente de se mover. Começou a se desfazer e deixou apenas restos de ossos, carne e escamas, e um novo crânio de drakon passou a envolver o carvalho.
Bob deu um grunhido.
— Boa!
O gatinho ronronou em aprovação e começou a limpar as patas.
O gigante chutou os restos do drakon e os examinou com atenção.
— Não tem ossos bons — reclamou — queria uma bengala nova. Humf. Mas tem pele boa para a latrina.
Arrancou parte das dobras de pele macia que havia em torno do pescoço do drakon e as enfiou no cinto.
— Hã... — Annabeth teve vontade de perguntar se a ideia do gigante era usar couro de drakon como papel higiênico, mas achou melhor não fazê-lo — Bob, você podia nos apresentar?
— Annabeth... — Bob deu um tapinha nas pernas de Percy. — Este é Percy.
Annabeth esperava que o titã só estivesse brincando com ela, apesar de a expressão de Bob não revelar nada.
Ela cerrou os dentes.
— Estou falando do gigante. Você prometeu que ele ia ajudar.
— Prometeu? — O gigante deixou de lado o crânio e voltou sua atenção para Bob. Seus olhos se apertaram sob as sobrancelhas densas e ruivas. — Uma promessa é algo importante. Por que Bob prometeria que eu ia ajudar?
Bob pareceu desconfortável. Titãs eram assustadores, mas era a primeira vez que Annabeth via um deles ao lado de um gigante. Em comparação ao matador de drakons, Bob parecia um filhotinho desamparado.
— Damásen é um gigante bom — disse Bob — ele é pacífico. E sabe curar venenos.
Annabeth observou o gigante Damásen, que agora estava arrancando pedaços de carne sangrenta da carcaça do drakon com as próprias mãos.
— Pacífico. É, estou vendo.
— Carne boa para o jantar — Damásen se aprumou e estudou Annabeth como se ela fosse outra fonte de proteína em potencial — entrem. Hoje vamos ter ensopado. Depois falamos dessa promessa.

Capítulo XXXIX - Annabeth

ACONCHEGANTE.
Annabeth nunca pensou que descreveria um lugar no Tártaro assim, mas, apesar de a cabana do gigante ser do tamanho de um planetário e feita de ossos, lama e pele de drakon, ela era sem dúvida aconchegante.
No centro queimava uma fogueira feita de ossos e piche; apesar disso, a fumaça era branca e sem cheiro, e saía através da abertura no meio do teto. O chão estava coberto com grama seca do pântano e uns trapos de lã cinza. De um lado havia uma cama enorme feita de peles de carneiro e couro de drakon. Do outro, penduradas em prateleiras e ganchos havia plantas secando, couro curtido e o que pareciam tiras de carne seca de drakon. Todo o lugar cheirava a ensopado, fumaça, manjericão e tomilho.
A única coisa que preocupava Annabeth era o rebanho de carneiros amontoado em um curral nos fundos da cabana.
A garota se lembrou da caverna de Polifemo, o ciclope, que devorava semideuses e carneiros sem distinção. Ela se perguntou se os gigantes teriam um gosto parecido.
Parte dela estava tentada a sair dali correndo, no entanto, Bob já tinha posto Percy na cama do gigante, onde ele quase desaparecia no meio da lã e do couro. Bob Pequeno saltou de cima de Percy e em seguida se enfiou nos cobertores, ronronando com tamanha força que a cama passou a tremer como se fosse uma cadeira massageadora.
Damásen foi até a fogueira. Jogou a carne de drakon em uma panela pendurada que parecia feita com o crânio de um velho monstro, então pegou uma concha e começou a mexer. Annabeth não queria ser o próximo ingrediente de seu ensopado, mas tinha ido até lá por uma razão. Por isso, respirou fundo e caminhou decidida até o gigante.
— Meu amigo está morrendo. Você pode curá-lo ou não?
A voz dela vacilou na palavra amigo. Percy era muito mais que isso. Nem namorado era o suficiente para descrever a relação deles. Os dois tinham passado por muita coisa juntos. Àquela altura, Percy fazia parte dela, às vezes uma parte irritante, é claro, mas sem dúvida uma parte sem a qual não podia viver.
Damásen olhou para ela, franzindo a testa e as grossas sobrancelhas ruivas. Annabeth tinha conhecido muitos humanoides assustadores antes, mas Damásen a perturbava de um modo diferente. Não parecia hostil. Ele irradiava pesar e amargura, como se estivesse tão ocupado com a própria infelicidade que se ressentia por Annabeth tentar fazê-lo dar atenção a outra coisa.
— Não costumo ouvir essas palavras no Tártaro — resmungou o gigante. — Amigo. Promessa.
Annabeth cruzou os braços.
— E sangue de górgona? Você conhece uma cura, ou Bob superestimou seus talentos?
Provocar um matador de drakons de mais de cinco metros de altura provavelmente não era uma estratégia muito inteligente, mas Percy estava morrendo. Ela não tinha tempo para diplomacia.
Damásen a olhou de cara feia.
— Você está duvidando de minhas habilidades? Uma humana quase morta chega se arrastando no meu pântano e duvida de minhas habilidades?
— É — disse ela.
— Humf — Damásen entregou a concha a Bob — mexa.
Enquanto Bob cuidava do ensopado, Damásen remexeu em seus ganchos e prateleiras e pegou várias folhas e raízes. Jogou um punhado de plantas na boca, mastigou-o e então o cuspiu em um pedaço de lã.
— Caneca de caldo — ordenou Damásen.
Bob pôs algumas conchas do caldo do ensopado em uma cabaça vazia. Ele a entregou a Damásen, que jogou a bola nojenta que tinha mastigado no caldo e o mexeu com o dedo.
— Sangue de górgona — murmurou ele — isso está longe de ser um desafio para meus talentos.
Foi devagar até a cama e pôs Percy sentado com apenas uma das mãos. Bob Pequeno, o gatinho, farejou o caldo e chiou. Arranhou os lençóis como se quisesse enterrá-lo.
— Você vai dar isso para ele beber? — perguntou Annabeth.
O gigante olhou irritado para ela.
— Quem é o curandeiro aqui? Você?
Annabeth calou a boca. Observou enquanto o gigante fez Percy beber o caldo. Damásen o tratava com uma delicadeza surpreendente, murmurando palavras de encorajamento que ela não conseguia entender direito.
A cada gole, a cor de Percy melhorava. Ele bebeu tudo, e seus olhos piscaram e abriram. Ele olhou ao redor com uma expressão atônita, viu Annabeth e lhe deu um sorriso bêbado.
— Me sinto ótimo.
Seus olhos giraram nas órbitas. Caiu de costas na cama e começou a roncar.
— Algumas horas de sono — anunciou Damásen — ele vai ficar como novo.
Annabeth deu um suspiro aliviado.
— Obrigada.
Damásen a encarou com tristeza.
— Não me agradeça. Vocês ainda estão condenados. E eu cobro por meus serviços.
Annabeth engoliu em seco.
— Hã... que tipo de pagamento?
— Uma história — os olhos do gigante brilharam — o Tártaro é muito entediante. Você pode me contar a história enquanto comemos, hein?

* * *

Annabeth se sentiu desconfortável contando seus planos a um gigante.
Mesmo assim, Damásen era um bom anfitrião. Ele salvara Percy. O ensopado de carne de drakon estava excelente (especialmente quando comparado ao fogo líquido). Sua cabana era quente e confortável, e pela primeira vez, desde que caíram no Tártaro, Annabeth sentiu que podia relaxar. O que era irônico, já que estava jantando com um titã e um gigante.
Contou a Damásen sobre sua vida e as aventuras com Percy. Explicou como Percy tinha conhecido Bob, apagado sua memória no Rio Lete e o deixado sob os cuidados de Hades.
— Percy estava tentando fazer uma coisa boa — garantiu a Bob — ele nunca pensou que Hades fosse ser tão canalha.
Aquilo não soou convincente nem para ela. Hades sempre tinha sido um canalha. Ela pensou no que as arai haviam dito, em como Nico di Angelo foi a única pessoa a visitar Bob no palácio do Mundo Inferior. Nico era um dos semideuses menos amistosos e extrovertidos que Annabeth conhecia. Mesmo assim, tinha sido bom com Bob. E ao convencer o titã de que Percy era seu amigo, Nico sem querer salvara a vida deles. Annabeth se perguntou se algum dia ia conseguir entender aquele cara.
Bob lavou sua tigela com o produto de limpeza e um trapo.
Damásen gesticulou com sua colher encorajadoramente.
— Continue a história, Annabeth Chase.
Ela contou sobre sua jornada no Argo II, mas quando chegou na parte sobre como deveriam impedir o despertar de Gaia, vacilou.
— Ela é, hum... ela é sua mãe, certo?
Damásen raspou sua tigela. Seu rosto era coberto por velhas queimaduras de veneno, marcas profundas e cicatrizes grossas, por isso parecia a superfície de um asteroide.
— É. E Tártaro é meu pai. — Ele fez um gesto amplo mostrando a cabana. — Como pode ver, fui uma decepção para meus pais. Eles esperavam... mais de mim.
Annabeth ainda não conseguia acreditar que estava tomando sopa com um homem de pernas de lagarto de cinco metros de altura que era filho da Terra e das Profundezas do Tártaro. Já era difícil imaginar os deuses olimpianos como pais, mas pelo menos eles tinham aparência humana. Já os deuses primordiais, como Gaia e Tártaro... Como você podia sair de casa e ser independente de seus pais quando eles, literalmente, englobavam o mundo inteiro?
— Então... Você não se importa que a gente esteja em guerra com sua mãe?
Damásen bufou como um touro.
— Boa sorte. No momento é com meu pai que devem se preocupar. Se ele está contra vocês, então não têm a menor chance de sobreviver.
De repente, Annabeth perdeu a fome. Pôs sua tigela no chão. Bob Pequeno se aproximou para investigá-la.
— Como assim, contra nós? — perguntou ela.
— Tudo isso — Damásen quebrou um osso de drakon e usou uma lasca para palitar os dentes — tudo o que você vê é o corpo de Tártaro, ou pelo menos uma manifestação dele. Ele sabe que vocês estão aqui, e tenta deter seu avanço a cada passo. Meus irmãos estão caçando vocês. É incrível que tenham sobrevivido até agora, mesmo com a ajuda de Jápeto.
Bob franziu a testa ao ouvir seu nome.
— Os derrotados estão atrás de nós, é. Agora devem estar chegando bem perto.
Damásen cuspiu fora o palito de dentes.
— Posso ocultar seu rastro por algum tempo, o suficiente para vocês descansarem. Tenho poder neste pântano. Mas, no fim, eles vão alcançar vocês.
— Meus amigos precisam chegar às Portas da Morte — disse Bob — é lá que fica a saída.
— Impossível — murmurou Damásen — as portas são bem guardadas demais.
Annabeth inclinou-se para a frente.
— Mas você sabe onde elas ficam?
— É claro. Todo o Tártaro corre para um lugar: seu coração. É onde ficam as Portas da Morte. Mas vocês não vão conseguir chegar lá vivos só com Jápeto.
— Então venha com a gente — pediu Annabeth — ajude.
— HA!
Annabeth sobressaltou-se.
Na cama, Percy delirava em seu sono:
— Ha, ha, ha.
— Filha de Atena — disse o gigante — não sou seu amigo. Já ajudei mortais uma vez, e veja o que me aconteceu.
— Você ajudou mortais? — Annabeth sabia muito sobre lendas gregas, mas o nome Damásen não lhe dizia nada — eu... eu não entendo.
— História ruim — explicou Bob — gigantes bons têm histórias ruins. Damásen foi criado para se opor a Ares.
— É — confirmou o gigante — como todos os meus irmãos, nasci para reagir a determinado deus. Meu inimigo era Ares. Mas Ares era o deus da guerra. Por isso, quando nasci...
— Você era o seu oposto — arriscou Annabeth — você era pacífico.
— Pelo menos para um gigante — respondeu Damásen com um suspiro — andei sem rumo pelos campos da Meônia, a terra que vocês agora chamam de Turquia. Cuidava de meus carneiros e colhia minhas ervas. Era uma vida boa. Mas não queria combater os deuses. Minha mãe e meu pai me amaldiçoaram por isso. E o insulto final: certo dia, um drakon maeônio matou um pastor humano, um amigo meu, por isso cacei a criatura e a matei, cravando uma árvore em sua garganta. Usei o poder da terra para fazer as raízes da árvore tornarem a crescer, e plantei o drakon firmemente no chão. Queria garantir que ele não aterrorizasse mais os mortais. Foi um feito que Gaia não poderia perdoar.
— O fato de ter ajudado alguém?
— É — Damásen pareceu envergonhado — Gaia abriu a terra e fui consumido, exilado aqui na barriga do meu pai, Tártaro, onde se juntam todos os destroços inúteis... todas as criações com as quais ele não se importa — o gigante tirou uma flor do cabelo e a olhou distraído — eles me deixaram viver, cuidando de meus carneiros e colhendo minhas ervas, para que eu aprendesse como era desprezível a vida que havia escolhido. Todos os dias... ou o que conta como dia neste lugar sem luz... o drakon maeônio se recompõe e me ataca. Matá-lo é minha tarefa por toda a eternidade.
Annabeth olhou ao redor da cabana, tentando imaginar há quantas eras Damásen estava exilado ali, matando o drakon e recolhendo seus ossos, couro e carne, sabendo que ele voltaria a atacar no dia seguinte. Mal conseguia imaginar sobreviver a uma semana no Tártaro. Exilar o próprio filho ali por séculos... era de uma crueldade inimaginável.
— Desfaça a maldição — disse de repente — venha com a gente.
Damásen riu com amargura.
— Pensa que é tão fácil? Não acha que já tentei deixar este lugar? É impossível. Não importa para que direção eu viaje, sempre acabo voltando. O pântano é a única coisa que conheço... o único destino que consigo imaginar. Não, pequena semideusa. Fui vencido por minha maldição. Não me resta nenhuma esperança.
— Nenhuma esperança — repetiu Bob.
— Deve haver um modo — Annabeth não podia aguentar a expressão no rosto do gigante, que lembrava a de seu pai, nas poucas vezes em que confessara ainda amar Atena. Ele ficava extremamente triste e abatido, desejando algo que sabia ser impossível — Bob tem um plano para chegar às Portas da Morte — insistiu ela — ele disse que podíamos nos esconder em algum tipo de Névoa da Morte.
— Névoa da Morte? — Damásen olhou de cara feia para Bob. — Você os levaria até Akhlys?
— É o único jeito — defendeu-se Bob.
— Vocês vão morrer — disse Damásen — uma morte dolorosa. No escuro. Akhlys não confia em ninguém, não ajuda ninguém.
Bob parecia querer discutir, mas cerrou os lábios e ficou em silêncio.
— Há algum outro jeito? — perguntou Annabeth.
— Não — admitiu Damásen — a Névoa da Morte... esse é o melhor plano. Infelizmente, é um péssimo plano.
Annabeth sentia como se estivesse pendurada no abismo outra vez, sem conseguir se içar pela borda, sem conseguir continuar se segurando... sem boas opções.
— Mas não acha que vale a pena tentar? — perguntou ela. — Você podia voltar para o mundo mortal. Podia ver o sol outra vez.
Os olhos de Damásen pareciam as órbitas do crânio do drakon: escuros e vazios, destituídos de qualquer esperança. Ele jogou um osso quebrado no fogo e ficou de pé com as costas bem retas, um enorme guerreiro vermelho vestindo pele de carneiro e couro de drakon, com flores secas e ervas nos cabelos. Annabeth podia ver como ele era o antiAres. Ares era o pior deus, temperamental e violento. Damásen era o melhor gigante, bondoso e prestativo... e por isso tinha sido condenado ao tormento eterno.
— Durmam um pouco — o gigante falou — vou preparar suprimentos para sua viagem. Sinto muito, mas não posso fazer mais nada.
Annabeth quis contestar, mas assim que ouviu a palavra dormir foi traída por seu corpo, apesar de sua decisão anterior de nunca mais dormir no Tártaro. Estava de barriga cheia. O crepitar do fogo era agradável. As ervas penduradas a faziam lembrar das colinas em torno do Acampamento Meio-Sangue no verão, quando os sátiros e náiades colhiam plantas silvestres nas tardes tranquilas.
— Talvez dormir um pouco — concordou ela.
Bob a pegou como se fosse uma boneca de pano. Ela não protestou. Ele a pôs ao lado de Percy na cama do gigante, e ela fechou os olhos.

Capítulo XL - Annabeth

ANNABETH ACORDOU OLHANDO PARA AS sombras que dançavam no teto da cabana. Não tivera nenhum sonho. Isso era tão estranho que não sabia se estava realmente acordada.
Deitada ali, com Percy roncando a seu lado, e Bob Pequeno ronronando em cima de sua barriga, ouviu Bob e Damásen conversando.
— Você não contou a ela — disse Damásen.
— Não — admitiu Bob — ela já está com medo.
O gigante resmungou.
— E é para estar. E se você não conseguir guiá-los além da Noite?
Damásen disse “Noite” como se fosse um nome próprio... um nome maligno.
— Tenho que conseguir.
— Por quê? O que os semideuses fizeram por você? Apagaram seu velho eu, tudo o que você era. Nós, titãs e gigantes... devíamos ser os inimigos dos deuses e de seus filhos. Não devíamos?
— Então por que você curou o garoto?
Damásen suspirou.
— Nem eu sei. Talvez porque a garota tenha me desafiado, ou talvez porque... acho esses dois semideuses intrigantes. São muito resistentes para terem chegado tão longe. Isso é admirável. Mesmo assim, como podemos ajudá-los mais? Não é nosso destino.
— Talvez — respondeu Bob, sentindo-se desconfortável — mas... você gosta de seu destino?
— Que pergunta. Será que alguém gosta de seu destino?
— Eu gostava de ser Bob — murmurou — antes de começar a me lembrar...
— Hum.
Annabeth ouviu um ruído, como se Damásen estivesse enchendo uma bolsa de couro.
— Damásen, você se lembra do sol? — perguntou o titã.
O ruído parou. Annabeth ouviu o gigante suspirar outra vez.
— Lembro. Era amarelo. Quando tocava o horizonte, deixava o céu com cores bonitas.
— Tenho saudade do sol — disse Bob — das estrelas, também. Queria dar um oi para as estrelas outra vez.
— Estrelas... — Damásen pronunciou a palavra como se tivesse esquecido seu significado. — Ah, é. Elas criavam formas no céu noturno — ele jogou no chão algo que caiu com um baque surdo — ah. Essa conversa não vai levar a nada. Não podemos...
A distância, o drakon maeônio rugiu.
Percy acordou e se sentou imediatamente.
— O quê? O que... onde... o quê?
— Está tudo bem.
Annabeth tocou seu braço.
Quando o garoto compreendeu que estavam deitados na cama de um gigante com um gato esqueleto, pareceu mais confuso que nunca.
— Esse barulho... onde estamos?
— Do que consegue lembrar?
Percy franziu a testa. Seus olhos pareciam alertas. Todos os seus ferimentos haviam desaparecido. Tirando as roupas esfarrapadas e algumas camadas de terra e fuligem, ele parecia nunca ter caído no Tártaro.
— Eu... as velhas demônios... e depois... Pouca coisa.
Damásen surgiu ao lado da cama.
— Não há tempo, pequenos mortais. O drakon está voltando. Temo que seu rugido atraia os outros, meus irmãos que estão atrás de vocês. Vão chegar aqui em poucos minutos.
O coração de Annabeth passou a bater mais rápido.
— O que vai dizer a eles quando chegarem aqui?
Damásen torceu a boca.
— O que eu poderia contar? Nada importante, desde que vocês já tenham partido.
Jogou para eles duas sacolas de couro de drakon.
— Roupas, comida e bebida.
Bob levava uma sacola parecida, mas maior. Estava apoiado em sua vassoura, olhando para Annabeth como se ainda estivesse refletindo sobre as palavras de Damásen: O que os semideuses fizeram por você? Eram inimigos, inimigos imortais.
De repente, Annabeth foi surpreendida por um pensamento tão claro e afiado que parecia uma lâmina da própria Atena.
— A Profecia dos Sete — disse ela.
Percy já tinha descido da cama gigantesca e estava colocando a sacola no ombro. Ele a olhou com expressão séria.
— O que tem ela?
Annabeth segurou a mão de Damásen, o que fez o gigante se sobressaltar. Ela franziu a testa. Sua pele era áspera como pedra.
— Você precisa vir com a gente — suplicou ela — a profecia diz inimigos com armas às Portas da Morte. Achava que isso significava gregos e romanos, mas não. Somos nós, semideuses, um titã e um gigante. Precisamos de você para fechar as Portas!
O drakon rugiu lá fora, cada vez mais perto. Damásen retirou a mão da de Annabeth com delicadeza.
— Não, menina — murmurou ele — minha maldição é aqui. Não posso escapar dela.
— Pode, pode, sim — disse Annabeth — não enfrente o drakon. Pense em um modo de romper o ciclo! Encontre outro destino.
Damásen sacudiu a cabeça.
— Mesmo que pudesse, não consigo deixar este pântano. É o único destino que consigo visualizar.
A mente de Annabeth era um turbilhão.
— Existe outro destino. Olhe para mim! Lembre-se do meu rosto. Quando estiver pronto, me procure. Vamos levá-lo para o mundo mortal conosco. Você vai poder ver a luz do sol e as estrelas.
O chão estremeceu. O drakon estava perto, atravessando o pântano com passos pesados, destruindo árvores e musgo com seu jato de veneno. Mais longe, Annabeth ouviu a voz do gigante Polibotes, incentivando seus seguidores.
— O FILHO DO DEUS DO MAR! ELE ESTÁ PERTO!
— Annabeth — insistiu Percy — é a nossa deixa para ir embora.
Damásen pegou algo em seu cinto. Em sua mão enorme, a pequena lasca branca parecia outro palito de dentes, mas quando ele a entregou a Annabeth, a garota percebeu que era uma espada... uma lâmina de osso de dragão mortalmente afiada, com uma empunhadura simples de couro.
— Um último presente para a filha de Atena — disse o gigante com sua voz retumbante — não posso mandá-la para a morte desarmada. Agora vão! Antes que seja tarde demais.
Annabeth teve vontade de chorar. Pegou a espada, mas não conseguiu nem articular um agradecimento... Sabia que o gigante deveria lutar ao lado deles. Era essa a resposta, mas Damásen se afastou.
— Temos que ir — disse Bob, apressando-os, enquanto o gatinho voltava para seu ombro.
— Ele tem razão, Annabeth — acrescentou Percy.
Eles correram para a entrada. Annabeth não olhou para trás enquanto seguia Percy e Bob pântano adentro, mas ouviu Damásen atrás deles soltar seu grito de guerra para o drakon que o atacava, com a voz vacilante devido ao desespero de enfrentar seu velho inimigo mais uma vez.

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